Meditação, ioga,
astrologia: jovens vivem retorno ao sagrado, diz sociólogo francês
O pensamento
racionalista está em declínio, diz o sociólogo francês
Michel Maffesoli.
Para as gerações
mais jovens, o conhecimento não pode ser construído puramente pela razão, mais
precisa levar em conta a emoção e os sentidos, argumenta o professor emérito da
Universidade de Sorbonne, na França.
Isso não significa
necessariamente um retorno às religiões tradicionais, diz o sociólogo,
mas uma ampliação de diversas formas de religiosidade.
Ou seja, existe uma
disseminação da espiritualidade entre os jovens de forma difusa, que resulta em
uma proximidade com tudo o que é transcendente - da astrologia à ioga, do cristianismo
ao candomblé, da arte à meditação.
Reconhecido
internacionalmente por suas análises da cultura e das transformações sociais
contemporâneas, Maffesoli popularizou o conceito de "tribo urbana" —
agrupamentos sociais espontâneos unidos por um estilo de vida — que desafiou a
ideia de um "sociedade de massas".
Ele acaba de lançar
no Brasil seu livro Nostalgia do Sagrado (PucPress), no qual faz
reflexões sobre mudanças contemporâneas na conexão das pessoas com a
religiosidade, o sagrado e o metafísico.
Ele afirma que,
após um processo de secularização (afastamento da religião ou perda da sua
relevância) da sociedade ocidental — especialmente na filosofia, na produção
dos conhecimentos e nas artes — a conexão com algum tipo de espiritualidade
passou a fazer falta.
"Há uma
saturação em relação ao racionalismo, e precisamos falar em outras formas de
construir o conhecimento", diz ele em entrevista à BBC News Brasil.
E a internet se
tornou central nesse processo. "É um dos espaços dessa busca pelo incerto e
imponderável", afirma.
<><> Confira
a seguir os principais trechos da entrevista.
·
O
senhor usa "nostalgia do sagrado" como título do seu livro. O termo
nostalgia se refere à saudade de algo que se foi. Mas quando olhamos para a
sociedade em termos demográficos, a maioria da população nunca deixou de ser
religiosa. Podemos mesmo falar em processo de secularização da sociedade e
depois retorno ao religioso? Não seria possível argumentar que a religião nunca
perdeu tanta relevância?
Michel Maffesoli
- Quando eu falo em [secularização da] sociedade, estou me referindo à
chamada société officieuse [elite que detém o controle "não
oficial" da sociedade], então, aos intelectuais na política, os
acadêmicos, jornalistas, etc. A maioria das pessoas simplesmente continuaram a
ser religiosas.
Costumamos dividir
a história em "épocas", então, temos a era moderna que começa com
Descartes, com o cartesianismo, reforçado pelo Iluminismo no século 18 e que se
estrutura no século 19. Foi uma época de secularização, de "evacuação"
do sagrado. O desencanto com o mundo que, segundo [o sociólogo] Max Weber,
começou no século 17, foi essencial para essa parte da sociedade e para o
pensamento da época.
Então, na
modernidade, se estabeleceu essa intelectualidade muito materialista, da
dialética histórica, da ironia etc. É à dominância dessa corrente de pensamento
que nos referimos quando falamos em secularização.
E com ela veio uma
incapacidade de entender o instinto, as emoções, os afetos, as paixões, etc.
Mas, quando falamos
em pós-modernidade, minha hipótese é que há um retorno do sagrado que se
desenvolve de formas muito diversas. Agora vejo que, na França, o materialismo
marxista desapareceu quase completamente entre os intelectuais.
De certa forma, é
um ato de equilíbrio nas histórias humanas. Houve um tempo em que o sagrado
perdeu importância, mas agora estamos em outra era onde há um retorno disso,
especialmente para as gerações mais jovens na Europa.
·
Como
essa mudança afeta o resto da sociedade, ou seja, quem não faz parte dessa
elite?
Maffesoli
- Existe uma lacuna, um distanciamento, porque parte das elites políticas,
os acadêmicos e intelectuais permanecem nos valores modernos. Vejo que na
França há muitas insurreições, revoltas, manifestações porque os políticos não
estão mais em sintonia com as pessoas, cujo pensamento não corresponde mais a
categorias como direita e esquerda. Da mesma forma, os políticos se apegam a
valores modernos e não entendem o que realmente é atraente hoje.
·
Esse
retorno do sagrado não gera um medo nos grupos mais secularizados de que haja
um retorno do obscurantismo, de uma certa irracionalidade?
Maffesoli
- Veja, eu faço uma crítica do racionalismo, não da racionalidade. Ou
seja, do racionalismo como sistematização desse pensamento do desencanto onde evacuamos
oficialmente a referência a Deus ou ao espiritual. Esse racionalismo é um dos
grandes elementos da modernidade. Já a racionalidade, ou seja, o uso da razão,
é uma característica individual, de cada um de nós, e da nossa espécie.
Proponho falar em
uma "razão sensível": levar em consideração a importância da emoção e
dos sentidos na construção do conhecimento e do sentido. São Thomas de Aquino
[filósofo do século 13] mostrou a conexão que existia entre corpo e mente.
Nunca há nada no intelecto que não tenha estado primeiro nos sentidos, isto é,
no corpo humano.
Mas sim, claro, é
possível ver na França e na Europa em geral como certos intelectuais, políticos
e jornalistas têm medo do retorno de uma irracionalidade. E é verdade que isso
é assustador.
Essas elites
continuam ancoradas nos valores modernos, na importância do racionalismo, e não
conseguem entender [esse novo movimento]. Na França, isso é um problema real.
[A elite] não consegue entender que outra maneira de estar no mundo está
ressurgindo, principalmente entre as gerações mais jovens, que não são
racionalistas.
·
Você
tem alguma hipótese de por que as gerações mais jovens estão abandonando o
racionalismo?
Maffesoli
- Fui aluno do [antropólogo] Gilbert Durant, que é um grande especialista
em imaginário. Ele fala de estruturas antropológicas e da importância do
imaginário, em especial do imaginário religioso. O imaginário, o simbólico,
cria estruturas, forma um sistema. E, em certos momentos, essa estrutura é
marginalizada, se torna secundária. Isso é secularização.
Depois de um certo
ponto, de três ou quatro séculos de secularização, há uma saturação disso. O
mecanismo de saturação é um mecanismo muito simples, mas que nos permite
entender que há um cansaço em relação ao racionalismo. As pessoas ficam
cansadas e desgastadas, é uma desestruturação da grande cultura moderna.
Se você olhar
historicamente, a cada três séculos, há uma saturação do que é dominante
naquele momento. Estamos saindo de uma era onde o que domina é a razão humana,
é Apolo [deus grego que representa essa razão], para uma era dionisíaca
[Dionísio representa o prazer, os sentidos].
·
O
senhor fala de uma transformação na expressão do sagrado. Que transformação é
essa?
Maffesoli - Na
verdade, a palavra que uso com mais frequência é a palavra sacro, não sagrado.
O autor [e filósofo] Jacques Maritain usa esse termo. Pego essa expressão para
falar de algo que se difunde, se difrata, que, de alguma forma,
"contamina" a sociedade. O que vejo na França é um retorno das missas
tradicionais, de peregrinações, dos jovens que vão para a Jornada Mundial da
Juventude. É uma série de pequenas coisas.
Claro que falo pela
Europa e França, não sou especialista em Brasil, embora ame e venha aqui com
frequência. Mas é curioso: um dos meus pesquisadores fazia um estudo em Paris,
a cidade onde nasceu o racionalismo, e encontrou quatro ou cinco grupos
franceses de candomblé. Para mim isso é um exemplo interessante dessa difração
da religiosidade. E também meditação, ioga, astrologia.
Não é
necessariamente um retorno a religião estruturada, mas uma religiosidade
disseminada sem ter um aspecto estritamente institucional. Uma busca por novas
formas de vivenciar a vida, que pode ser pela arte, pelo convívio, por
expressões culturais que envolvem a emoção compartilhada.
·
Qual
o papel da internet nessa movimentação?
Maffesoli - É
importante. Nas redes sociais, na internet, vemos a multiplicidade desses
pequenos grupos, que se encontram, espalham ideias. Dou sempre um exemplo:
encontrei um grupo de jovens que estão trabalhando na Summa
Theologica de São Tomás de Aquino, que é um trabalho muito difícil. Então,
a internet é um dos espaços de expressão dessa busca pelo incerto e
imponderável.
·
Como
vê o Brasil nisso tudo?
Maffesoli - A
primeira vez que vim ao Brasil, em 1980, o que vi em São Paulo, em Recife... o
que me marcou foi que os intelectuais por aqui eram muito dominados por um
materialismo marxista e por isso tinham dificuldade de entender que havia uma
difração dessa religiosidade.
Nas minhas últimas
viagens, em especial em novembro (de 2024), quando estive no Rio de Janeiro e
em Porto Alegre, havia muita gente em uma grande conferência sobre o
imaginário. Fiquei impressionado. Encontrei um encantamento com a vida
cotidiana.
Acho que houve uma
mudança ao nível global e os intelectuais mais jovens não têm medo de abordar
esse tema da imaginação. Mas digo isso com cautela, não sou especialista em
Brasil.
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