quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Dafne Monteiro de Carvalho Freire: ‘A sede do capitalismo de vigilância’

Debates acerca do consumo de água necessário para a manutenção de estruturas relacionadas ao funcionamento de inteligências artificiais surgiram de forma limitada há um tempo, mas tomou novas proporções após o lançamento da DeepSeek, nova IA chinesa. O “capitalismo de vigilância” – atual fase do capitalismo, onde dados adquiridos pela vigilância digital sobre os usuários são monetizados para a geração de lucro – gera diversos prejuízos, pelo uso indiscriminado de dados pessoais e criação de plataformas cada vez mais viciantes e personalizadas por algoritmos. Consequências como polarização política, vício, distorção de imagem, entre outras já são facilmente vistas em nosso dia a dia, no entanto, não é tão óbvio como esse uso poderia prejudicar o meio ambiente e, mais especificamente, aumentar o gasto de recursos hídricos.

Apesar de não óbvio, relatórios de sustentabilidade mais recentes das grandes empresas de tecnologia apontaram um aumento significativo de consumo de água: 17% pelo Google, 16,7% pela Meta e de 22.6% para a Microsoft e dados não informados pela Amazon. Aumento esse que coincide com o período de popularização de produtos e serviços de IA. Mas, como essa popularização altera o consumo de água por essas empresas? A explicação para isso é simples.

Servidores de IA processam uma quantidade de dados enorme, o que sobrecarrega – ainda mais – os centros de dados dessas empresas, que nada mais são do que milhares de computadores, que trabalham dia e noite. Como sabemos, computadores convertem grande parte da energia que utilizam em calor, que geralmente é dissipado por sistemas de circulação de água (potável, para que as impurezas não danifiquem os equipamentos). A água usada para o resfriamento dos equipamentos se aquece e acaba evaporando e se dispersando na atmosfera. Você pode pensar: se a água evapora, vai voltar em forma de chuva, certo? E sim, ela vai. Mas onde e quando?

Por conta de altos custos, ainda não são usados equipamentos para capturar o vapor liberado antes que se disperse, para ser reutilizado ou voltar para a fonte; então, o vapor se distancia, gerando um consumo local alto, que muitas vezes não é reabastecido, o que leva ao que chamamos de estresse hídrico. De acordo com The Oregonian – jornal do estado do Oregon, EUA – centros de dados do Google são responsáveis por mais de 25% de todo o consumo de água da cidade de The Dalles, onde se localizam, causando secas prolongadas e impactando a vida das comunidades e todo o ecossistema local.

Para além da escassez hídrica, o uso da água pelos sistemas de IA causa diversos outros impactos ambientais. Segundo estudo publicado no Partners Universal International Innovation Journal em 2023, consequências como a alteração do fluxo e volume natural de corpos de água, redução da disponibilidade de água potável para outras atividades humanas e econômicas e diminuição da biodiversidade e habitats aquáticos já são comuns. Há ainda o risco de geração de água residual, que pode conter contaminantes, que devem ser eliminados antes de retornarem à natureza.

Apesar das “Big Techs” terem planos elaborados de sustentabilidade – que incluem o retorno da água aos corpos hídricos, melhoras na qualidade da água e dos ecossistemas e de se tornarem “water positive” (devolver mais água do que consomem) – na prática a água nem sempre é devolvida na mesma região em que foi tirada. O relatório de sustentabilidade do Google de 2024, por exemplo, mostra que a empresa, em 2023, reabasteceu somente cerca de 18% de toda a água potável consumida em seus escritórios e centros de dados. Apesar desse número ter aumentado significativamente, em comparação à 2022, ele continua irrisório e se deve principalmente ao apoio da empresa a diversos e importantes projetos de conservação e recuperação ambiental ao redor do globo, mas que, muitas vezes, não têm relação direta com a fonte original que foi explorada.

Além disso, os centros de dados não são legalmente obrigados a declarar a quantidade de água que consomem, fazendo com que as métricas declaradas se tornem menos confiáveis. O relatório de 2023 da Amazon é um exemplo: não há informação sobre a quantidade de água consumida em seus escritórios e centro de dados; todo o relatório é uma grande lista de vanglórias dos seus projetos de reabastecimento de água ao redor do mundo e de seu avanço na meta de se tornar “water positive” até 2030. É, então, necessário que haja uma obrigação legal para que empresas declarem de forma padronizada a quantidade e a origem da água que consomem, além da fiscalização por terceiros de suas ações de reparação ambiental de que tanto se gabam.

Existem soluções parciais para esse problema que, inclusive, já são usadas por algumas empresas. Sistemas de resfriamento com ar, uso de água não potável tratada, utilização de um “líquido de resfriamento de precisão” (tecnologia desenvolvida pela empresa Iceotope) ou até mesmo a construção dos centros de dados em locais naturalmente mais frios podem ser técnicas utilizadas para a mitigação do problema. Todas essas tecnologias, no entanto, têm seus pontos negativos. A popularização dos equipamentos de captação do vapor para reutilização da água em sistemas fechados é uma alternativa mais óbvia. Será que uma tecnologia que já existe e potencialmente solucionaria o problema é realmente tão cara para que essas empresas bilionárias não a utilizem? Não seria o custo da destruição irreversível do meio ambiente, que eles já decidiram assumir por conta própria, ainda maior?

Certamente, aumentar a eficiência dos equipamentos de IA também é uma boa alternativa, já que cortaria o mal do superaquecimento excessivo pela raiz. Um passo nessa direção foi dado pela empresa High-Flyer em janeiro deste ano. O lançamento da IA chinesa DeepSeek para o público abalou todo mercado da tecnologia e fez com que gigantes já consolidadas perdessem 643 bilhões de dólares em ações em um único dia. Como era de se esperar, a nova ferramenta foi recepcionada de forma controversa: a perigosa ameaça para os mais conservadores e a solução mágica para os mais esperançosos.

Sem dúvidas, a utilização de um hardware menos sofisticado que obtém resultados similares (ou até mesmo superiores) com um gasto de recursos computacionais menor é um ponto positivo da nova IA. Os gastos de produção não foram revelados pela empresa, no entanto o custo ao usuário é cerca de 1/30 do cobrado pela OpenAI, o que indica um menor gasto inicial. Além disso, seu código aberto traz transparência, outro ponto positivo quando se é tão questionada por empresas e governos rivais. Inclusive, logo após o lançamento da DeepSeek, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou um investimento pelo setor privado de 500 bilhões para o aprimoramento da infraestrutura de IAs estadunidenses. Isso após revogar uma decisão de Joe Biden, que visava a regulamentação de riscos da nova tecnologia, tecnologia essa que faz promessas futurísticas e utópicas vazias, dignas de filmes de ficção científica. Vivemos então a nova corrida armamentista, a corrida do capitalismo de vigilância.

Podemos nos questionar: diminuir o consumo de produtos e serviços relacionados a IA é relevante nesse cenário? Bom, cada uso gera um custo de água (um simples email de 100 palavras escrito por IA gera um gasto de cerca de 500ml de água potável); multiplique esse ínfimo número pelos 5 bilhões de usuários ao redor do mundo e você ficará espantado. Do ponto de vista individual, a redução do uso de tecnologias de vigilância pode ter diversos benefícios pessoais, para além do meio ambiente, mas alternativas mais palpáveis são necessárias, como medidas mais fortes de regulamentação das empresas e fiscalização de suas atividades de reparação ambiental.

A nova ferramenta chinesa é sem dúvidas um passo à busca por um desenvolvimento global um pouco mais homogêneo e ao aprimoramento de IAs já existentes. No entanto, esses pequenos avanços batem de frente com um conceito já conhecido: o “Paradoxo de Jevons”, onde o aumento da eficiência tecnológica, leva a um aumento final do gasto total de recursos. Seria então utópica a real solução: o avanço tecnológico coletivo e verdadeiramente sustentável, que não vise somente ações de mitigação e sim de mudança do paradigma atual, onde a natureza é vista como recurso e as pessoas como dados, ambos a serem explorados.

 

¨      Capitalismo de vigilância. Por Frei Betto

Após carregarem pesadas pedras para erguer as pirâmides, arrastadas à tração animal, os escravos egípcios devem ter ficado agradecidos e, ao mesmo tempo, perplexos, quando um deles, na Mesopotâmia (atual Iraque), inventou a roda. Do mesmo modo nossa geração se surpreende com a agilidade “mágica” da robótica para desempenhar tarefas com maior velocidade e precisão que a habilidade humana.

O algoritmo veio inaugurar uma nova era civilizatória ao nos oferecer uma outra “roda”: a inteligência artificial que, diga-se de passagem, nem é propriamente inteligência nem artificial, pois é toda programada por seres humanos, embora tenha desempenho automático. Mas, sem ela, não poderíamos pesquisar os buracos negros nos longínquos espaços siderais e penetrar os diminutos recônditos da matéria graças à nanotecnologia.

A roda veio facilitar todo tipo de transporte, da mala de viagem, que já não temos que carregar, ao caminhão que leva pesados blocos de pedra. Mas, sem ela, não haveria tantos acidentes de trânsito. A culpa, com certeza, não é da tecnologia. É do uso que dela fazemos, e isso vale para a inteligência artificial. É programada pela inteligência humana, supera-a em agilidade, porém não em criatividade. Pode fazer complexos cálculos matemáticos em milésimos de segundos, mas é incapaz de produzir um romance à altura de Dom Quixote, de Cervantes ou Grande sertão, veredas, de Guimarães Rosa.

Na pauta de defesa da democracia há que entrar a regulação do uso dos algoritmos, de modo a amenizar o impacto do que a socióloga estadunidense Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de vigilância”. Todos os dados que geramos ao utilizar o Google, por exemplo, são coletados em grandes bancos de dados e analisados por especialistas para detectar as tendências em voga e as futuras potencialidades do mercado.

O Google sabe, por meio do algoritmo, que o usuário “A” aprecia vinhos e, assim, inunda o e-mail dele de publicidade de vinhos. O mesmo acontece quando o usuário “B” procura um novo par de sapatos. Quando o usuário "C” capta informações sobre trânsito, de interesse público, cria um software e oferece aos governos. Software são os aplicativos que utilizamos no acesso à internet, como Word, Spotify, TikTok, etc.

O problema é que não sabemos o que é feito com esses dados. O que sabemos do Facebook é porque alguém vazou um documento interno. As empresas não falam sobre seu modelo de negócio. Não existem dados consolidados, os termos de uso e as políticas de privacidades são muito confusas.

Qualquer governo que pretenda reduzir as desigualdades e promover a democracia e a justiça social deve se preocupar com a regulação do uso dos algoritmos. Como se sabe, são programas concebidos para fazer buscas em imensos bancos de dados, classificar essas informações segundo um critério previamente definido por seu autor e orientar sua destinação. Em tese, eles eliminariam distorções subjetivas, mas o que acontece de fato na internet é que os critérios não são conhecidos nem passíveis de sê-lo.

 

¨      Pagamos os custos da inação diante das mudanças climáticas

As mudanças climáticas deixaram de ser uma previsão para se tornarem uma realidade inescapável. Secas extremas, ondas de calor sem precedentes, enchentes devastadoras e a perda acelerada de biodiversidade são apenas alguns dos sinais de um planeta em colapso.

No entanto, apesar da robustez dos alertas científicos e da crescente materialização dos impactos, a inação política e econômica persiste, ancorada em um modelo de desenvolvimento ultrapassado e destrutivo.

A ciência é clara ao apontar que as mudanças climáticas têm origem antropogênica e que o uso desenfreado de combustíveis fósseis, o desmatamento e a degradação ambiental são os principais motores desse processo.

Ainda assim, interesses econômicos e políticos continuam a postergar ações decisivas para a redução de emissões e a transição para uma economia de baixo carbono.

negacionismo explícito pode ter perdido força, mas a negligência disfarçada em promessas vazias e metas longínquas é igualmente perigosa.
Os impactos já atingem comunidades vulneráveis com força desproporcional. Povos indígenas, populações ribeirinhas, moradores de periferias urbanas e agricultores familiares estão na linha de frente dessa crise, enfrentando perdas econômicas e riscos à sua sobrevivência.

Enquanto isso, países, empresas e uns poucos multibilionários, que mais contribuem para a crise, continuam a lucrar com a destruição ambiental, promovendo soluções ilusórias como a compensação de carbono e a geoengenharia climática, sem enfrentar a raiz do problema: a necessidade urgente de reduzir a exploração predatória dos recursos naturais.

O momento atual exige decisões políticas corajosas, e essas só virão com forte mobilização social. A pressão popular é um elemento essencial para frear os retrocessos e impulsionar políticas climáticas efetivas.

Governos devem ser cobrados por ações concretas, como a eliminação dos subsídios aos combustíveis fósseis, a adoção de metas ambiciosas de redução de emissões e a transição para um modelo energético sustentável. Empresas precisam ser responsabilizadas por seus impactos e induzidas a mudar suas práticas, não apenas por meio de incentivos, mas também por regulamentação rígida.

A crise climática não é um problema do futuro: ela já está aqui e ameaça nossa sobrevivência.

A escolha entre agir ou continuar na inércia definirá não apenas o destino das próximas gerações, mas também a viabilidade da vida no planeta.

A ciência já fez sua parte. Agora, cabe à sociedade transformar o conhecimento em ação.

 

Fonte: ((O))eco/IHU/EcoDebate

 

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