Dafne Monteiro de
Carvalho Freire: ‘A sede do capitalismo de vigilância’
Debates acerca do
consumo de água necessário para a manutenção de estruturas relacionadas ao
funcionamento de inteligências
artificiais surgiram
de forma limitada há um tempo, mas tomou novas proporções após o lançamento
da DeepSeek,
nova IA chinesa. O “capitalismo de
vigilância”
– atual fase do capitalismo, onde dados adquiridos pela vigilância digital
sobre os usuários são monetizados para a geração de lucro – gera diversos
prejuízos, pelo uso indiscriminado de dados pessoais e criação de plataformas
cada vez mais viciantes e personalizadas por algoritmos. Consequências como
polarização política, vício, distorção de imagem, entre outras já são
facilmente vistas em nosso dia a dia, no entanto, não é tão óbvio como esse uso
poderia prejudicar o meio ambiente e, mais especificamente, aumentar o gasto de
recursos hídricos.
Apesar de não
óbvio, relatórios de sustentabilidade mais recentes das grandes empresas de
tecnologia apontaram um aumento significativo de consumo de água: 17%
pelo Google, 16,7% pela Meta e de 22.6% para
a Microsoft e dados não informados pela Amazon. Aumento esse que
coincide com o período de popularização de produtos e serviços de IA. Mas,
como essa popularização altera o consumo de água por essas empresas? A
explicação para isso é simples.
Servidores
de IA processam uma quantidade de dados enorme, o que sobrecarrega –
ainda mais – os centros de dados dessas empresas, que nada mais são do que
milhares de computadores, que trabalham dia e noite. Como sabemos, computadores
convertem grande parte da energia que utilizam em calor, que geralmente é
dissipado por sistemas de circulação de água (potável, para que as impurezas
não danifiquem os equipamentos). A água usada para o resfriamento dos
equipamentos se aquece e acaba evaporando e se dispersando na atmosfera. Você
pode pensar: se a água evapora, vai voltar em forma de chuva, certo? E sim, ela
vai. Mas onde e quando?
Por conta de altos
custos, ainda não são usados equipamentos para capturar o vapor liberado antes
que se disperse, para ser reutilizado ou voltar para a fonte; então, o vapor se
distancia, gerando um consumo local alto, que muitas vezes não é reabastecido,
o que leva ao que chamamos de estresse hídrico. De acordo com The
Oregonian – jornal do estado do Oregon, EUA – centros de dados
do Google são responsáveis por mais de 25% de todo o consumo de água
da cidade de The Dalles, onde se localizam, causando secas prolongadas e
impactando a vida das comunidades e todo o ecossistema local.
Para além da
escassez hídrica, o uso da água pelos
sistemas de IA causa
diversos outros impactos ambientais. Segundo estudo publicado no Partners
Universal International Innovation Journal em 2023, consequências como a
alteração do fluxo e volume natural de corpos de água, redução da
disponibilidade de água potável para outras atividades humanas e econômicas e
diminuição da biodiversidade e habitats aquáticos já são comuns. Há ainda o
risco de geração de água residual, que pode conter contaminantes, que devem ser
eliminados antes de retornarem à natureza.
Apesar das “Big Techs” terem planos
elaborados de sustentabilidade – que incluem o retorno da água aos corpos
hídricos, melhoras na qualidade da água e dos ecossistemas e de se tornarem
“water positive” (devolver mais água do que consomem) – na prática a água nem
sempre é devolvida na mesma região em que foi tirada. O relatório de
sustentabilidade do Google de 2024, por exemplo, mostra que a
empresa, em 2023, reabasteceu somente cerca de 18% de toda a água potável consumida em seus
escritórios e centros de dados. Apesar desse número ter aumentado
significativamente, em comparação à 2022, ele continua irrisório e se deve
principalmente ao apoio da empresa a diversos e importantes projetos de
conservação e recuperação ambiental ao redor do globo, mas que, muitas vezes,
não têm relação direta com a fonte original que foi explorada.
Além disso, os
centros de dados não são legalmente obrigados a declarar a quantidade de água
que consomem, fazendo com que as métricas declaradas se tornem menos
confiáveis. O relatório de 2023 da Amazon é um exemplo: não há
informação sobre a quantidade de água consumida em seus escritórios e centro de
dados; todo o relatório é uma grande lista de vanglórias dos seus projetos de
reabastecimento de água ao redor do mundo e de seu avanço na meta de se tornar
“water positive” até 2030. É, então, necessário que haja uma obrigação legal
para que empresas declarem de forma padronizada a quantidade e a origem da água
que consomem, além da fiscalização por terceiros de suas ações de reparação
ambiental de que tanto se gabam.
Existem soluções
parciais para esse problema que, inclusive, já são usadas por algumas empresas.
Sistemas de resfriamento com ar, uso de água não potável tratada, utilização de
um “líquido de resfriamento de precisão” (tecnologia desenvolvida pela
empresa Iceotope) ou até mesmo a construção dos centros de dados em locais
naturalmente mais frios podem ser técnicas utilizadas para a mitigação do
problema. Todas essas tecnologias, no entanto, têm seus pontos negativos. A
popularização dos equipamentos de captação do vapor para reutilização da água
em sistemas fechados é uma alternativa mais óbvia. Será que uma tecnologia que
já existe e potencialmente solucionaria o problema é realmente tão cara para
que essas empresas bilionárias não a utilizem? Não seria o custo da destruição
irreversível do meio ambiente, que eles já decidiram assumir por conta própria,
ainda maior?
Certamente,
aumentar a eficiência dos equipamentos de IA também é uma boa
alternativa, já que cortaria o mal do superaquecimento excessivo pela raiz. Um
passo nessa direção foi dado pela empresa High-Flyer em janeiro deste
ano. O lançamento da IA chinesa DeepSeek para o público
abalou todo mercado da tecnologia e fez com que gigantes já consolidadas
perdessem 643 bilhões de dólares em ações em um único dia. Como era de se
esperar, a nova ferramenta foi recepcionada de forma controversa: a perigosa
ameaça para os mais conservadores e a solução mágica para os mais esperançosos.
Sem dúvidas, a
utilização de um hardware menos sofisticado que obtém resultados similares (ou
até mesmo superiores) com um gasto de recursos computacionais menor é um ponto
positivo da nova IA. Os gastos de produção não foram revelados pela
empresa, no entanto o custo ao usuário é cerca de 1/30 do cobrado pela OpenAI, o que indica um
menor gasto inicial. Além disso, seu código aberto traz transparência, outro
ponto positivo quando se é tão questionada por empresas e governos rivais.
Inclusive, logo após o lançamento da DeepSeek, o presidente
dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou um
investimento pelo setor privado de 500 bilhões para o aprimoramento da
infraestrutura de IAs estadunidenses. Isso após revogar uma decisão
de Joe Biden, que visava a
regulamentação de riscos da nova tecnologia, tecnologia essa que faz promessas
futurísticas e utópicas vazias, dignas de filmes de ficção científica. Vivemos
então a nova corrida armamentista, a corrida do capitalismo de vigilância.
Podemos nos
questionar: diminuir o consumo de produtos e serviços relacionados a IA é
relevante nesse cenário? Bom, cada uso gera um custo de água (um simples email
de 100 palavras escrito por IA gera um gasto de cerca de 500ml de
água potável); multiplique esse ínfimo número pelos 5 bilhões de usuários ao
redor do mundo e você ficará espantado. Do ponto de vista individual, a redução
do uso de tecnologias de vigilância pode ter diversos benefícios pessoais, para
além do meio ambiente, mas alternativas mais palpáveis são necessárias, como
medidas mais fortes de regulamentação das empresas e fiscalização de suas
atividades de reparação ambiental.
A nova ferramenta
chinesa é sem dúvidas um passo à busca por um desenvolvimento global um pouco
mais homogêneo e ao aprimoramento de IAs já existentes. No entanto,
esses pequenos avanços batem de frente com um conceito já conhecido: o “Paradoxo de Jevons”, onde o aumento
da eficiência tecnológica, leva a um aumento final do gasto total de recursos.
Seria então utópica a real solução: o avanço tecnológico coletivo e
verdadeiramente sustentável, que não vise somente ações de mitigação e sim de
mudança do paradigma atual, onde a natureza é vista como recurso e as pessoas
como dados, ambos a serem explorados.
¨ Capitalismo de vigilância. Por Frei Betto
Após carregarem
pesadas pedras para erguer as pirâmides, arrastadas à tração animal, os
escravos egípcios devem ter ficado agradecidos e, ao mesmo tempo, perplexos,
quando um deles, na Mesopotâmia (atual Iraque), inventou a roda.
Do mesmo modo nossa geração se surpreende com a agilidade “mágica” da robótica para
desempenhar tarefas com maior velocidade e precisão que a habilidade humana.
O algoritmo veio
inaugurar uma nova era civilizatória ao nos oferecer uma outra “roda”: a inteligência
artificial que,
diga-se de passagem, nem é propriamente inteligência nem artificial, pois é
toda programada por seres humanos, embora tenha desempenho automático. Mas, sem
ela, não poderíamos pesquisar os buracos negros nos longínquos espaços siderais
e penetrar os diminutos recônditos da matéria graças à nanotecnologia.
A roda veio
facilitar todo tipo de transporte, da mala de viagem, que já não temos que
carregar, ao caminhão que leva pesados blocos de pedra. Mas, sem ela, não
haveria tantos acidentes de trânsito. A culpa, com certeza, não é da
tecnologia. É do uso que dela fazemos, e isso vale para a inteligência
artificial. É programada pela inteligência humana, supera-a em agilidade, porém
não em criatividade. Pode fazer complexos cálculos matemáticos em milésimos de
segundos, mas é incapaz de produzir um romance à altura de Dom Quixote,
de Cervantes ou Grande sertão,
veredas,
de Guimarães Rosa.
Na pauta de defesa
da democracia há que entrar a regulação do uso dos algoritmos, de modo a
amenizar o impacto do que a socióloga estadunidense Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de
vigilância”.
Todos os dados que geramos ao utilizar o Google, por exemplo, são
coletados em grandes bancos de dados e analisados por especialistas para
detectar as tendências em voga e as futuras potencialidades do mercado.
O Google sabe,
por meio do algoritmo, que o usuário “A” aprecia vinhos e, assim, inunda o
e-mail dele de publicidade de vinhos. O mesmo acontece quando o usuário “B”
procura um novo par de sapatos. Quando o usuário "C” capta informações
sobre trânsito, de interesse público, cria um software e oferece aos
governos. Software são os aplicativos que utilizamos no acesso à
internet, como Word, Spotify, TikTok, etc.
O problema é que
não sabemos o que é feito com esses dados. O que sabemos do Facebook é porque
alguém vazou um documento interno. As empresas não falam sobre seu modelo de
negócio. Não existem dados consolidados, os termos de uso e as políticas de
privacidades são muito confusas.
Qualquer governo
que pretenda reduzir as desigualdades e promover a
democracia e a justiça social deve se preocupar com a regulação do uso dos
algoritmos.
Como se sabe, são programas concebidos para fazer buscas em imensos bancos de
dados, classificar essas informações segundo um critério previamente definido
por seu autor e orientar sua destinação. Em tese, eles eliminariam distorções
subjetivas, mas o que acontece de fato na internet é que os critérios não são
conhecidos nem passíveis de sê-lo.
¨ Pagamos os custos da inação diante das mudanças
climáticas
As mudanças climáticas deixaram de
ser uma previsão para se tornarem uma realidade inescapável. Secas extremas,
ondas de calor sem precedentes, enchentes devastadoras e a perda acelerada de
biodiversidade são
apenas alguns dos sinais de um planeta em colapso.
No entanto, apesar
da robustez dos alertas científicos e da crescente materialização dos impactos,
a inação política e econômica persiste, ancorada em um modelo de
desenvolvimento ultrapassado e destrutivo.
A ciência é clara
ao apontar que as mudanças climáticas têm origem antropogênica e que o uso
desenfreado de combustíveis fósseis, o desmatamento e
a degradação ambiental são os principais motores desse processo.
Ainda assim,
interesses econômicos e políticos continuam a postergar ações decisivas para a
redução de emissões e a transição para uma economia de baixo
carbono.
O negacionismo explícito pode ter
perdido força, mas a negligência disfarçada em promessas vazias e metas
longínquas é igualmente perigosa.
Os impactos já atingem comunidades vulneráveis com força
desproporcional. Povos indígenas, populações ribeirinhas, moradores
de periferias urbanas e agricultores familiares estão na
linha de frente dessa crise, enfrentando perdas econômicas e riscos à sua
sobrevivência.
Enquanto isso,
países, empresas e uns poucos multibilionários, que mais contribuem para a
crise, continuam a lucrar com a destruição ambiental, promovendo soluções
ilusórias como a compensação de
carbono e
a geoengenharia
climática,
sem enfrentar a raiz do problema: a necessidade urgente de reduzir a exploração
predatória dos recursos naturais.
O momento atual
exige decisões políticas corajosas, e essas só virão com forte mobilização
social. A pressão popular é um elemento essencial para frear os retrocessos e
impulsionar políticas climáticas efetivas.
Governos devem ser
cobrados por ações concretas, como a eliminação dos subsídios aos combustíveis
fósseis, a adoção de metas ambiciosas de redução de emissões e a transição para
um modelo energético sustentável. Empresas precisam ser responsabilizadas
por seus impactos e induzidas a mudar suas práticas, não apenas por meio de
incentivos, mas também por regulamentação rígida.
A crise climática
não é um problema do futuro: ela já está aqui e ameaça nossa sobrevivência.
A escolha entre
agir ou continuar na inércia definirá não apenas o destino das próximas
gerações, mas também a viabilidade da vida no planeta.
A ciência já fez
sua parte. Agora, cabe à sociedade transformar o conhecimento em ação.
Fonte: ((O))eco/IHU/EcoDebate
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