sábado, 29 de junho de 2024

Era da solidão: novos estudos mostram o impacto negativo da desconexão social na saúde física e mental

O modelo de vida da modernidade tem influenciado de forma negativa na maneira como criamos laços e vivenciamos relações interpessoais. Diversos fatores entram nessa conta que, geralmente, não fecha: carga horária do trabalho, horas perdidas no trânsito e aumento do tempo nas telas, dentre outros. O quadro se agravou durante a pandemia do novo coronavírus, quando a obrigatoriedade do isolamento social em função do risco de infecção acentuou a desconexão entre as pessoas. Desde então, pesquisadores têm se debruçado ainda mais sobre os efeitos negativos da solidão e da lacuna de interação social na saúde não apenas mental como também física.

Os achados têm corroborado a preocupação dos especialistas acerca do assunto. Um documento de quase 300 páginas elaborado pela Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina, dos EUA, levantou dados associando a sensação de solidão e o isolamento social a maiores riscos de doenças cardiovasculares, demências e declínio cognitivo, depressão e ansiedade e doenças crônicas. No Japão, já existe um Ministério da Solidão, que busca combater o isolamento e desenvolver estratégias para incentivar os laços comunitários entre a população.

O cenário não é diferente no Brasil, onde a sensação de solidão tem aumentado entre a população: uma pesquisa feita pela Ipsos com 28 países revelou que 50% dos brasileiros entrevistados afirmam se sentir solitários – o Brasil ocupou o primeiro lugar no ranking.

“A vida contemporânea muitas vezes exacerba essa situação de solidão”, aponta Alfredo Maluf, coordenador da Psiquiatria do Hospital Israelita Albert Einstein. “Temos substituído encontros presenciais, uma ida ao bar com os amigos, uma conversa no telefone, pelas telas. Não se ouve mais a voz das pessoas”, afirma. Ele explica que a solidão não implica necessariamente em não estar presencialmente com o outro, mas que é sobre a sensação de desconexão social. “E as pessoas estão muito conectadas pelas máquinas, pelas redes sociais, enquanto se distanciam de quem está ao lado”, diz.

Para Eliete Bouskela, mestre em biofísica e presidente da Academia Nacional de Medicina (ANM), o aumento da sensação de solidão está relacionado ainda com fatores como a crise climática e polarização política vivenciada nos últimos anos. “Há um crescimento populacional excessivo, estamos envelhecendo mais rápido, em um momento de declínio climático e uma polarização política preocupante. As pessoas desaprenderam a conversar com quem não tem exatamente a mesma visão de mundo, estão menos tolerantes e sensíveis à conflitos e, consequentemente, se isolando mais.”

·        Prejuízo para saúde mental

Para entender melhor a natureza do problema, é preciso diferenciar dois conceitos: solitude e solidão. O primeiro se refere ao prazer em desfrutar de um tempo a sós, um tipo de isolamento voluntário que não carrega a conotação negativa nem tem relação com a sensação de tristeza e desconexão. No caso da solidão, uma pessoa pode circular entre ambientes sociais e ainda assim se sentir solitária, porque o sentimento está associado à desesperança e falta de apoio, a um não pertencimento.

Maluf explica que os primeiros impactos negativos avaliados em pessoas solitárias se mostram na esfera afetiva. “A pessoa se sente só, desamparada e começamos a observar as alterações de humor, psicológicas, que podem se expandir para questões de ordem fisiológica”, explica.

Segundo ele, as consequências são ainda mais evidentes quando há um isolamento e desconexão nos primeiros anos de vida e ao longo do período de envelhecimento. Um grupo de pesquisadores acompanhou quase 2 mil adultos com 60 anos por até 20 anos, eventualmente fazendo a pergunta “você costuma se sentir sozinho?”. Ao final do estudo, foi avaliado que aqueles que responderam “sim” com mais frequência tiveram uma maior incidência no desenvolvimento de Alzheimer e outros tipos de demência.

Outro estudo, que acompanhou indivíduos durante 10 anos, identificou que o risco de desenvolvimento de demências “triplicou em adultos cujo risco inicial seria relativamente baixo com base na idade e no risco genético, representando a maioria da população dos Estados Unidos”. O trabalho também associou a solidão a piores marcadores neurocognitivos de vulnerabilidade.

“Há momentos em que o estímulo do cérebro é muito importante para a neuroplasticidade, que é a capacidade do cérebro de construir as redes de neurônios. A falta desse estímulo pode contribuir para os quadros de demência e degeneração neurológica. Memória, atenção e outros fatores relacionados ao que chamamos de função executiva são prejudicados por isso”, afirma o psiquiatra.

Já nos primeiros estágios da vida, o isolamento social e a percepção de solidão foram associados ao desenvolvimento de quadros de ansiedade e depressão, altos níveis de cortisol – o hormônio do estresse – e pior desenvolvimento cognitivo, como avaliou uma revisão sistemática publicada em 2022.

·        Impactos da solidão na saúde física

Além dos efeitos cognitivos, segundo Maluf, na parte física, o isolamento e a solidão a longo prazo também podem levar a disfuncionalidades como alterações do sono, quadros de dores crônicas, pioras em condições já existentes e alterações em várias funções do organismo. Essa relação também vem sendo estudada, como abordou um estudo publicado no Frontiers in Psychiatry, que descreveu como a solidão pode levar a implicações mentais e metabólicas.

Há impactos ainda quando o assunto é a saúde vascular. De acordo com uma meta-análise publicada em 2016, o padrão de relações sociais empobrecidas está associado a um aumento de 29% no risco de incidente de doença cardiovascular e de 32% no risco de acidente vascular cerebral.

Em um momento em que os olhares para os fatores metabólicos relacionados à obesidade – outra grande preocupação da saúde pública – cresce entre pesquisadores, o impacto da percepção de solidão também começa a ser investigado. Estudos já demonstram um certo grau de isolamento social, solidão, depressão e ansiedade que se manifestam como efeitos colaterais de uma sociedade que ainda encara a obesidade com estigma.

Os estudos mais recentes apontam que ainda é preciso avançar em alguns desafios. Um deles é estabelecer de forma sólida a causalidade – ou seja, apesar de já estar clara a conexão entre as duas coisas, é preciso entender os mecanismos de causa e efeito. Outro desafio, como apontou um editorial da The Lancet, é a necessidade de estudos que coloquem a solidão como objeto principal – a publicação defende que é necessário explorar de maneira mais aprofundada o que está por trás da complexidade envolvida no sentimento de solidão, seu agravo e sua relação com a saúde populacional.

·        Solidão deve ser endereçada por uma perspectiva intersetorial

Diante do contexto, o coordenador de psiquiatria do Einstein defende que o problema da solidão precisa ser encarado com uma visão integrada. Nesse sentido, incentivar o olhar atento do profissional de saúde, na prática do dia a dia, aos sinais de solidão e de desconexão, é parte do caminho para endereçar a questão. “Todos, dentro da sua particularidade clínica, devem ter esse olhar para como a pessoa está se relacionando com o meio, como ela está vivendo do ponto de vista de bem-estar biopsicossocial e como ele pode intervir nisso, caso seja necessário”, aponta.

Para ele, similar ao que foi feito no Japão com o Ministério da Solidão, é preciso começar a se pensar numa lógica de “ministério da socialização”, com campanhas de conscientização a respeito das consequências do sentimento de solidão a longo prazo e nos impactos para a saúde, além de desenvolver ações que estimulem práticas coletivas e laços comunitários. Em um cenário ideal, a questão deve ser abordada a partir de uma perspectiva intersetorial.

“Pegando um modelo bem interessante, temos pessoas idosas que entram em universidades por meio de projetos voltados para a terceira idade, reinserindo esses indivíduos na comunidade, o que traz um estímulo ao desenvolvimento cognitivo. Então, há espaço para que o governo estimule espaços de interatividade, assim como outros atores sociais, como instituições religiosas, de saúde. Precisamos dessa visão de socialização”, conclui Maluf.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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