“O aceleracionismo tecnológico representa uma
ameaça à nossa tradição democrática”, diz escritor espanhol
Daniel Innerarity (Bilbao, 1959), um dos
grandes expoentes do pensamento espanhol atual, não costuma se eximir de
abordar temas quentes. Em Una teoría crítica de la inteligencia artificial’
(Galaxia Gutemberg, 2025), mergulha no mundo da inteligência artificial para
elucidar que sociedade nos espera e quais desafios devemos definir para o
futuro. Com este novo livro, que recebeu o Prêmio de Ensaio Eugenio Trías, o
pensador disseca a natureza do raciocínio humano e do pensamento mecânico, que,
como ficou claro, são obrigados a coexistir.
>>>> Eis a entrevista.
• Uma
das grandes questões de nossos dias é se as nossas vidas são regidas por
algoritmos. Isso nos leva a cair em um determinismo tecnológico?
Isso é parte da verdade, porque os algoritmos
têm uma capacidade de aprendizagem espetacular justamente porque interagem com
os humanos. Se fossem tecnologias mecânicas aplicadas a nós, sem a nossa
interlocução, seríamos sujeitos passivos e os algoritmos não teriam a
virtualidade que possuem: aprender dessa interação.
Por isso, uma das ideias centrais do livro é
que não deveríamos abordar a questão como uma batalha entre humanos e máquinas,
mas, sim, como uma interação na qual há assimetrias que implicam dominação,
exclusão e não reflexibilidade. No entanto, não acredito que seja útil
considerar essa relação como uma gigantesca batalha ética entre humanos e
máquinas, algo que a ficção científica nos incutiu, nos últimos anos.
• A
IA generativa não cria ex novo, mas se limita a ordenar palavras de acordo com
as regras sintáticas para que tenham sentido. O pensamento humano, em linhas
gerais, é muito parecido. Poucas pessoas podem se gabar de ter ideias originais
ao longo da vida ou de serem realmente criativas. Na maior parte das vezes,
ficamos limitados a copiar e imitar o que vemos que funciona em outros casos.
Isto explica por que a IA pode ser útil para substituir o humano em muitas
tarefas?
Nós, humanos, realizamos dois tipos de
atividades: tarefas rotineiras e previsíveis, nas quais as máquinas podem ser
mais rápidas e eficientes, e tarefas criativas e indutivas, nas quais as
máquinas ajudam pouco. A questão está em identificar quais tipos de atividades
requerem computadorização e quais exigem intervenção humana. Se acertamos nesta
distinção, podemos criar um ecossistema humano-máquina benéfico para nós.
• Ainda
que a IA nunca chegue a substituir o ser humano em todas as tarefas, parece
claro que a robotização eliminará um grande número de postos de trabalho, e é
muito provável que a mão de obra necessária seja significativamente reduzida.
Que novo contrato social deveríamos ter para que as nossas sociedades
permaneçam democráticas e não caiamos no que estão chamando de tecnofeudalismo?
Mais do que falar em postos de trabalho,
deveríamos falar de tarefas. Dentro de cada posto há diversas tarefas, e são
certas tarefas que serão substituídas. Em muitos casos, isto é positivo, pois
significa eliminar trabalhos árduos e repetitivos. Em uma perspectiva
histórica, nós, humanos, com o tempo, passamos a trabalhar menos: pensemos nos
horários extenuantes da Revolução Industrial ou nos trabalhos perigosos que
sacrificavam a saúde, com bem pouca satisfação.
Se agirmos bem, poderemos entrar em uma nova
era com menos trabalho, menos árduo e mais bem distribuído. Isso não só não é
incompatível com o desenvolvimento da inteligência artificial como também
representa uma verdadeira oportunidade. No entanto, essa mudança não será
fácil: implicará reorganizar funções e tarefas e exigirá debates democráticos
para administrar os conflitos sociais que surgirão para garantir uma sociedade
mais justa e equitativa.
• Trinta
anos atrás, era comum que os gurus da tecnologia profetizassem utopias que
anunciavam uma Arcádia Feliz graças à tecnologia. No entanto, parece que agora
são apóstolos do chamado Iluminismo obscuro ou ao menos defensores de sistemas
econômicos e sociais pouco respeitosos com o liberalismo e o Estado de Direito.
Faz sentido continuar confiando neles?
Existe o que poderíamos chamar de
tecnosolucionismo pós-democrático, exemplificado por figuras como Elon Musk e
Peter Thiel, que promove a ideia de que os grandes problemas do mundo não podem
ser resolvidos no marco dos valores e procedimentos democráticos. É verdade que
nossas democracias têm dificuldades para abordar problemas graves como as
mudanças climáticas e a desigualdade econômica, mas prescindir do tempo, das
pessoas e dos debates democráticos não é a solução.
Nós sempre pensamos que a democracia é um
sistema de governo que leva em conta os impactos de suas decisões sobre as
pessoas e o ambiente. Este aceleracionismo tecnológico representa uma ameaça à
nossa tradição democrática e devemos combatê-la. Passamos do debate clássico
entre direita e esquerda a um debate entre a pressa e a deliberação.
• Alguns
sugerem que, no futuro, a tomada de decisões políticas ficará nas mãos de
inteligências artificiais que farão avaliações de custos muito mais profundas e
refinadas do que os humanos. Independentemente de ser possível ou não, é
desejável?
A máquinas e os humanos estão dotados para
resolver problemas muito diferentes. As máquinas tomam decisões excelentes
quando há muitos dados, pouca ambiguidade e baixa incerteza, ou seja, quando o
problema está bem estruturado. Quando o input e o output estão claros. Ao
contrário, nós, humanos, agimos melhor do que as máquinas quando estamos diante
de problemas pouco estruturados.
Robertson os chamava de problemas selvagens:
aqueles com poucos dados disponíveis, alta ambiguidade e incerteza
significativa, quando as soluções não são binárias, mas múltiplas. Para esta
parte dos problemas, com esta natureza, nós, humanos, estamos mais bem
capacitados.
• Porque
se seguíssemos pelo caminho das decisões da IA, seria quase mergulhar no
populismo e acreditar que os problemas complexos têm soluções muito simples...
Buscam nos seduzir com a ideia de que há uma
solução computacional. Como se tivesse a ver com um procedimento, com a
aplicação de uma tecnologia sofisticada. E há coisas que para chegarmos a uma
solução, por mais dados que temos e tecnologias que inventamos, precisamos de
empatia, sentido comum, visão de conjunto... e nisso as máquinas são bem pouco
confiáveis.
• Uma
das conclusões do livro é que precisamos redefinir o demos atual. Como você
imagina o demos do futuro e quais diferenças considera que existirão em relação
ao que até agora concebemos?
Essa disputa já acontece no mundo analógico.
O demos não se limita mais ao Estado nacional. Vivemos em um mundo onde as
decisões têm impactos transnacionais e afetam as gerações futuras. Neste
contexto, pensar que a soberania se esgota no marco estatal é anacrônico. Além
disso, surge outro problema no mundo digital: reduzir o demos a rastros
digitais ou a comportamentos como consumidores seria um erro. A cidadania deve
ser reflexiva. Não basta expressar preferências ou desejos inconscientemente. A
democracia é justamente um espaço para refletir sobre nossas decisões e sua
compatibilidade com as de outros.
• Se
abandonarmos a nossa capacidade reflexiva como espécie humana, que riscos
corremos?
A reflexão é constitutiva do ser humano.
Ainda que não reflitamos constantemente, é essencial para a nossa
autoconsciência e transcendência. Sem ela perderíamos a nossa capacidade de
inovação e transformação. Além disso, a tecnologia preditiva se baseia somente
em dados do passado porque não há dados do futuro propriamente ditos. Isto
limita sua capacidade de antecipar rupturas ou mudanças imprevisíveis no
comportamento humano. Precisamos preservar espaços de indeterminação para
permitir a inovação e a transformação, tanto social quanto política.
• Qual
é o papel da imprevisibilidade humana diante dos sistemas preditivos?
Embora sejamos geralmente previsíveis,
precisamos manter aberta a possibilidade de condutas rupturistas em relação ao
nosso comportamento anterior. Isto é essencial para garantir sistemas políticos
revisáveis e inovadores. Se confiássemos tudo a sistemas preditivos baseados em
dados passados, estaríamos renunciando à nossa capacidade transformadora como
sociedade.
• “O
mundo está envolto no medo: a poítica deve dominar a tecnologia,” afirma
filósofos italianos
Massimo Cacciari e Maurizio Ferraris, dois
filósofos em diálogo em Turim: o Ocidente está em crise porque sacrificou a
sociedade às finanças e à tecnocracia, afirmam em reportagem realizada por
Cesare Martinetti.
Não estamos todos assistindo a um filme de
terror, é simplesmente política. Uma política hoje dominada pelo medo e
orientada por uma casta econômica que se apoderou da tecnologia.
Elon Musk com bonezinho na cabeça e filho nos
ombros destratando o presidente dos EUA no Salão Oval é o emblema desse
processo. A Europa que declara que vai se rearmar sem ter uma ideia comum real
de como fazer isso é o contraponto. Putin, que fantasia sobre seu sonho
imperial, mas não venceu a guerra em três anos, é o outro protagonista de um
mundo em decadência que perdeu qualquer horizonte de esperança, que não projeta
um futuro e que está destinado ao verdadeiro confronto final que será com a
China.
Implacáveis e desencantados, os filósofos
Massimo Cacciari e Maurizio Ferraris deram vida ontem à noite no Circolo dei
Lettori de Turim, para a Bienal da Democracia, no ciclo das Musas Sábias do
Politécnico e Universidade, a uma discussão na qual eles se confrontaram com
muita clareza para juntar fragmentos de esperança e tentar esboçar um horizonte
de futuro.
Para Cacciari, é a política que “deve
governar e direcionar a técnica e a tecnologia que hoje oferece novas e grandes
possibilidades de libertação, uma utopia que pode nos levar a um grande lugar,
mas também pode se transformar em uma tremenda distopia. Chegamos ao fundo do
poço, só podemos subir”. Para Maurizio Ferraris, “devemos parar de olhar para a
inteligência artificial como algo que está fora de nós e que nos ameaça. É um
produto extremamente poderoso da humanidade e o homem deve ser o primeiro a tomar
consciência disso e colocá-la a seu serviço”.
Esse final, no entanto, pareceu a todos o
exercício de um dever por parte dos dois filósofos, uma declaração de otimismo
da vontade, depois que o debate de todo o encontro foi dominado pelo pessimismo
da razão. O estado do mundo, por outro lado, é o que é. Cacciari: “Trump é
apenas o ponto culminante de uma longa tendência que revela uma grande crise
dos sistemas democráticos incapazes de acompanhar a revolução tecnológica e o
poder financeiro. Trump representa esse processo, mas não é de forma alguma folclórico,
é a expressão de um país em grande dificuldade. Daí a política de tarifas, com
uma sociedade dividida em cem mil seitas e que implementa políticas econômicas
para se defender da competitividade chinesa. Se houver guerra, e temo que
haverá, será entre os Estados Unidos e a China, não com a Rússia. As políticas
protecionistas são sempre um sintoma de fraqueza e isso não é uma boa notícia
para o Ocidente”. Velha política dominada pelo medo, o estado de espírito mais
difundido. Ferraris: “É uma ferramenta do governo, que também é impulsionada
por Musk ao deformar as funções da inteligência artificial.
Parece um filme de terror, mas não é. Quando
o poder se sente fraco, acena com o medo.
Isso não é novidade. As analogias históricas
estão sempre erradas, mas não podemos deixar de pensar em Hitler agindo contra
o presidente austríaco antes de anexar a Áustria. Naquela época, porém, todos
tinham esperança: o comunismo, o New Deal e até mesmo o nazismo para os alemães
eram uma esperança. Afinal de contas, Hitler, antes de entrar na guerra, havia
realizado um milagre ao reerguer o país. Hoje, qualquer força progressista está
completamente ausente. Tudo o que esses governos prometem é um retorno ao
passado: Rússia, Estados Unidos e até mesmo a Itália. Eles fazem com que se
sonhe com um retorno à era de ouro”. E também havia outras formas de expressar
o poder: “No passado havia mais pudor, diz Cacciari, hoje há uma impudência que
se expressa em uma queda de hipocrisia, que revela a crise dos sistemas
democráticos. Ou reconhecemos a realidade ou se tornará cada vez mais explícita
a impotência da política, e a maioria dos cidadãos pensará que a solução será a
China ou Putin”.
Haveria a Europa, algo que há tempo se fala e
se escuta com desconfiança, muitas vezes com suspeita. Mas ao ouvir falar em
defesa comum, não se pode deixar de pensar na história da construção europeia.
Cacciari: “Todos os europeístas afirmaram a necessidade de uma união política
na qual a defesa comum devia desempenhar um papel fundamental: devia ser a
ponte que liga os dois lados do Atlântico, o Oriente e o Mediterrâneo. Essa era
a estratégia de todos os verdadeiros europeístas".
<><> Fracassou de forma
retumbante
Nos primeiros anos do século XXI,
testemunhamos uma sinergia formidável entre as políticas dos NewCon
estadunidenses e o sonho de redenção imperial da Rússia, perfeitamente
combinados para formar as tragédias que estamos vivenciando atualmente. Um
sonho duplo, o novo século estadunidense, combinado com o retorno da Rússia à
sua antiga glória. Um sonho duplo que se transformou em uma única tragédia”.
A Europa tem condições de sair dessa
situação? Cacciari afirma: “É o único destino que pode ter, não pode mais
sonhar com uma primazia econômica ou científica, está em uma crise demográfica
assustadora, um sinal de fraqueza e também de falta de esperança. Pode-se
discutir longamente se a moeda única foi uma série de erros. Mas aqueles que a
criaram foram uma classe política que tentou superar os obstáculos, que pensou
que o euro acabaria se tonando uma aceleração em direção à união política. Mas
depois houve a ampliação da União feita sem discernimento. Como se poderia
pensar em uma união política com governos e países nacionalistas e
soberanistas? Foi a manifestação de uma elite política muito fraca, dependente
do poder dos mecanismos econômicos financeiros, ontologicamente mais fraca do
que aquela dos anos 1980-1990”.
Em tudo, na Europa, como nos Estados Unidos,
a esquerda foi subalterna e, portanto, responsável. Ferraris: “Ela se
concentrou em proteger os direitos de poucos em vez de cuidar do progresso de
muitos, empurrando-os assim para o caminho do retrocesso. Não acredito que os
eleitores de Meloni ou Trump sejam mais estúpidos, eles estão simplesmente
procurando respostas que não encontram na esquerda. Também não as encontrarão
na direita, mas estão sendo tranquilizados. É urgente e necessário construir
uma narrativa de futuro”.
Fonte: Entrevista com Daniel Innerarity, para
Pedro Silverio, em Ethic - tradução do Cepat/ La Stampa/IHU

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