quinta-feira, 27 de junho de 2024

Licenciamento de maior termelétrica do país avança contrariando parecer do Ibama

O processo de instalação da maior termelétrica da América Latina, contestada pelo Ministério Público Federal (MPF), por especialistas e pela sociedade civil, está prestes a avançar mais um passo. A Natural Energia, responsável pelo projeto em Caçapava, a 115 km de São Paulo, no Vale do Paraíba, conseguiu marcar duas audiências públicas para a semana que vem, com autorização do Ibama. O agendamento, no entanto, ocorre contrariando um parecer técnico do próprio órgão ambiental.

O empreendimento tem sido contestado pelos impactos climáticos e ambientais que pode causar desde que seu plano de instalação foi anunciado, em 2022, e chegou a ter o processo de licenciamento suspenso no começo deste ano.

Em 30 de abril, duas analistas ambientais do Ibama assinaram documento apontando uma série de problemas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apresentado pela Natural Energia. No parecer, as especialistas do órgão recomendaram que audiências públicas para tratar do empreendimento só ocorressem após a empresa apresentar as complementações demandadas. Ignorando a opinião técnica, a Diretoria de Licenciamento Ambiental (Dilic) do Ibama marcou duas audiências para o início de julho, uma em Caçapava e outra na cidade vizinha de São José dos Campos, sem que o estudo fosse corrigido.

Em mensagem enviada após a publicação da reportagem, o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, afirmou que as audiências estão sendo feitas apenas por decisão judicial. Também disse que a realização desses eventos “não significa avanço”.

“Temos algo muito equivocado no Brasil na regulação das térmicas. O licenciamento acontece para que as empresas possam disputar os leilões. Infelizmente ocorre muito licenciamento especulativo que nunca será realizado. As audiências públicas são etapas importantes para garantir a participação social no processo, mas não são garantia alguma de emissão de licença”, disse.

Alvo de críticas de especialistas e de ativistas locais, a Usina Termelétrica (UTE) São Paulo, movida a gás natural, terá 1,74 gigawatts (GW) de potência instalada, caso consumada. Isso é 16% a mais do que a UTE Porto de Sergipe I, a maior da América Latina atualmente. O objetivo é que a energia gerada faça parte do Sistema Interligado Nacional (SIN), que abastece a maior parte do país.

<><> Por que isso importa?

•           Usina movida a gás natural é contestada por potenciais danos ambientais e por aumentar as emissões do país de gases de efeito estufa – os principais responsáveis pelo aquecimento global

•           Analistas do Ibama apontaram que empresa Natural Energia deveria fazer correções no estudo ambiental, o que ainda não ocorreu

A principal preocupação dos ambientalistas é em torno do potencial da usina de emissão de gases de efeito estufa – os principais responsáveis pelo aquecimento global. Apesar de menos poluente que outros combustíveis fósseis usados em termelétricas, como o carvão mineral e o óleo diesel, a queima do gás natural para geração de energia continua tendo como subproduto o gás carbônico (mesmo que em menor quantidade que os demais) e o metano, que tem um potencial calorífico maior.

Se entrar em operação total, a usina emitirá até 6 milhões de toneladas de CO2 equivalente por ano, aumentando as emissões da matriz elétrica brasileira em um momento em que elas deveriam cair para ajudar a conter as mudanças climáticas. O montante é 2.000 vezes maior do que todas as emissões da cidade de Caçapava entre 2000 e 2022, segundo estudo do Instituto Arayara.

Outra preocupação é com possíveis danos que a operação da usina possa trazer ao entorno. O parecer técnico ignorado pela Dilic/Ibama aponta a “insuficiência do EIA, com a ausência de informações importantes para a compreensão das atividades, aspectos e impactos decorrentes do empreendimento”. Segundo as técnicas que assinam o documento, Leonora Milagre de Souza e Tatiana Veil de Souza, ambas lotadas em Brasília (DF), isso inviabiliza uma “manifestação conclusiva quanto à viabilidade ambiental do projeto”.

O documento pede que a empresa complemente vários aspectos do estudo ambiental antes da realização de audiência pública, incluindo a caracterização do projeto, alternativas locacional e tecnológica, diagnósticos dos meios físico e socioeconômico, avaliação dos impactos, medidas ambientais e programas ambientais.

A Natural Energia, empresa responsável pelo projeto, atua na geração e infraestrutura de energia, desenvolvendo e operando projetos de energias solar, eólica e a gás natural, além de atuar no armazenamento de energia. A empresa afirma ter 5,0 GW de energia gerada em projetos desenvolvidos, o equivalente a 35% da capacidade instalada da usina hidrelétrica de Itaipu, a maior do país.

A Agência Pública questionou a empresa em relação às audiências públicas e a outros pontos problemáticos apontados no projeto, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.

•           Ibama afirma que “apenas cumpre decisão judicial”; MPF nega interpretação do órgão

No começo do ano, a Natural Energia e o Ibama chegaram a marcar uma audiência pública em Caçapava para 31 de janeiro. Isso gerou forte reação de ativistas locais e especialistas, que apontaram problemas no EIA e no Relatório de Impacto Ambiental (Rima) apresentados pela empresa, além de questionarem o prazo entre a publicação do edital de divulgação da audiência e o dia marcado para sua realização, que foi de apenas 15 dias.

Com base nisso, o MPF entrou com ação civil pública contra a Natural Energia e, horas antes da audiência, a 3ª Vara Federal de São José dos Campos deferiu o pedido de tutela provisória de urgência, suspendendo o licenciamento ambiental e a audiência pública.

Na decisão, o juiz determinou que a Natural Energia apresentasse certidão atualizada de ocupação e uso do solo e que o Ibama fizesse a análise dos estudos ambientais como condições para a continuidade do licenciamento. Além disso, estabeleceu que uma nova audiência fosse divulgada com no mínimo 30 dias úteis de antecedência após o cumprimento das demais exigências.

O Ibama recorreu por meio de agravo de instrumento, solicitando efeito suspensivo da decisão. O pedido foi indeferido, determinando que, no prazo de 15 dias, fosse designada “nova data para a realização de audiência pública, observada a antecedência mínima de 45 dias de que trata o artigo 2º da Resolução CONAMA nº 9/87”.

A decisão foi alvo de controvérsia entre Ibama e MPF.

Para o Ibama, a decisão do desembargador Wilson Zauhy Filho mudou o determinado em primeira instância e o agendamento de novas audiências públicas apenas cumpriu o decidido.

Para o Ministério Público Federal, no entanto, a “decisão liminar que suspendeu o licenciamento ambiental do projeto permanece vigente” e “as audiências públicas só podem ser realizadas após a conclusão da fase de análise do EIA/Rima, o que, no caso do projeto de Caçapava, ainda não ocorreu”.

Em nota enviada à reportagem, o MPF diz que “a decisão não alterou a liminar”. E continua: “Disso se conclui que, obviamente, o prazo mencionado de 15 dias só deve ser contado a partir da conclusão da fase de estudos de impacto ambiental. Assim, o MPF requer que a Justiça Federal declare que o Ibama está descumprindo a liminar e, consequentemente, suspenda as audiências públicas convocadas para 2 e 4 de julho”.

A Justiça Federal, no entanto, recusou o pedido do MPF na última segunda-feira, 24, mantendo o agendamento para o início de julho.

•           Impactos no ar, água e economia são questionados por especialistas e ativistas

Além dos problemas apontados pelas analistas ambientais do Ibama, o projeto tem sido alvo de críticas de especialistas e da população do Vale do Paraíba. Legislativos de seis municípios da região (Taubaté, São José dos Campos, Jacareí, Jambeiro, Monteiro Lobato e Santo Antônio do Pinhal) aprovaram uma moção de repúdio contra o empreendimento.

Em 2022, a Câmara dos Vereadores de Caçapava alterou a lei que dispõe sobre o zoneamento do solo, proibindo termelétricas no município. Uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, no entanto, derrubou liminarmente o dispositivo, afirmando que cabe exclusivamente à União legislar sobre energia, o que beneficiou a Natural Energia.

Um dos principais pontos questionados por especialistas e ativistas é justamente a posição geográfica do município, rodeado por duas cadeias de montanhas, a serra do Mar e a serra da Mantiqueira, o que dificulta a dispersão dos gases poluentes. Além do fato de a região já ter o ar saturado pela presença de muitas indústrias.

“São conhecidos os impactos negativos na saúde pública devido à poluição do ar gerada pela queima de combustíveis fósseis associada a vários problemas, como  respiratórios e cardiovasculares”, aponta Anton Schwyter, gerente de Energia, Clima e Geociências da organização não governamental Instituto Arayara.

No parecer técnico do Ibama, é questionada a análise feita pela empresa em relação a esse aspecto. “O estudo não identificou e analisou impactos decorrentes das emissões atmosféricas sobre a saúde da população e atividades turísticas e agropecuárias”, afirma o relatório.

O uso expressivo de recursos hídricos na geração de energia termelétrica também é apontado como um ponto problemático. Para operar, a usina vai consumir até 1,56 milhões de litros de água por dia, entre captações subterrâneas e de um córrego local – isso em uma região onde as bacias hidrográficas já estão sobrecarregadas e pequenos produtores rurais relatam enfrentar falta de água.

O montante é o equivalente ao consumo de 10,2 mil pessoas – mais de 10% da população de Caçapava, que tem 96,2 mil habitantes. A empresa já obteve outorga de captação dessa quantidade de água junto ao Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee).

O relatório do Ibama também aponta omissão da Natural Energia sobre o impacto hídrico. “Considerando que o empreendimento aumentará a demanda por serviços básicos, como água e saneamento, o estudo deve apresentar, neste item do EIA, avaliação específica sobre o consumo médio de água na área do entorno e de que forma a demanda hídrica […] e o tratamento dos efluentes durante as etapas de instalação e operação do empreendimento poderão comprometer a disponibilidade e a qualidade dos recursos hídricos, sobretudo na área rural em que está prevista sua localização.”

Ativista da Frente Ambientalista do Vale do Paraíba, Mariane Sanefuji lembra que a energia termelétrica é, além de poluente, mais cara do que a de fontes renováveis, como hidrelétrica, solar e eólica. “Se a gente começar a instalar termelétricas, o valor da energia vai aumentar. O consumidor vai sentir na saúde, vai sentir no desenvolvimento econômico do local e também vai sentir no bolso”, aponta.

O projeto em Caçapava é citado no relatório “Regressão energética: como a expansão do gás fóssil atrapalha a transição elétrica brasileira rumo à justiça climática”, lançado pela Coalizão Energia Limpa neste ano, como caso emblemático de empreendimento com “graves falhas no licenciamento e alto impacto socioambiental”.

O documento cita o marketing de sustentabilidade que tenta enquadrar o gás natural como parte da transição energética. “Nos últimos anos, o uso do gás fóssil deixou de ser um complemento emergencial e estratégico a ser acionado em momentos de crise hídrica para abocanhar fatia significativa dos investimentos na infraestrutura da geração elétrica brasileira, aumentando impactos socioambientais e o valor da tarifa repassada aos consumidores – e beneficiando poucos”, diz.

•           Lobby do gás avança

A tentativa de construção de uma termelétrica em Caçapava ocorre dentro de um contexto de intensificação do lobby do setor de gás, especialmente no Congresso Nacional.

No projeto de lei que privatizou a Eletrobras, por exemplo, foi incluído um “jabuti” – termo usado para dispositivos adicionados em projetos de lei que não guardam relação com seu escopo original – que determinou a contratação de 8 GW de energia gerada por termelétricas movidas a gás natural. A lei determinou que essas usinas fossem instaladas especialmente em localidades sem estrutura prévia para o suprimento de gás, o que pode elevar ainda mais os custos de uma energia que já é mais cara que as de fontes renováveis.

Segundo estudo da Coalizão Energia Limpa, a instalação de todas essas usinas tem a capacidade de gerar 20 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente (Mt CO2e) por ano, quase 40% de todas as emissões geradas pelo setor de energia em 2019. Até o momento, porém, os leilões relacionados ao jabuti fracassaram, por conta da dificuldade de infraestrutura para a instalação de projetos do tipo, especialmente no Nordeste.

A influência do setor de energia suja, entretanto, não arrefeceu e mostrou as caras novamente durante a tramitação do Projeto de Lei 11.247/2018, que pretende regulamentar as eólicas offshore no país. Graças ao lobby do gás natural – especialmente na figura do empresário Carlos Suarez, da Termogás – e do carvão, deputados incluíram emendas-jabuti que podem beneficiar ambos os setores no projeto, já aprovado na Câmara. Segundo cálculo da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, os jabutis podem provocar um custo de até R$ 28 bilhões por ano, a ser pago pelos consumidores.

 

•           MPF pede suspensão de nova licença concedida a porto em Santarém (PA) sem consulta prévia, livre e informada

O Ministério Público Federal (MPF) pediu este mês à Justiça Federal que suspenda mais uma licença ambiental concedida pelo Estado do Pará para o porto da empresa Atem’s no Lago do Maicá, em Santarém (PA), novamente sem consulta prévia, livre e informada a povos indígenas e a comunidades quilombolas e de pescadores potencialmente afetados pelas atividades do empreendimento.

A licença anterior permitia o armazenamento e transporte de combustíveis. A nova licença concedida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) à Atem’s amplia a autorização, permitindo que o terminal portuário também seja utilizado para o armazenamento e transporte de soja, milho, farelos e fertilizantes.

A pedido do MPF e do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), em 2020 a Justiça Federal no Pará havia suspendido o licenciamento. O Estado do Pará e a empresa entraram com recursos contra a decisão no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília (DF), e a decisão da Justiça Federal no Pará foi suspensa pelo tribunal. Em 2022, a Semas emitiu a primeira licença de operação e, no ano passado, emitiu a segunda.

Na ação ajuizada este mês, o MPF pede que a Justiça determine a suspensão da nova licença e, consequentemente, das atividades de armazenamento e transporte de granéis no porto até a realização da consulta livre, prévia e informada de indígenas, quilombolas e pescadores artesanais potencialmente afetados, de acordo com os respectivos protocolos de consulta.

O Lago do Maicá é o corpo hídrico mais importante da área urbana ou área periurbana (entre a zona urbana e a zona rural) de Santarém em termos de produção pesqueira, conforme indica o MPF na ação. O lago – que abrange um sistema de lagos, furos, igarapés, igapós e áreas alagáveis (várzea) – é tradicionalmente utilizado por diversas comunidades quilombolas, por indígenas e por pescadores artesanais, para pesca artesanal, navegação ou outras atividades de caráter tradicional.

<><> Povos e comunidades impactados

– Segundo estudos apresentados pelo MPF na ação, o porto tem potencial para impactar sete comunidades quilombolas (Pérola do Maicá, Arapemã, Saracura, Bom Jardim, Maria Valentina, Murumuru e Tiningu), o Território Indígena Munduruku e Apiaká do Planalto Santareno e áreas de pesca tradicional.

As comunidades quilombolas estão localizadas a menos de 15 quilômetros de distância do empreendimento, sendo que três delas estão a uma distância menor que dez quilômetros. Segundo portaria interministerial, há suposição legal automática de que empreendimentos portuários situados dentro desse raio de distância de terras quilombolas podem causar impactos significativos às comunidades.

Quanto aos pescadores artesanais, segundo informações de seu próprio protocolo de consulta, são 140 comunidades, com população de 35 mil pessoas, distribuídos em oito conselhos de pesca, dos quais o primeiro atua no Maicá. O porto está instalado a cerca de 2,1 quilômetros a montante da Boca do Maicá e de dezenas de outros importantes locais de pesca dos pescadores artesanais daquela região.

Além disso, o MPF alerta que o transporte de grãos pelo porto da Atem´s tem o potencial de incentivar a expansão do agronegócio – plantação de soja e milho, na terra firme, e pecuária, na área de várzea – na região conhecida como Planalto Santareno, onde estão localizadas cinco aldeias (Açaizal, Amparador, Ipaupixuna, São Francisco da Cavada e São Pedro do Palhão, que integram a Terra Indígena Munduruku e Apiaká do Planalto Santareno) e vários territórios quilombolas (Murumuru, Murumurutuba e Tiningu).

<><> Pressão e conflitos

– Inspeção feita pelo MPF em 2020 já registrava relatos sobre crescente pressão imobiliária nas áreas do Maicá após o anúncio dos empreendimentos portuários, “algo que deveria ter sido considerado no âmbito do licenciamento ambiental”, destaca o procurador da República Vítor Vieira Alves. “Essa circunstância tende a aumentar significativamente com a licença ambiental para transporte de granéis sólidos, como grão e soja, acirrando a pressão imobiliária e os conflitos fundiários na região”, complementa o representante do MPF, na ação.

Embora os procedimentos de demarcação dos territórios indígena e quilombolas se encontrem em fase avançada, a falta de finalização da demarcação oficial (de caráter puramente declaratório) gera conflito com os sojeiros instalados na região, inclusive com ameaça a lideranças e defensores de direitos humanos, ressalta o MPF.

Além da expansão do agronegócio no Planalto Santareno ser um dos possíveis impactos da ampliação da atividade no porto da Atem´s, um inquérito do MPF também demonstra que as atividades dos portos do Lago do Maicá aumentam o fenômeno chamado terras caídas. Esse fenômeno é a perda de grandes porções das margens das ilhas localizadas nas várzeas. O quilombo Arapemã perdeu mais da metade do seu território devido a esse fenômeno, exemplifica o MPF na ação.

<><> Fraudes

– Em outro processo, o MPF e o MPPA, além de pedir a anulação das licenças, pedem que a Justiça determine a demolição das construções não autorizadas pela licença de instalação e obrigue a Atem´s a pagar danos morais coletivos por fraudar o procedimento de licenciamento ambiental. Segundo o MPF e o MPPA, a empresa omitiu que a carga transportada seria do tipo perigosa (petróleo e derivados) e submeteu o projeto a licenciamento para cargas não perigosas, com exigências ambientais menos rigorosas.

 

Fonte: Por Rafael Oliveira, da Agência PúblicaAscom MPF-Pará

 

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