Entenda
novo critério para diferenciar usuário e traficante, definido pelo STF
O
Supremo Tribunal Federal (STF) detalhou na quarta-feira (26/6) os impactos da
descriminalização do porte de maconha para consumo, aprovado pela maioria da
Corte.
Com
a decisão, portar a droga passa a ser um ilícito administrativo. Segundo a
Corte, o usuário não poderá mais ser submetido a um processo penal, nem terá um
registro na sua ficha criminal.
Também
não haverá mais a possibilidade de ser submetido à pena de prestação de
serviços à comunidade.
Por
outro lado, o STF manteve a possibilidade de aplicação de medidas educativas,
como o comparecimento a um curso preventivo sobre consumo de drogas. Além
disso, a polícia deverá apreender a droga.
O
julgamento não tratou da venda de drogas, que continua sendo ilegal no país.
Mas
o STF decidiu estabelecer parâmetros para diferenciar usuários e traficantes,
com objetivo de padronizar a atuação das polícias no país e evitar que pessoas
com a mesma quantidade de drogas sejam tratadas de forma diferente.
A
Corte estabeleceu que, até que o Congresso aprove uma lei sobre o tema, o
parâmetro para diferenciar uso pessoal de tráfico será a quantidade de 40
gramas de cannabis sativa ou a posse de seis plantas fêmeas.
Isso
significa que uma pessoa identificada pela polícia portando até 40 gramas não
poderá ser enquadrada como traficante, a não ser que existam outros elementos
além da presença da droga que apontem para esse crime, como posse de arma,
caderno com anotações sobre vendas ou balança para pesar a substância.
A
partir de diferentes abordagens jurídicas, oito ministros se manifestaram pela
descriminalização: Gilmar Mendes (relator da ação), Luís Roberto Barroso (atual
presidente do STF), Rosa Weber (já aposentada), Edson Fachin, Alexandre de
Moares, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Luiz Fux.
Outros
três ministros — Cristiano Zanin, André Mendonça e Kassio Nunes Marques —
entenderam que criminalização do porte de drogas para consumo é constitucional,
ou seja, deveria continuar em vigor.
O
julgamento, iniciado em 2015 e diversas vezes interrompido por pedidos de
vista, não analisou a legalidade da venda de drogas, que continuará proibida
independentemente do resultado.
O
principal impacto para o usuário da descriminalização é que ele não terá mais
um registro em sua ficha criminal caso seja identificado pela polícia portando
maconha.
O
porte para consumo já não é punido com pena de prisão no país desde 2006, com a
sanção da atual Lei de Drogas.
O
usuário, porém, ainda podia ser submetido a outras penas, como prestação de
serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso
educativo.
Já
a decisão de estabelecer parâmetros foi adotada para evitar que pessoas com a
mesma quantidade de maconha sejam tratadas de forma diferente pela polícia ou a
Justiça, defenderam ministros favoráveis à medida.
"Na
falta de critério, a mesma quantidade de drogas nos bairros mais elegantes das
cidades brasileiras é tratada como consumo e, na periferia, é tratada como
tráfico. O que nós queremos é acabar com essa discriminação entre ricos e
pobres, basicamente entre brancos e negros", disse Barroso.
Segundo
levantamento citado por Moares, a partir do volume médio de apreensão de drogas
no Estado de São Paulo entre 2006 e 2017, alguém negro, analfabeto, de 18 anos
de idade costuma ser enquadrado como traficante ao portar apenas 20 gramas de
maconha. Já uma pessoa branca, com curso superior, na faixa de 30 anos só
costuma ser enquadrada como traficante quando porta 60 gramas.
Os
ministros ressaltaram em seus votos, porém, que eventuais parâmetros a serem
adotados serviriam como uma referência básica, podendo o juiz considerar o
indivíduo como usuário, mesmo que esteja com quantidade maior, ou ainda
enquadrá-lo como traficante, mesmo que tenha quantidade menor.
Isso
dependeria de outros elementos que corroborem para o crime de tráfico, como
apreensão de armas ou balança para pesar drogas, por exemplo.
"Está
havendo uma deturpação dos votos e da discussão no Supremo Tribunal Federal. É
muito fácil deturpar as informações aqui trazidas a fim de tentar jogar a
sociedade contra o Poder Judiciário, dizendo que vão fixar 20 gramas ou 60
gramas, e aí o traficante formiguinha vai lá na boca de fumo e vende três
gramas, quatro gramas. Ninguém está dizendo aqui que não será tráfico se, além
da gramatura, outros elementos existirem", ressaltou Moraes, na sessão
desta quinta-feira (20/6).
Nunes
Marques, por sua vez, minimizou a importância de estabelecer parâmetros que
diferenciem traficantes e usuários e criticou a possibilidade de
descriminalização pelo STF.
"A
grande preocupação da maioria das famílias brasileiras não é se o filho vai
preso ou não, a preocupação é que a droga não entre na sua residência. E, para
isso, ela [a criminalização] tem hoje o fator inibitório", argumentou
Nunes Marques.
"[A
criminalização do porte] traz um instrumento de defesa da família pobre
brasileira, onde ela diz: 'meu filho, não faça isso porque é crime'",
continuou.
O
tema em análise pelo STF divide a sociedade. Defensores da liberação do porte
de pequenas quantidades para uso pessoal dizem que a criminalização fere
princípios constitucionais como o direito à privacidade de cada indivíduo.
Também
argumentam que a criminalização não produziu resultados na redução do consumo e
do tráfico e que seria mais adequado adotar políticas públicas de prevenção,
como no caso do uso de cigarros.
Por
outro lado, críticos da descriminalização acreditam que a medida aumentaria
ainda mais consumo e tráfico e argumentam que o direito individual não deveria
ser colocado acima da saúde pública.
Há
questionamentos também sobre se o STF deveria decidir sobre a questão ou se
apenas o Congresso poderia liberar o porte para consumo, aprovando uma mudança
na lei atual.
"Nós
estamos passando por cima do legislador caso a votação prevaleça com essa
votação que está estabelecida. O legislador definiu que portar drogas é crime.
Transformar isso em ilícito administrativo é ultrapassar a vontade do
legislador", criticou André Mendonça.
A
possibilidade do Supremo liberar o porte de drogas para consumo já provocou uma
reação no Parlamento.
Em
abril deste ano, o Senado aprovou a chamada PEC das Drogas, proposta de emenda
à Constituição que determina que é crime possuir ou portar qualquer quantidade
de droga, mesmo que para consumo próprio. O texto ainda será analisado na
Câmara dos Deputados.
A
criminalização do porte e da posse, mesmo para consumo próprio, é hoje prevista
na Lei de Drogas de 2006, que está em vigor. O Código Penal também prevê crimes
sobre o tema.
Mas
não é algo determinado na Constituição Federal. A intenção da PEC é incluir a
regra no texto constitucional, tornando-a superior a uma lei.
Isso,
na prática, reverteria uma eventual liberação do porte para consumo pelo STF
neste julgamento.
• O que estava em julgamento pelo STF
O
STF analisou um recurso extraordinário com repercussão geral, ou seja, a
decisão valerá para todos os casos semelhantes.
O
recurso questionava se o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional.
Esse
artigo prevê que é crime adquirir, guardar ou transportar droga para consumo
pessoal, assim como cultivar plantas com essa finalidade.
Não
há previsão de prisão para esse crime. As penas previstas nesse caso são
“advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade”
e/ou “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
O
recurso foi movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu
flagrado com três gramas de maconha na prisão e condenado a prestar serviços
comunitários.
A
Defensoria argumenta que a lei fere o direito à liberdade, à privacidade, e à
autolesão (direito do indivíduo de tomar atitudes que prejudiquem apenas a si
mesmo), garantidos pela Constituição Federal.
“Por
ser praticamente inerente à natureza humana, não nos parece o mais sensato
buscar a solução ou o gerenciamento de danos do consumo de drogas através do
direito penal, por meio de proibição e repressão”, argumentou o defensor Rafael
Muneratt, no início do julgamento no STF.
"Experiências
proibitivas trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca
norte-americana e mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais
mazelas e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de substâncias
entorpecentes."
Já
o então chefe do Ministério Público em São Paulo, o procurador-geral Márcio
Fernando Elias Rosa, se manifestou contra a descriminalização.
"O
tráfico no Brasil apresenta índices crescentes. O Estado não se mostra capaz
nem sequer do controle efetivo da circulação das chamadas drogas lícitas. Não
há estruturada rede de atenção à saúde ou programa efetivo de reinserção
social", disse Rosa.
Para
a Federação Amor-Exigente (AE), que presta apoio e orientação aos familiares de
dependentes químicos, o direito individual do usuário não justifica a
descriminalização.
A
organização foi aceita pelo STF para atuar no julgamento como amicus curiae,
colaborador da Justiça que detém algum interesse social no caso, mas que não
está vinculado diretamente ao resultado.
"A
saúde pública vem em primeiro lugar. A pessoa que está usando o crack, chega em
determinado momento que ela não tem discernimento para decidir o que é bom e
ruim. A pessoa que usa o crack pode matar por causa de R$ 10”, disse à BBC News
Brasil o advogado Cid Vieira, que representa a Federação Amor Exigente.
"É
nesse sentido que esse direito (individual do usuário) não pode se contrapor à
saúde pública e à tutela de toda a coletividade."
Para
o advogado Pierpaolo Bottini, que representa a Viva Rio, amicus curiae
favorável à descriminalização, a descriminalização do porte não aumentaria o
consumo.
“Não
estamos falando em autorizar o uso, mas simplesmente não criminalizar. Essa
ação é até modesta nesse sentido, muito mais modesta do que tem acontecido nos
outros países, que estão autorizando o uso de certas drogas”, disse Bottini,
citando o aumento da legalização em estados americanos.
Outro
ponto em discussão era se a Corte iria fixar uma quantidade para diferenciar
objetivamente o que é o porte para consumo ou para tráfico.
Defensores
da medida, como a associação que representa os peritos da Polícia Federal
(APCF) e integrantes da Procuradoria-Geral da República, dizem que a definição
de parâmetros pode evitar que consumidores sejam enquadrados como traficantes
indevidamente, reduzindo o grande número de presos no país.
No
entanto, há organizações que participaram do processo que duvidam deste efeito
porque discordam da avaliação de que pessoas estejam sendo presas por tráfico
equivocadamente.
Há
mais de 180 mil pessoas presas hoje no país por tráfico de drogas.
No
entanto, nenhuma decisão do Supremo levaria a uma liberação automática de
presos, explica a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen à BBC
News Brasil.
Cada
pessoa detida pelo crime de tráfico de drogas e potencialmente impactada pelo
julgamento, ressalta, teria que apresentar um recurso à Justiça solicitando a
revisão de sua pena.
• Por que julgamento se alongou por
anos?
Além
dos vários pedidos de vistas que interromperam o julgamento, o caso também
ficou alguns anos sem ser pautado pelo STF durante o governo de Jair Bolsonaro
(PL).
A
ação foi retomada em 2023 e interrompida pelo pedido de vista de Toffoli, que
apresentou seu voto no dia 20 de junho .
Para
juristas que acompanham o tema, a Corte demorou a retomar o julgamento para
evitar mais tensão com o governo anterior, que era fortemente contra qualquer
flexibilização nesse tema.
Embora
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não tenha uma postura abertamente
favorável à descriminalização, integrantes do seu governo, como o ministro dos
Direitos Humanos, Silvio Almeida, defendem a medida com o objetivo de reduzir o
grande número de pessoas presas no país.
"Temos
que tratar isso como uma questão de saúde pública, como uma questão que não se
resolve por meio do encarceramento, com prisão e com punição", disse
Almeida, em entrevista à BBC News Brasil.
Com
a demora em julgar, houve mudança na composição da Corte, que se tornou mais
conservadora com a entrada de dois ministros indicados por Bolsonaro: Kassio
Nunes Marques e André Mendonça.
Além
disso, Cristiano Zanin, indicado por Lula em 2023, também se posicionou contra
a descriminalização do porte para consumo.
Lula
também indicou no final de 2023 o ministro Flavio Dino. Dino não se manifestou
no mérito principal dessa ação, porque ele entrou na vaga da ministra Rosa
Weber, que já havia votado.
• Quais são as regras sobre a maconha
em países que descriminalizaram ou legalizaram a droga
O
Brasil não entrou no rol de países onde a maconha é legalizada com a decisão do
STF (Supremo Tribunal Federal) que levou à descriminalização da posse da
substância para uso pessoal.
Isso
porque descriminalização e legalização são coisas diferentes — o Supremo
determinou que é inconstitucional criminalizar o usuário, mas o uso da maconha
continua sendo ilegal no Brasil, explica a criminalista Beatriz Alaia Colin,
advogada do escritório Wilton Gomes e especialista em processo penal nacional e
europeu.
A
diferença é que agora alguém que possui maconha para uso próprio não está
cometendo um crime, mas ainda pode sofrer um processo administrativo, ter a
droga apreendida ou ser encaminhado para tratamento, por exemplo.
Já
a legalização, explica Colin, é quando a droga é retirada da lista de
substâncias proibidas e tem sua produção, venda e consumo regulamentados pelo
Estado.
Veja
abaixo como a questão funciona em alguns países onde a maconha é legalizada ou
descriminalizada.
• Alemanha
Maior
economia da Europa, a Alemanha legalizou totalmente o uso da maconha para fins
recreativos em fevereiro deste ano, com a lei entrando em vigor em abril.
Maiores
de 18 anos agora podem fumar maconha em diversos espaços públicos e carregar
até 25 gramas da planta consigo. Em casa, o limite permitido é de 50 gramas.
Segundo
a lei, os maiores de 18 anos na Alemanha poderão possuir quantidades
substanciais de cannabis, mas regras rigorosas dificultam a compra da droga.
Fumar
cannabis em muitos espaços públicos será legal a partir de 1º de abril.
A
posse de até 25g, equivalente a dezenas de baseados fortes, será permitida em
espaços públicos. Em residências particulares o limite legal será de 50g.
No
entanto, há uma série de regras que tornam a compra da droga bastante restrita.
Lojas
e cafés que vendem a substância continuam sendo proibidos — a compra precisa
ser feita por clubes sem fins lucrativos, com no máximo 500 membros, que só
permitem a associação de residentes do país.
Ou
seja, usuários eventuais têm maior dificuldade para comprar a droga, que também
é inacessível (de forma legal) para turistas.
• Canadá
O
governo do Canadá legalizou e regulamentou o acesso à maconha em 2018, criando
uma série de regras para seu uso.
Adultos
podem possuir até 30 gramas de maconha produzida legalmente e cultivar até
quatro plantas por lar. A idade mínima para compra é 18 anos no país todo, mas
algumas províncias têm idades mínimas maiores.
A
produção da cannabis é controlada pelo governo federal e os governos das
províncias regulam a distribuição e a venda.
Além
disso, foram criadas novas regras sobre dirigir sob o efeito de álcool e
drogas.
• EUA
Nos
Estados Unidos, a legislação sobre é estadual, ou seja, cada unidade da
federação decide como lidar com o tema.
Dos
50 Estados americanos, o uso de cannabis medicinal é autorizado em 38 Estados e
o uso recreativo da substância é liberado em 24 Estados.
A
nível federal, a maconha ainda figura na lista de substâncias controladas com
"alto potencial para abuso", mas as autoridades federais não aplicam
a proibição nos Estados onde a maconha foi legalizada.
Os
Estados do Colorado e de Washington foram os primeiros a aprovar o uso
recreativo da droga, em 2012. Os mais recentes foram Ohio, Kentucky, Delaware e
Minnesota, em 2023.
• Israel
Em
Israel, o uso da maconha para tratamentos médicos é permitido desde a década de
1990, e o uso pessoal por adultos foi descriminalizado em 2019.
Embora
a maconha continue sendo uma substância ilegal e controlada, possuir pequenas
quantidades da droga é equivalente a cometer uma infração leve de trânsito, ou
seja, pode gerar uma multa, mas não levar à prisão.
Segundo
o jornal israelense Times of Israel, a legalização de fato da cannabis tem
aprovação tanto pelo público quanto por legisladores e há diversos projetos que
visam legalizá-la no Parlamento do país.
O
jornal afirma que a demanda por cannabis está cada vez mais alta no país devido
ao seu potencial para o tratamento de estresse pós-traumático (muito comum em
veteranos de combate).
Israel
é um dos países conhecidos pelo investimento na pesquisa com a planta. O
componente psicoativo da cannabis, o THC (tetrahidrocanabinol), foi isolado na
Universidade Hebraica em 1964.
• Holanda
Apesar
de serem famosos pelos "coffee shops" onde é possível comprar e
consumir maconha sem ter problemas com a Justiça desde 1976, os Países Baixos
na verdade apenas descriminalizaram a maconha, sem legalizá-la de fato.
Ou
seja, a posse de até 5 gramas de maconha não é considerada crime, mas a
produção e distribuição da droga continuam ilegais.
Isso
gerava um problema, porque os donos dos pontos de venda eram obrigados a
comprar maconha de produtores ilegais.
Agora,
uma série de cidades fazem parte de um programa experimental de legalização da
maconha, com a produção e distribuição controlada da substância (além da venda,
que já é permitida).
Em
março deste ano 2024, a entrada de Amsterdã — a principal cidade do país — na
lista foi rejeitada pelas autoridades locais controladas por legisladores
conservadores.
• Uruguai
O
Uruguai foi o primeiro país do mundo a legalizar nacionalmente o uso pessoal de
maconha, em 2013. A posse da droga já não era crime no país desde 1974.
A
legalização foi feita no país como uma forma de tentar combater o tráfico
ilegal de drogas, disse o então presidente José "Pepe" Mujica, já que
a guerra às drogas não havia funcionado até então.
A
compra e venda da substância foram condicionadas a regras bastante restritas: a
droga pode apenas ser comprada em farmácia, é preciso se registrar com o
governo para comprar e há um limite de 10g por semana por pessoa.
Fonte:
BBC News Brasil
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