Era da
solidão: novos estudos mostram o impacto negativo da desconexão social na saúde
física e mental
O
modelo de vida da modernidade tem influenciado de forma negativa na maneira
como criamos laços e vivenciamos relações interpessoais. Diversos fatores
entram nessa conta que, geralmente, não fecha: carga horária do trabalho, horas
perdidas no trânsito e aumento do tempo nas telas, dentre outros. O quadro se
agravou durante a pandemia do novo coronavírus, quando a obrigatoriedade do
isolamento social em função do risco de infecção acentuou a desconexão entre as
pessoas. Desde então, pesquisadores têm se debruçado ainda mais sobre os
efeitos negativos da solidão e da lacuna de interação social na saúde não
apenas mental como também física.
Os
achados têm corroborado a preocupação dos especialistas acerca do assunto.
Um documento de
quase 300 páginas elaborado pela Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e
Medicina, dos EUA, levantou dados associando a sensação de solidão e o
isolamento social a maiores riscos de doenças cardiovasculares, demências e
declínio cognitivo, depressão e ansiedade e doenças crônicas. No Japão, já
existe um Ministério da Solidão, que busca combater o isolamento e desenvolver
estratégias para incentivar os laços comunitários entre a população.
O
cenário não é diferente no Brasil, onde a sensação de solidão tem aumentado
entre a população: uma pesquisa feita
pela Ipsos com 28 países revelou que 50% dos brasileiros entrevistados afirmam
se sentir solitários – o Brasil ocupou o primeiro lugar no ranking.
“A
vida contemporânea muitas vezes exacerba essa situação de solidão”, aponta
Alfredo Maluf, coordenador da Psiquiatria do Hospital Israelita Albert
Einstein. “Temos substituído encontros presenciais, uma ida ao bar com os
amigos, uma conversa no telefone, pelas telas. Não se ouve mais a voz das
pessoas”, afirma. Ele explica que a solidão não implica necessariamente em não
estar presencialmente com o outro, mas que é sobre a sensação de desconexão
social. “E as pessoas estão muito conectadas pelas máquinas, pelas redes
sociais, enquanto se distanciam de quem está ao lado”, diz.
Para
Eliete Bouskela, mestre em biofísica e presidente da Academia Nacional de
Medicina (ANM), o aumento da sensação de solidão está relacionado ainda com
fatores como a crise climática e polarização política vivenciada nos últimos
anos. “Há um crescimento populacional excessivo, estamos envelhecendo mais
rápido, em um momento de declínio climático e uma polarização política
preocupante. As pessoas desaprenderam a conversar com quem não tem exatamente a
mesma visão de mundo, estão menos tolerantes e sensíveis à conflitos e,
consequentemente, se isolando mais.”
·
Prejuízo para saúde
mental
Para
entender melhor a natureza do problema, é preciso diferenciar dois conceitos:
solitude e solidão. O primeiro se refere ao prazer em desfrutar de um tempo a
sós, um tipo de isolamento voluntário que não carrega a conotação negativa nem
tem relação com a sensação de tristeza e desconexão. No caso da solidão, uma
pessoa pode circular entre ambientes sociais e ainda assim se sentir solitária,
porque o sentimento está associado à desesperança e falta de apoio, a um não
pertencimento.
Maluf explica
que os primeiros impactos negativos avaliados em pessoas solitárias se mostram
na esfera afetiva. “A pessoa se sente só, desamparada e começamos a observar as
alterações de humor, psicológicas, que podem se expandir para questões de ordem
fisiológica”, explica.
Segundo
ele, as consequências são ainda mais evidentes quando há um isolamento e
desconexão nos primeiros anos de vida e ao longo do período de envelhecimento.
Um grupo de pesquisadores acompanhou quase 2 mil adultos com 60 anos por até 20
anos, eventualmente fazendo a pergunta “você costuma se sentir sozinho?”. Ao
final do estudo, foi avaliado que aqueles que responderam “sim” com mais
frequência tiveram uma maior incidência no desenvolvimento de Alzheimer e
outros tipos de demência.
Outro estudo,
que acompanhou indivíduos durante 10 anos, identificou que o risco de
desenvolvimento de demências “triplicou em adultos cujo risco inicial seria
relativamente baixo com base na idade e no risco genético, representando a
maioria da população dos Estados Unidos”. O trabalho também associou a solidão
a piores marcadores neurocognitivos de vulnerabilidade.
“Há
momentos em que o estímulo do cérebro é muito importante para a
neuroplasticidade, que é a capacidade do cérebro de construir as redes de
neurônios. A falta desse estímulo pode contribuir para os quadros de demência e
degeneração neurológica. Memória, atenção e outros fatores relacionados ao que
chamamos de função executiva são prejudicados por isso”, afirma o psiquiatra.
Já
nos primeiros estágios da vida, o isolamento social e a percepção de solidão
foram associados ao desenvolvimento de quadros de ansiedade e depressão, altos
níveis de cortisol – o hormônio do estresse – e pior desenvolvimento cognitivo,
como avaliou uma revisão sistemática publicada
em 2022.
·
Impactos da solidão na
saúde física
Além
dos efeitos cognitivos, segundo Maluf, na parte física, o isolamento e a
solidão a longo prazo também podem levar a disfuncionalidades como alterações
do sono, quadros de dores crônicas, pioras em condições já existentes e
alterações em várias funções do organismo. Essa relação também vem sendo
estudada, como abordou um estudo publicado no Frontiers
in Psychiatry, que descreveu como a solidão pode levar a implicações
mentais e metabólicas.
Há
impactos ainda quando o assunto é a saúde vascular. De acordo com uma meta-análise publicada em
2016, o padrão de relações sociais empobrecidas está associado a um aumento de
29% no risco de incidente de doença cardiovascular e de 32% no risco de
acidente vascular cerebral.
Em
um momento em que os olhares para os fatores metabólicos relacionados à
obesidade – outra grande preocupação da saúde pública – cresce entre
pesquisadores, o impacto da percepção de solidão também começa a ser
investigado. Estudos já demonstram um certo grau de isolamento social, solidão,
depressão e ansiedade que se manifestam como efeitos colaterais de
uma sociedade que ainda encara a obesidade com estigma.
Os
estudos mais recentes apontam que ainda é preciso avançar em alguns desafios.
Um deles é estabelecer de forma sólida a causalidade – ou seja, apesar de já
estar clara a conexão entre as duas coisas, é preciso entender os mecanismos de
causa e efeito. Outro desafio, como apontou um editorial da The Lancet, é a necessidade de estudos que coloquem a solidão como objeto
principal – a publicação defende que é necessário explorar de maneira mais
aprofundada o que está por trás da complexidade envolvida no sentimento de
solidão, seu agravo e sua relação com a saúde populacional.
·
Solidão deve ser
endereçada por uma perspectiva intersetorial
Diante
do contexto, o coordenador de psiquiatria do Einstein defende que o problema da
solidão precisa ser encarado com uma visão integrada. Nesse sentido, incentivar
o olhar atento do profissional de saúde, na prática do dia a dia, aos sinais de
solidão e de desconexão, é parte do caminho para endereçar a questão. “Todos,
dentro da sua particularidade clínica, devem ter esse olhar para como a pessoa
está se relacionando com o meio, como ela está vivendo do ponto de vista de
bem-estar biopsicossocial e como ele pode intervir nisso, caso seja
necessário”, aponta.
Para
ele, similar ao que foi feito no Japão com o Ministério da Solidão, é preciso
começar a se pensar numa lógica de “ministério da socialização”, com campanhas
de conscientização a respeito das consequências do sentimento de solidão a
longo prazo e nos impactos para a saúde, além de desenvolver ações que
estimulem práticas coletivas e laços comunitários. Em um cenário ideal, a
questão deve ser abordada a partir de uma perspectiva intersetorial.
“Pegando
um modelo bem interessante, temos pessoas idosas que entram em universidades
por meio de projetos voltados para a terceira idade, reinserindo esses
indivíduos na comunidade, o que traz um estímulo ao desenvolvimento cognitivo.
Então, há espaço para que o governo estimule espaços de interatividade, assim
como outros atores sociais, como instituições religiosas, de saúde. Precisamos
dessa visão de socialização”, conclui Maluf.
Fonte:
Futuro da Saúde
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