Os dois
lados do Congresso Nacional Africano
A
política durante o apartheid tinha uma certa simplicidade linear. Sempre era
bastante nítido quem era o principal inimigo. As coisas se embaralharam com a
democratização. Mas uma certa medida logo foi restabelecida — pelo menos para a
esquerda outsider. Um bloco hegemônico neoliberal se formou no cume do poder,
unindo as antigas elites empresariais brancas a uma emergente “burguesia negra
corporativa”, como disse Roger Southall. As linhas de batalha estavam nítidas
mais uma vez.
Essa
era terminou em algum momento por volta de 2014, durante o governo de Jacob
Zuma. Alimentada pela economia corporativa, uma nova elite rival fez sentir sua
presença plena nesse período. Ela assumiu o comando de um conjunto mais amplo
de forças nascidas das “economias informais” do estado de patronagem do
Congresso Nacional Africano (ANC) e estiveram comprometidas com uma forma mais
robusta de redistribuição racial, sem pretensões progressistas.
Com
a derrota de Zuma no congresso nacional do ANC em 2017, as forças da
“transformação econômica radical” (RET) foram brevemente repelidas. Mas elas
ressurgiram com força total no mês passado, quando o novo partido uMkhonto
weSizwe (MK) de Zuma ganhou 14,6% dos votos nas eleições nacionais, negando ao
ANC sua maioria eleitoral pela primeira vez desde a democracia. Combinados com
os Combatentes pela Liberdade Econômica (EFF), partidos dedicados ao RET
ocuparam cerca de um quarto das cadeiras no novo parlamento.
O
campo político agora é dominado por dois blocos opostos — o liberal (Aliança
Democrática [DA] e alguns partidos menores) e o autoritário-cleptocrático (EFF
e MK), com o ANC dividido entre os dois e a esquerda infelizmente fora de cena.
À
esquerda, duas respostas ao 29 de maio têm sido predominantes. Primeiro, uma
corrida às falsas equivalências: somos lembrados da verdade primordial de que
tanto os liberais quanto os cleptocratas são “ruins”, mas a comparação não vai
além disso. Segundo, denúncia seletiva: os defeitos e malevolências de um lado
são minuciosamente analisados, enquanto o outro é ignorado.
Isso
não vai resolver. Ser forçado a navegar entre duas escolhas terríveis não é o
mundo que queremos, mas é o mundo em que estamos. Ignorar e desejar que esses
dilemas desapareçam é abdicar do nosso dever estratégico e tornar mais provável
que acabemos com o pior dos dois.
Para
decifrar o “significado” dos blocos contenciosos, não basta apenas colocá-los
no espectro ideológico e invocar seus análogos históricos. Precisamos situá-los
em nossa conjuntura concreta e traçar como cada um irá remodelar o terreno
político-econômico de maneiras que ou promovam ou impeçam a construção de uma
alternativa progressista.
Então,
o que as diferentes combinações de coalizões significam para a África do Sul e
para a classe trabalhadora? Muitos na esquerda pensam que um acordo ANC-DA
prenuncia uma guinada gigante mais profunda no neoliberalismo. Eles preveem
continuidade na “prudência fiscal” acompanhada de um retrocesso das plataformas
de bem-estar que o ANC conseguiu implementar. Não propenso à falsas
equivalências, Luke Sinwell descreveu isso como a
“maior ameaça de todas para aqueles que buscam reparações históricas.”
Implícito
em muitos desses relatos parece estar a suposição de que a DA mantém toda a
alavancagem nas negociações de coalizão, dando-lhe o poder de ditar a agenda
legislativa de qualquer novo governo. Isso está errado, pois, como todos sabem,
a DA não é a única escolha do ANC. O EFF e o MK detêm assentos parlamentares
suficientes para aproximar ou ultrapassar o ANC dos 50%.
Os
líderes da DA rotulam uma aliança do ANC com qualquer um desses partidos como
uma “coalizão do juízo final”, e isso não deve ser visto apenas como mera
retórica eleitoral. Sempre predispostos a contos de colapso social tingidos de swart
gevaar, é provável que muitos no partido acreditem genuinamente que tal
coalizão colocará o país em um caminho de Zanuzação. Infelizmente, essas
preocupações não são inteiramente sem mérito, por mais odiosos que sejam seus
pressupostos.
Os
mesmos temores são sentidos com a mesma intensidade nos escritórios executivos
de Sandton, e isso terá um grande impacto no processo de negociação. O telefone
da presidente do conselho federal da DA, Helen Zille, deve ter tocado
incessantemente nas últimas semanas, à medida que CEOs desesperados a
pressionam para deixar de lado a ideologia e reforçar um pacto de estabilidade
com o presidente Cyril Ramaphosa.
Por
isso, a DA tem repetidamente dito que fará “qualquer coisa” para impedir que os
cleptocratas voltem ao poder — não exatamente a linguagem de um partido que
detém todas as cartas. Naturalmente, haverá dissensão nas fileiras, com alguns
pressionando por termos mais duros ou tentando sabotar o acordo por completo.
Mas o fato é que, à medida que as negociações começam, a vantagem da DA está
longe de ser esmagadora.
Não
podemos prever exatamente o que um acordo ANC-DA — seja como coalizão ou
“confiança e apoio” — implicará. Mas parece altamente improvável que envolva a
revogação de qualquer uma das principais medidas redistributivas do ANC — o
salário mínimo, a Black Economic Empowerment ou o National
Health Insurance (sobre o Basic Income Grant, ambos os
partidos estão nominalmente alinhados). Um movimento nessa direção seria um
suicídio político para Ramaphosa e, por sua vez, para o pacto centrista.
Do
ponto de vista das políticas, o resultado mais provável de um acordo DA-ANC é
uma continuidade direta. Esse parece ser o objetivo explícito tanto dos
principais líderes da DA, quanto de seus apoiadores corporativos.
No
curto prazo, a continuidade não é totalmente ruim, dado que, pelo menos em
certos aspectos, estamos atualmente em uma trajetória de recuperação lenta das
profundezas em que Zuma nos inseriu. Cinco anos de fôlego para que as reformas
meticulosas de Ramaphosa ganhem terreno podem permitir que instituições
públicas-chave saiam da UTI.
Pode
até ter um ou dois aspectos positivos, com esperanças de progresso na reforma
do setor público. A história mostra que partidos dominantes são mais propensos
a abrir mão de poderes de nomeação quando ameaçados, de que seus oponentes
possam usar das mesmas armas contra eles — essa é a realidade que o ANC agora
enfrenta, à medida que a administração subnacional escapa de seu controle.
No
médio e longo prazo, entretanto, a continuidade é inequivocamente ruim. Muitos
dos tratamentos que estão sendo aplicados para evitar o colapso causarão
grandes complicações no futuro. A privatização pode fazer os trens voltarem a
funcionar e manter as luzes acesas a curto prazo. A longo prazo, entregará o
poder infraestrutural às grandes empresas e minará a capacidade do estado de
imaginar e implementar transformação estrutural e adaptação climática.
Se
o registro histórico mostra alguma coisa, é que a austeridade contínua não
resolverá a crise da dívida e empurrará as pessoas mais profundamente para os
braços dos manipuladores. As políticas neoliberais são a causa raiz da
polarização no país e não serão a solução.
Um
pacto com a DA pode trazer um retorno à tendência pré-Zuma, mas essa tendência
já era de crise.
Então,
esse cenário é a “maior ameaça de todas para aqueles que buscam reparações
históricas”? Categoricamente não. Há, infelizmente, um cenário muito pior que é
possível caso o segundo dos blocos contendentes — os cleptocratas — que ganham
ascendência.
Antes
de expor esse cenário, devemos enfatizar que é apenas uma possibilidade mais
alarmante, mas não necessariamente mais provável, de como as coisas podem vir a
se desenrolar. Certamente existem alguns mundos em que uma aliança ANC-EFF
termina novamente em continuidade, talvez até mesmo alguns nos quais leva a
rupturas progressistas (muito menos se o MK for o ator principal). Ler os
sinais sempre é complicado quando o EFF está envolvido, já que muito do que
ocorre nesse partido depende das preferências e inclinações de um indivíduo.
Mas,
ao mesmo tempo, seria um erro personalizar excessivamente as dinâmicas dentro
do EFF. A tendência do partido para a corrupção não é simplesmente um reflexo
da própria predileção do líder do partido, Julius Malema, que embaça as
fronteiras entre as finanças públicas e pessoais. É um reflexo da imbricação
histórica de sua organização e seus antecedentes nas economias informais do
estado-partido do ANC. O clientelismo não é uma escolha política para o EFF; é
uma realidade estrutural, na qual o poder e a legitimidade da liderança —
incluindo Malema — se sustentam.
O
mesmo se aplica, ainda mais fortemente, aos seus irmãos em guerra no MK.
Quando
Malema disse que o EFF e o MK são “parentes”, ele falou mais
verdades do que normalmente costuma fazer. Ainda assim, o observador externo
pode ser perdoado por alguma confusão — apesar da persistência de alguns na
mídia em tentar associar o MK com a Esquerda, essa é uma formação política
flagrantemente de direita, chauvinista, etnocêntrica, dedicada a reviver a
autoridade feudal.
O
EFF é uma criatura muito mais complexa. No papel, ele se inspira mais em Marx
do que em Mangosuthu Buthelezi. Em suas fileiras há progressistas genuínos,
comprometidos com a democracia no mundo, mesmo que estejam falhando em
praticá-la em casa.
Mas
na realidade prática, como afirma Malema, os dois estão mais alinhados do que
separados, porque são governados pelas mesmas realidades estruturais do
clientelismo. A ideologia tende a ficar em segundo plano diante das forças
materiais que lubrificam os músculos do poder dentro de suas respectivas
organizações e os vinculam à sua base.
Isso
significa que o compromisso com a corrupção provavelmente será a agenda predominante para essas formações.
Isso pode sugerir uma maneira de contê-las. Certamente existe um cenário no
qual o EFF cede a maior parte de sua agenda política em troca de acesso a
recursos.
No
entanto, caso as forças de RET voltem a controlar o ANC — um resultado mais
provável com uma coalizão com um partido cleptocrata — poderíamos muito bem ter
um resultado muito mais grave, um retorno aos “anos incríveis” de Zuma, como
sua filha colocou.
É
justo que a esquerda trate as ameaças sobre a “confiança dos investidores” com
algum ceticismo, porque os líderes empresariais tendem a usá-las de forma sutil
até mesmo quando questões menores estão em jogo. Este não seria um desses
momentos. Um pleno revival da agenda de captura do estado poderia empurrar os
investimentos para a beira do precipício.
A
partir daí, dois resultados são os mais prováveis. Um é que a coalizão
ANC-EFF-MK será trazida à razão pelas realidades do “poder estrutural” do
capital. Enfrentando essa calamidade, eles podem recuar, nomeando ministros
pró-mercado e tentar conter ou pelo menos centralizar o clientelismo.
Voltaremos assim ao status quo anterior — com “fundamentos”
neoliberais e corrupção contida. Alternativamente, as forças de RET podem ser
depostas pelos próprios vitimados pela crise econômica, usando o voto ou a
força.
Este
é o modo normal como as coisas funcionam sob o capitalismo. A política opera
dentro dos limites estabelecidos por aqueles que têm poder de veto sobre o
investimento.
Mas
ocasionalmente as regras falham em se aplicar. O poder estrutural é indireto.
Em última análise, ele depende de forças políticas não subordinadas à classe de
investidores para ser efetivado. E, às vezes, essas forças não vão seguir o
roteiro.
Se
RET não puder ser forçado a obedecer aos “espíritos animais” dos investidores,
então a única maneira seria essa brecha se alargar. A economia vai sentir o
impacto e os cleptocratas eventualmente responderão com expropriação, esperando
usurpar a prerrogativa do capital sobre o investimento e conter o problema em
sua fonte. Eles não o farão para colocar os trabalhadores no comando, mas para
criar uma nova burguesia dócil.
Uma
vez que a santidade da propriedade seja violada, haverá poucos caminhos para a
desescalada. A Venezuela se antecipou.
É
claro que, neste ponto, ou RET cai ou o sufrágio o faz. Enquanto o povo decide,
nenhum partido pode governar através de uma crise sustentada. Não haverá
“reparação histórica” alguma se nossas liberdades básicas forem perdidas.
Sinwell
distorce o cálculo estratégico ao minimizar o quanto o MK está abertamente
comprometido com este resultado. Felizmente, ele não é fã nem do EFF, nem do
MK. Mas parece localizar seus problemas no nível de personalidades e ideias.
Ele critica corretamente Zuma por seu sexismo, mas negligencia mencionar o seu
anticonstitucionalismo e o histórico de tentativas de fomentar insurreições e
golpes. Muito menos, não dá atenção às correntes sociais das quais essas
práticas emergem.
A
tendência antidemocrática é menos virulenta no EFF, mas ainda assim
proeminente. Seria ingênuo acreditar que Malema deseja administrar o estado de
maneira diferente de como administra seu próprio partido.
Em
certo sentido, não são as políticas, mas a organização do estado que é o
principal foco de conflito hoje. Os neoliberais querem acorrentar o estado ao
mercado. Os cleptocratas querem privatizá-lo e subjugá-lo. A lógica de seus
programas leva a um conflito com a forma democrática do estado.
Ambos
irão obstruir alternativas progressistas. Mas a ameaça que representam não é
igual.
Fonte:
Por Niall Reddy com tradução de Priscilla Marques para Jacobin Brasil
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