quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Meditação, ioga, astrologia: jovens vivem retorno ao sagrado, diz sociólogo francês

O pensamento racionalista está em declínio, diz o sociólogo francês Michel Maffesoli.

Para as gerações mais jovens, o conhecimento não pode ser construído puramente pela razão, mais precisa levar em conta a emoção e os sentidos, argumenta o professor emérito da Universidade de Sorbonne, na França.

Isso não significa necessariamente um retorno às religiões tradicionais, diz o sociólogo, mas uma ampliação de diversas formas de religiosidade.

Ou seja, existe uma disseminação da espiritualidade entre os jovens de forma difusa, que resulta em uma proximidade com tudo o que é transcendente - da astrologia à ioga, do cristianismo ao candomblé, da arte à meditação.

Reconhecido internacionalmente por suas análises da cultura e das transformações sociais contemporâneas, Maffesoli popularizou o conceito de "tribo urbana" — agrupamentos sociais espontâneos unidos por um estilo de vida — que desafiou a ideia de um "sociedade de massas".

Ele acaba de lançar no Brasil seu livro Nostalgia do Sagrado (PucPress), no qual faz reflexões sobre mudanças contemporâneas na conexão das pessoas com a religiosidade, o sagrado e o metafísico.

Ele afirma que, após um processo de secularização (afastamento da religião ou perda da sua relevância) da sociedade ocidental — especialmente na filosofia, na produção dos conhecimentos e nas artes — a conexão com algum tipo de espiritualidade passou a fazer falta.

"Há uma saturação em relação ao racionalismo, e precisamos falar em outras formas de construir o conhecimento", diz ele em entrevista à BBC News Brasil.

E a internet se tornou central nesse processo. "É um dos espaços dessa busca pelo incerto e imponderável", afirma.

<><> Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

·        O senhor usa "nostalgia do sagrado" como título do seu livro. O termo nostalgia se refere à saudade de algo que se foi. Mas quando olhamos para a sociedade em termos demográficos, a maioria da população nunca deixou de ser religiosa. Podemos mesmo falar em processo de secularização da sociedade e depois retorno ao religioso? Não seria possível argumentar que a religião nunca perdeu tanta relevância?

Michel Maffesoli - Quando eu falo em [secularização da] sociedade, estou me referindo à chamada société officieuse [elite que detém o controle "não oficial" da sociedade], então, aos intelectuais na política, os acadêmicos, jornalistas, etc. A maioria das pessoas simplesmente continuaram a ser religiosas.

Costumamos dividir a história em "épocas", então, temos a era moderna que começa com Descartes, com o cartesianismo, reforçado pelo Iluminismo no século 18 e que se estrutura no século 19. Foi uma época de secularização, de "evacuação" do sagrado. O desencanto com o mundo que, segundo [o sociólogo] Max Weber, começou no século 17, foi essencial para essa parte da sociedade e para o pensamento da época.

Então, na modernidade, se estabeleceu essa intelectualidade muito materialista, da dialética histórica, da ironia etc. É à dominância dessa corrente de pensamento que nos referimos quando falamos em secularização.

E com ela veio uma incapacidade de entender o instinto, as emoções, os afetos, as paixões, etc.

Mas, quando falamos em pós-modernidade, minha hipótese é que há um retorno do sagrado que se desenvolve de formas muito diversas. Agora vejo que, na França, o materialismo marxista desapareceu quase completamente entre os intelectuais.

De certa forma, é um ato de equilíbrio nas histórias humanas. Houve um tempo em que o sagrado perdeu importância, mas agora estamos em outra era onde há um retorno disso, especialmente para as gerações mais jovens na Europa.

·        Como essa mudança afeta o resto da sociedade, ou seja, quem não faz parte dessa elite?

Maffesoli - Existe uma lacuna, um distanciamento, porque parte das elites políticas, os acadêmicos e intelectuais permanecem nos valores modernos. Vejo que na França há muitas insurreições, revoltas, manifestações porque os políticos não estão mais em sintonia com as pessoas, cujo pensamento não corresponde mais a categorias como direita e esquerda. Da mesma forma, os políticos se apegam a valores modernos e não entendem o que realmente é atraente hoje.

·        Esse retorno do sagrado não gera um medo nos grupos mais secularizados de que haja um retorno do obscurantismo, de uma certa irracionalidade?

Maffesoli - Veja, eu faço uma crítica do racionalismo, não da racionalidade. Ou seja, do racionalismo como sistematização desse pensamento do desencanto onde evacuamos oficialmente a referência a Deus ou ao espiritual. Esse racionalismo é um dos grandes elementos da modernidade. Já a racionalidade, ou seja, o uso da razão, é uma característica individual, de cada um de nós, e da nossa espécie.

Proponho falar em uma "razão sensível": levar em consideração a importância da emoção e dos sentidos na construção do conhecimento e do sentido. São Thomas de Aquino [filósofo do século 13] mostrou a conexão que existia entre corpo e mente. Nunca há nada no intelecto que não tenha estado primeiro nos sentidos, isto é, no corpo humano.

Mas sim, claro, é possível ver na França e na Europa em geral como certos intelectuais, políticos e jornalistas têm medo do retorno de uma irracionalidade. E é verdade que isso é assustador.

Essas elites continuam ancoradas nos valores modernos, na importância do racionalismo, e não conseguem entender [esse novo movimento]. Na França, isso é um problema real. [A elite] não consegue entender que outra maneira de estar no mundo está ressurgindo, principalmente entre as gerações mais jovens, que não são racionalistas.

·        Você tem alguma hipótese de por que as gerações mais jovens estão abandonando o racionalismo?

Maffesoli - Fui aluno do [antropólogo] Gilbert Durant, que é um grande especialista em imaginário. Ele fala de estruturas antropológicas e da importância do imaginário, em especial do imaginário religioso. O imaginário, o simbólico, cria estruturas, forma um sistema. E, em certos momentos, essa estrutura é marginalizada, se torna secundária. Isso é secularização.

Depois de um certo ponto, de três ou quatro séculos de secularização, há uma saturação disso. O mecanismo de saturação é um mecanismo muito simples, mas que nos permite entender que há um cansaço em relação ao racionalismo. As pessoas ficam cansadas e desgastadas, é uma desestruturação da grande cultura moderna.

Se você olhar historicamente, a cada três séculos, há uma saturação do que é dominante naquele momento. Estamos saindo de uma era onde o que domina é a razão humana, é Apolo [deus grego que representa essa razão], para uma era dionisíaca [Dionísio representa o prazer, os sentidos].

·        O senhor fala de uma transformação na expressão do sagrado. Que transformação é essa?

Maffesoli - Na verdade, a palavra que uso com mais frequência é a palavra sacro, não sagrado. O autor [e filósofo] Jacques Maritain usa esse termo. Pego essa expressão para falar de algo que se difunde, se difrata, que, de alguma forma, "contamina" a sociedade. O que vejo na França é um retorno das missas tradicionais, de peregrinações, dos jovens que vão para a Jornada Mundial da Juventude. É uma série de pequenas coisas.

Claro que falo pela Europa e França, não sou especialista em Brasil, embora ame e venha aqui com frequência. Mas é curioso: um dos meus pesquisadores fazia um estudo em Paris, a cidade onde nasceu o racionalismo, e encontrou quatro ou cinco grupos franceses de candomblé. Para mim isso é um exemplo interessante dessa difração da religiosidade. E também meditação, ioga, astrologia.

Não é necessariamente um retorno a religião estruturada, mas uma religiosidade disseminada sem ter um aspecto estritamente institucional. Uma busca por novas formas de vivenciar a vida, que pode ser pela arte, pelo convívio, por expressões culturais que envolvem a emoção compartilhada.

·        Qual o papel da internet nessa movimentação?

Maffesoli - É importante. Nas redes sociais, na internet, vemos a multiplicidade desses pequenos grupos, que se encontram, espalham ideias. Dou sempre um exemplo: encontrei um grupo de jovens que estão trabalhando na Summa Theologica de São Tomás de Aquino, que é um trabalho muito difícil. Então, a internet é um dos espaços de expressão dessa busca pelo incerto e imponderável.

·        Como vê o Brasil nisso tudo?

Maffesoli - A primeira vez que vim ao Brasil, em 1980, o que vi em São Paulo, em Recife... o que me marcou foi que os intelectuais por aqui eram muito dominados por um materialismo marxista e por isso tinham dificuldade de entender que havia uma difração dessa religiosidade.

Nas minhas últimas viagens, em especial em novembro (de 2024), quando estive no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, havia muita gente em uma grande conferência sobre o imaginário. Fiquei impressionado. Encontrei um encantamento com a vida cotidiana.

Acho que houve uma mudança ao nível global e os intelectuais mais jovens não têm medo de abordar esse tema da imaginação. Mas digo isso com cautela, não sou especialista em Brasil.

 

 

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