quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Jovens escravizados em Mianmar eram obrigados dar golpes pela internet em brasileiros

Os brasileiros Phelipe de Moura Ferreira e Luckas Viana dos Santos, mantidos reféns por três meses por uma máfia de golpes cibernéticos em Mianmar, no Sudeste Asiático, eram obrigados a aplicar golpes em outros brasileiros.

Eles tinham que se passar por uma modelo chinesa que pedia ajuda financeira e, caso não o fizessem, podiam sofrer punições que incluíam até eletrochoques.

É o que revelou Phelipe Ferreira em entrevista ao g1 sobre a rotina de escravidão em KK Park. Ele se tornou vítima de tráfico humano após aceitar uma falsa oferta de emprego em novembro de 2024. O local é considerado uma "fábrica de golpes online". (Assista acima.)

Segundo ele, havia um roteiro a ser seguido. "Nesse script, a gente perguntava para o cliente, no primeiro dia, informações como nome, idade, país onde morava, se era solteiro, casado, viúvo, com o que trabalhava e o salário. Já no quarto dia a gente pedia uma ajuda. Falava que trabalhava numa plataforma online chamada Wish e, se ele ajudasse, ganhava uma comissão de 30 dólares", contou.

No outro dia, eles voltavam a pedir ajuda. O cliente ganhava a comissão, só que, dessa vez, tinha que terminar de fazer algumas tarefas na plataforma. Ele recebia uma ordem da sorte e precisava fazer recargas.

Era aí que a gente começava a tirar o dinheiro do cliente. A primeira recarga era de 150 dólares, a segunda, 500 dólares... até completar o valor de 5 mil dólares. — Phelipe Ferreira

O jovem também contou que, por ser brasileiro, foi obrigado a aplicar golpes em outros brasileiros. Ele lembra sempre que terminava o turno e chorava no quarto.

"Eu fiz a parte dos brasileiros e tentei enganar tanto mulher como homem, mas brasileiro é mais inteligente. Então, eles já sabiam que aquilo era um golpe. Mas o pessoal de outros países, como Rússia, Ucrânia, países da América, era mais fácil de enganar".

Phelipe relatou que uma cliente do Caribe chegou a sofrer um golpe de um chinês de 350 mil euros. Ela fez empréstimo e comprou uma casa, porque o golpista prometeu que viajaria ao Caribe para viver com ela.

Depois, a máfia queria que o brasileiro tentasse extorquir mais dinheiro dela. "Eu tentava desviar o assunto com ela, mas meu antigo líder falava: 'Não, a gente vai ter que dar golpe, ela é rica'. Eu tentava procurar gente mais pobre para não dar certo o golpe, mas aí eu poderia ser punido. Era horrível", conta.

Segundo Phelipe, ele e outros imigrantes trabalhavam, em média, 16 horas aplicando golpes cibernéticos, e eram monitorados a cada 10 minutos.

"Às vezes, a gente trabalhava 22 horas por dia. A gente tinha nossos líderes de equipe, todos chineses, e monitoravam a gente a cada 10 minutos. Se eu não cumprisse aquela meta, no final do mês eu ia receber a punição. A punição ou era eletrochoque, espancamento ou squat down, que é fazer agachamento. Eu recebi punição três vezes", conta.

O brasileiro ressaltou que não chegou ser eletrocutado nem espancado, mas recebeu três vezes a punição de fazer agachamento.

Tive que fazer, na primeira vez, 100 agachamentos em cima de uma plataforma que tinha uma espécie de prego na parte de cima. Na segunda punição, foram 300 vezes e, na terceira punição, foram 500 agachamentos. — Phelipe Ferreira

Depois, ele conta que não conseguia andar: "A minha perna travou, mas, mesmo assim, eu tinha que trabalhar".

Phelipe ainda relatou que viu outros reféns sofrendo agressões e que pensava que uma hora seria morto.

"Quando eu fecho meus olhos para dormir, eu tenho reflexos do que vivenciei. Eu ainda consigo lembrar os guardas entrando no quarto, porque no meu quarto tinha uma pessoa de outra nacionalidade, tanto que a gente o chamava de Camboja. Ele tentou escapar sozinho e pegaram ele. Ele foi espancado durante 20 dias, levando eletrochoque, e foi preso. Tiraram tudo que era confortável para dormir, deixando-o preso na cama de ferro com pés amarrados".

"Eu pensava: 'vão matar gente'. O meu maior medo era o medo de levar choque. Porque eu sei que levar choque pode matar a pessoa. O meu maior medo era esse. Por isso que eu tentava fazer o meu melhor, eu tentava fazer o meu melhor para eles não me eletrocutar e não me espancar", ressaltou.

·        Amizade com outro brasileiro

Phelipe contou que soube que havia outro brasileiro feito refém por uma mulher de Filipinas. Durante os meses que ficou preso pela máfia, ele era proibido de se comunicar com o Luckas.

"Eu fui saber do Luckas três dias depois que cheguei e foi por uma filipina. Ela falou para mim: 'você sabia que tem um brasileiro aqui ainda?'. Aí eu perguntei: 'como assim tem um brasileiro?'. Ela disse: 'sim, tem um brasileiro aqui'. Aí eu falei: 'Qual é o nome desse brasileiro?'. Aí ela falou: 'Luckas'. Aí eu perguntei: 'Mas cadê ele?'. Ela falou assim: ele está preso".

"Aí me falaram que ele não queria trabalhar e que prenderam ele. Aí no mesmo dia eu estava indo para o meu dormitório, eu errei a porta do dormitório onde dormia e eu vi o Luckas lá amarrado com as duas mãos em um quarto todo escuro".

Apesar de serem proibidos de se comunicarem por serem da mesma nacionalidade, Luckas e Phelipe se aproximaram e combinaram a fuga juntos. "Era um dando ajuda para o outro. A gente se encontrava fora do trabalho e ele estava quando combinamos a fuga", afirmou.

·        A fuga

A fuga foi combinada pelos reféns, que conseguiram avisar familiares e ativistas sem que fossem descobertos pelos mafiosos, que monitoravam tudo.

Após fugirem, eles foram detidos por agentes do DKBA (Exército Democrático Karen Budista) e, na sequência, levados para um centro de detenção. Três dias depois, foram transferidos para a Tailândia, onde aguardaram a embaixada brasileira até sábado (15).

"A gente planejou a fuga três vezes. A primeira fuga seria no dia 1º de janeiro, que foi quando eles deram uma folga pra gente. A segunda vez a gente tentou no ano novo chinês, que foi no dia 28 de janeiro, só que a gente ficou sabendo que ia ter mais de 500 guardas no rio. E então, nós planejamos para o dia 8 para fazermos a fuga".

"Foi Deus que me ajudou. Eu não sabia que conseguiria ser forte esse tempo todo. Eu falava para o pai: "Pai, eu não vou aguentar, pai, eu não vou aguentar, pai, eu não vou aguentar". E meu pai falava: "Não, você consegue, você é forte, você já sobreviveu, você já passou por muitas coisas".

Phelipe ainda afirmou que, assim que subiram um dos três montes, um grupo rebelde os deteve.

"O guarda veio atrás de mim com um facão e falou para mim: 'volta'. Eu falei: 'Não, pode deixar, eu vou voltar'. Aí foi na hora que eu olhei para o céu falei: "Deus, agora seja da tua vontade, eu estou cansado". E aí levaram a gente para um quarto. Lá naquele quarto a gente ficou durante um dia. O meu antigo chefe entrou no quarto junto com o meu antigo líder e espancou a gente".

"Então, nesse momento nesse momento eu já não tinha mais esperança. Mas depois de um dia que a gente estava lá, a tribo Karen entrou lá e resgatou a gente. Nesse momento, quando eles falaram isso, eu chorei tanto, mais tanto, mais tanto".

·        Futuro

Agora, Phelipe disse que só quer voltar para casa e alerta sobre os cuidados necessários para não ser vítima de tráfico humano.

"Eu ver pessoas sendo espancadas, levando choque, ver o Lucas que eu não podia falar, uma pessoa da minha própria nacionalidade, ser espancado e você não poder fazer nada. Aquilo me machucava bastante. Eu sempre ia para o meu quarto chorar, porque eu não eu não eu não aguentava ver aquilo. Agora quero descansar, terminar minha faculdade e fazer tratamento psicológico para esquecer".

"Eu vim para cá com um sonho. Só que esse sonho foi destruído, né? E o alerta que eu tenho para dar para as pessoas é sempre procurar saber mais sobre a empresa que você vai trabalhar, procura saber o local que você vai trabalhar, procura saber se é realmente legalizada essa empresa".

·        Cronologia

O g1 elaborou uma linha do tempo que destaca os principais acontecimentos do caso. Veja abaixo:

·        Outubro de 2024

A mãe do paulistano Luckas Viana dos Santos, de 31 anos, conta que o filho tem amigos na Ásia e recebeu uma proposta de um deles que morava na região para trabalhar em um cassino nas Filipinas no começo de 2024.

Luckas foi para lá, começou a trabalhar no cassino, mas meses depois o estabelecimento fechou. Como não tinha dinheiro para voltar ao Brasil, ele procurou por outras oportunidades de trabalho pela região.

Foi quando recebeu pelo Telegram o convite para trabalhar na área da tecnologia em Mae Sot, cidade tailandesa que faz fronteira com Mianmar. A viagem foi marcada para 7 de outubro.

"Ele falou que ia para Tailândia que lá era mais barato e que o dinheiro que tinha dava pra ir pra lá. Estranhei o primeiro telefonema porque ele disse que não estava bem", afirmou Cleide Viana, em entrevista ao Fantástico em dezembro de 2024.

Luckas acabou sendo levado pelos mafiosos para KK Park, em Minamar, e passou a ser escravizado pela máfia de golpes cibernéticos, sendo obrigado a aplicar golpes.

·        Novembro de 2024

Já o outro paulistano, Phelipe de Moura Ferreira, foi feito refém em novembro de 2024.

O pai dele Antônio Ferreira, conta que o filho já havia trabalhado em 2023 em Laos, no sudeste da Ásia, em Dubai, nos Emirados Árabes e em Filipinas. Em 2024, ele retornou ao Brasil e teve uma proposta de emprego no Uruguai. Então, decidiu sair novamente do país para trabalhar fora.

Quando estava no Uruguai, ele recebeu pelo Telegram uma proposta de emprego na área da tecnologia na Tailândia. "Essa suposta empresa comprou a passagem dele para Tailândia, do Uruguai para Tailândia", diz o pai.

Phelipe relatou, na época, que um motorista ia pegá-lo no hotel. Foi esse motorista que o levou para a área em Mianmar, onde se tornou refém com outros imigrantes, sendo obrigado a aplicar golpes. O local é o mesmo onde Luckas já estava. Os dois, até então, não se conheciam.

·        Dezembro de 2024

Phelipe ficou semanas sem dar notícia, até conseguir se comunicar escondido com a família. O pai procurou a polícia, mas foi orientado a Embaixada do Brasil Mianmar. Luckas também conseguiu se comunicar com a família em dezembro. A mãe dele passou a divulgar o caso nas redes sociais pedindo ajuda.

As duas famílias, então, passaram a ser assistidas pela ONG The Exodus Road", organização civil internacional de combate ao tráfico de pessoas.

·        15 de janeiro de 2025

Em 15 de janeiro, houve uma reunião entre integrantes da ONG e representantes do governo de Mianmar e da Tailândia para a liberação de 371 vítimas de tráfico de pessoas, entre elas os dois brasileiros.

·        8 de fevereiro de 2025

Phelipe de Moura Ferreira avisou o pai que tentaria a fuga no último sábado (8) junto com outros imigrantes. Nas mensagens, às quais o g1 teve acesso, ele contou que ia cruzar um rio com outras 85 pessoas e correr por dois quilômetros. Phelipe pediu orações e ainda se despediu caso algo acontecesse com ele.

Luckas Viana também avisou a família. E, na sequência, ativistas foram informados sobre a fuga e já se mobilizaram em relação às documentações que comprovassem que os dois eram vítimas de tráfico humano.

·        9 de fevereiro de 2025

Phelipe e Luckas conseguiram fugir entre a noite de sábado (8) e madrugada de domingo (9) com centenas de imigrantes. Os detalhes de como conseguiram fugir não foram divulgados.

Eles acabaram detidos por um grupo rebelde chamado DKBA (Exército Democrático Karen Budista), que os encaminharam a um centro de detenção local após negociações com a ONG Exodus Road.

·        12 de fevereiro de 2025

Phelipe, Luckas e outros imigrantes foram transferidos para um centro de detenção em Mae Sot, cidade tailandesa que faz fronteira com Mianmar, onde estão sendo feitos procedimentos para comprovarem que são realmente vítimas de tráfico humano.

Os dois entraram em contato com as famílias e passam bem. Eles aguardam a embaixada brasileira os retirarem do centro de detenção para conseguirem ser repatriados.

"No caso deles, a gente já tem toda a documentação. É um procedimento legal e em 15 dias eles serão liberados. Tendo a liberação, eles vão ser encaminhados para a embaixada que deve, aí sim, cumprir o repatriamento que foi já solicitado pela dona Cleide [mãe de Luckas] e pelo senhor Antônio [pai de Phelipe] junto a DPU, que é a carta de hipossuficiência com pedidos de repatriamento de vítimas de tráfico no exterior".

·        13 de fevereiro de 2025

O pai de Phelipe de Moura Ferreira contou ao g1 que fez videochamada com o filho na manhã desta quinta-feira (13) e viu as marcas das agressões que ele sofreu.

"Ele ligou para mim e mostrou o machucado dele. Está com perna toda vermelha, braço todo vermelho, de tanto choque e paulada que levava lá. Aqueles malditos", afirmou Antônio Carlos Ferreira.

Conforme Antônio, ele foi avisado nesta quinta-feira (13) que no sábado (15) a embaixada brasileira iria retirar Phelipe e Luckas da base militar onde estão em Mae Sot, Tailândia, e levá-los para Bangkok.

A mãe de Luckas também foi informada na quinta-feira (13) sobre essa retirada que será feita pela embaixada e se disse aliviada. "Ele me ligou na madrugada e está bem, graças a Deus. E agora eu estou bem", afirmou Cleide Viana.

·        15 de fevereiro de 2025

A embaixada brasileira conseguiu retirar os brasileiros de Mae Sot, e os levou para Bangkok, onde ficaram em um hotel.

O que diz o Itamaraty

"O Itamaraty tomou conhecimento, com grande satisfação, da liberação hoje, 11/2, de dois brasileiros vítimas de tráfico de pessoas na fronteira entre Myanmar e Tailândia.

O Itamaraty, por meio de suas Embaixadas em Yangon, no Myanmar, e em Bangkok, na Tailândia, vinha solicitando os esforços das autoridades competentes, desde outubro do ano passado, para a liberação dos nacionais. O tema foi também tratado pela Embaixadora Maria Laura da Rocha, na ocasião na qualidade de Ministra substituta, durante a IV Sessão de Consultas Políticas Brasil-Myanmar, realizada em Brasília, em 28 de janeiro último. Em suas gestões, a Embaixadora Maria Laura da Rocha reforçou a necessidade de esforços contínuos para localizá-los e resgatá-los.

O setor consular do Itamaraty manteve, ainda, contato permanente com as famílias.

A proteção de nacionais vítimas de tráfico e contrabando de pessoas no exterior tem sido uma prioridade da política consular brasileira.

Em um esforço de conscientização de brasileiros que buscam oportunidades de emprego no exterior, o Itamaraty tem ativa participação no IV Plano Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas, no âmbito do qual produziu guias on-line sobre tráfico de pessoas (https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/portal-consular/cartilhas/trafico-de-pessoas) e sobre os perigos específicos das ofertas de emprego no Sudeste Asiático (https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/portal-consular/alertas%20e%20noticias/alertas/myanmar-aliciamento-de-brasileiros-contratos-de-trabalho/folheto_orientacao-repatriacao-e-retornados.pdf).

O Portal Consular do Itamaraty (https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/portal-consular) alerta sobre o aumento do número de caso de recrutamento de brasileiros para trabalho em plataformas digitais de apostas, na Ásia, em condições migratórias e laborais precárias. Ademais, o Itamaraty coopera, dentro de suas competências, com as ações do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal.

Em atendimento ao direito à privacidade e em observância ao disposto na Lei de Acesso à Informação e no decreto 7.724/2012, o Ministério das Relações Exteriores não fornece informações sobre casos individuais de assistência a cidadãos brasileiros".

 

Fonte: g1

 

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