sábado, 29 de junho de 2024

Olímpio Moraes: CFM é perigo à sociedade

Olímpio Moraes, médico ginecologista há 38 anos, é diretor do Hospital da Universidade de Pernambuco e seu Centro Integrado de Saúde Amaury Medeiros (Cisam), mais conhecido como Maternidade da Encruzilhada. Sua história recente é de enfrentamento contra a cruzada ultraconservadora da militância antiaborto e dita “pró-vida”. Tal corrente chegou ao comando da política de saúde no país no governo Bolsonaro e foi responsável pela portaria 2165/2020, que recrudescia a legislação do aborto legal e tornava obrigatória a notificação à polícia de procedimentos aprovados clinicamente. E foi na maternidade dirigida por Moraes onde se concluiu o marcante episódio da perseguição comandada pela então ministra dos direitos humanos, Damares Alves, que tentou constranger a realização do aborto legal de uma menina capixaba de 10 anos, poucos dias após a edição da portaria.

A notícia escandalizou o Brasil, mas a política foi mantida até o fim do governo Bolsonaro e o serviço de aborto legal segue alvo da direita, em especial do Conselho Federal de Medicina (CFM). Ao Outra Saúde, Moraes classifica a autarquia como “perigo à sociedade”. Apesar de a portaria ter sido derrubada no início do mandato de Lula, o CFM e conservadores seguem a tentar comer pelas beiradas o direito ao aborto legal, como se viu na nota técnica que suspendia o procedimento de assistolia fetal em gestações superiores a 22 semanas; seguida de apresentação do PL 1904, que equiparava o aborto após esse período a homicídio. O ataque foi derrotado politicamente após massiva manifestação de repulsa da sociedade brasileira, nas redes e ruas.

Nesta entrevista, Olímpio Moraes relembra o episódio em um breve depoimento a respeito daquele domingo de 2020, no qual uma horda de fanáticos religiosos se colocou à frente da Cisam e tentou impedir o procedimento que evitou transformar uma menina de 10 anos em mãe. Para além das bancadas religiosas e suas ideias desconectadas do conhecimento médico-científico, Moraes dirige suas baterias ao CFM.

“O aborto é permitido no Brasil no caso do estupro, mas 95% da população não têm acesso ao serviço. E não temos um CFM que cobra ampliação do serviço com atendimentos dignos, pelo contrário, estimula o não atendimento. O CFM deveria ser interditado, a autarquia deixou de proteger a sociedade, virou um perigo. Desde a época da pandemia, quando estimulou a cloroquina, não colocou freio nas fake news, fez homenagens a ministro da Saúde negacionista, deixou mentiras antivacina rolarem soltas… Eles rasgaram todo o código de ética médica. É uma coisa terrível, porque a história do CFM sempre foi uma história de orgulho para a classe médica, de defesa do Código de Educação Médica”.

Ao Outra Saúde, Moraes explica por que um contexto de interrupção aparentemente incomum de gravidez tem justificativa médica, num país onde os dados de violações sexuais e partos de crianças de 10 a 14 anos atingem níveis alarmantes. Em vez da prevenção a esta mazela brutal, a direita brasileira e seus movimentos alegadamente favoráveis à vida criam condições para a ampliação das tragédias. A explosão de mortes maternas no governo Bolsonaro serve para ilustrar a cegueira, se não má fé, de tais setores.

“Em alguns estados, suspenderam a vacinação para gestantes e o ministério sob Marcelo Queiroga adiou sem justificativa a vacinação infantil. Graças a isso um lugar como Santa Catarina passou da condição de estado com a menor razão de mortalidade materna no Brasil para um dos maiores na pandemia. O Paraná também, sendo que fora da pandemia a morte materna acontece mais no Nordeste”, afirma Moraes, que lamenta o fato de o Sudeste retroceder neste direito, a exemplo da capital paulista, cujo prefeito bolsonarista Ricardo Nunes sabota o serviço de aborto legal no Hospital de Vila Nova Cachoerinha e persegue profissionais que cumprem o direito previsto em lei.

“A maior parte dos nossos atendimentos são de meninas vulneráveis. E elas não queriam nem a gravidez nem o aborto tardio. Elas são as mais vulneráveis, não podem ser punidas porque na verdade já foram punidas: já sofreram a violência do estupro, da gravidez fruto desse crime, da falta de acesso ao aborto legal, do acesso tardio ao aborto… É assustador”, protesta.

Quanto ao avanço do debate após manifestações de rua e recuo da oposição que, nas palavras do relator do PL 1904, Sóstenes Cavalcante, queria “testar o governo”, Olímpio Moraes é cético, por considerar que tais pautas são sempre as primeiras sacrificadas no altar da governabilidade e seus pactos. “Se não houvesse mobilização, se a gente ficasse calado, o PL 1904 seria aprovado”.

Sobre o direito ao aborto em si, ele é direto: “é tratar como assunto de saúde e suas orientações objetivas, como todos os países desenvolvidos tratam, qualquer país democrático. Só países como El Salvador, Afeganistão, Cazaquistão têm essa visão de que abortamento não é um problema de saúde pública, o problema são as mulheres, que devem ser presas ou mortas. Ninguém quer o aborto, nem a mulher. Quando se trata o aborto como um problema de saúde pública, diminui o aborto. E diminuem as mortes”.

<><> Leia a entrevista completa a seguir.

·        O que pensa do PL 1904 e suas justificativas?

É um projeto que mostra muito bem a misoginia de alguns políticos e, pior, do CFM. Porque a tentativa de que a mulher vítima de violência e estupro não tenha acesso ao aborto começou neste órgão, o mesmo CFM cujos conselheiros obstruem a todo momento o abortamento em qualquer situação. São as mesmas pessoas. E é por isso que essas obstruções são tentadas. As mulheres pobres não têm acesso à informação, à referência e aos poucos serviços de aborto legal do nosso sistema de saúde.

Imagine uma pessoa que more no interior e só tem acesso a médicos que compartilham ideologia de ódio a mulher e seus direitos. Essa mulher procura ajuda em secretarias, prefeituras, hospitais… Quem a encaminha? Ela descobre sozinha onde procurar ajuda, pagar passagem, viajar 700, 900, 1000 quilômetros, a exemplo de pacientes do interior de Pernambuco, Maranhão, Alagoas etc. E agora com o fechamento ou colocação de barreiras ao serviço em São Paulo e outras partes do Sudeste passamos a receber pacientes de fora do Nordeste.

É muito triste que o Sudeste sabote esses serviços, muito triste que no Paraná não o tenha e o Nordeste tenha de assumir o Brasil todo. Enquanto fazemos essa entrevista repercute a reportagem do pai que estuprou a filha adolescente numa UTI. Como fica a cabeça dessa criança, que é muito pobre, vai procurar ajuda aonde? Mas para a sociedade só chega a parte final da história, a menina com 5 meses de gestação que “quer abortar”.

A maior parte dos nossos atendimentos são de meninas vulneráveis. E elas não queriam nem a gravidez nem o aborto tardio. Elas são as mais vulneráveis, não podem ser punidas porque na verdade já foram punidas: já sofreram a violência do estupro, da gravidez fruto desse crime, da falta de acesso ao aborto legal, do acesso tardio ao aborto… É assustador.

E ainda querem que se leve até o fim a tentativa de viabilizar a vida do feto, mesmo em condições onde não há possibilidade de vida saudável, com diversas sequelas de saúde. Querem que uma menina que não queria a gravidez nem em condições saudáveis do feto gere uma vida com pouca chance de ser viabilizada. Os pastores vão adotar esses filhos frutos de estupro, com todos os eventuais problemas de saúde?

·        Uma das características dessa guerra política foi a confrontação de discurso religioso e irracional, a exemplo do próprio Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), relator do PL 1904, com dados oficiais, pesquisas e histórias reais, como a estatística de 26 nascimentos por dia de filhos cujas mães tem entre 10 e 14 anos.

Pois é, veja que negócio é esse. O aborto é permitido no Brasil no caso do estupro, mas 95% da população não têm acesso ao serviço. E não temos um CFM que cobra ampliação do serviço com atendimentos dignos, pelo contrário, estimula o não atendimento. O CFM deveria ser interditado, a autarquia deixou de proteger a sociedade, virou um perigo. Desde a época da pandemia, quando estimulou a cloroquina, não colocou freio nas fake news, fez homenagens a ministro da saúde negacionista, deixou mentiras antivacina rolarem soltas…

Eles rasgaram todo o código de ética médica. É uma coisa terrível, porque a história do CFM sempre foi uma história de orgulho para a classe médica, de defesa do Código de Educação Médica. Nós não podemos negar o tratamento baseado em melhores evidências científicas, não pode ter interferência política para a atividade médica, não pode tratar o ser humano sem dignidade.

Como um presidente do CFM diz que precisamos “limitar a autonomia da mulher sobre seu corpo”? É uma coisa absurda um médico falar um negócio desse. Eles sabem que existe autonomia do paciente e tentam romper com isso. Eles fizeram resolução tirando a autonomia da mulher para fazer o próprio plano de parto, quando um deles estava no Ministério da Saúde e assumiu o Conselho da Saúde da Mulher da pasta, época em que foi feita a Portaria 2561/2020 que visava obrigar mulher estuprada a ouvir o batimento cardíaco do feto antes do aborto legal e notificação à polícia. Isso é para torturar a mulher. Não tem outro objetivo. Quem sofre estupro não quer ver o batimento da gestação. A mulher que passa por isso não quer ver nada. Ela quer dormir e acordar livre do pesadelo representado por uma gravidez fruto de estupro. Não tem condições.

·        Todo esse movimento ultraconservador se apresenta no debate como “pró-vida”, mas é importante notar que sob gestões alinhadas a esses supostos valores o número de mortes maternas passou por uma explosão no Brasil, inclusive na pandemia, quando assumiram posições públicas de desestimular a vacinação entre gestantes e também crianças e adolescentes.

Exato. Em alguns estados suspenderam a vacinação para gestantes e o ministério sob Queiroga adiou sem justificativa a vacinação infantil. Graças a isso um lugar como Santa Catarina passou da condição de estado com a menor razão de mortalidade materna no Brasil para um dos maiores na pandemia. O Paraná também, sendo que fora da pandemia a morte materna acontece mais no Nordeste.

Por quê? Porque são estados poluídos com políticos, gestores, prefeitos, governadores negacionistas. Em Pernambuco, estamos na média de mortes maternas. Na pandemia, foi o estado que teve a menor taxa de mortalidade materna. Porque aqui não se suspendeu ou sabotou a vacina, não tinha um governo negando sua validade. É uma tragédia.

·        O momento pode ser ponto de viragem para avanços no aborto legal e dos direitos reprodutivos da mulher?

Vamos avançar. Mas estou acostumado, com 62 anos, eu já vi esse filme passar. O governo quando está fraco no Congresso e não tem maioria, não consegue avançar a pauta da mulher. Porque a pauta da mulher é a primeira moeda de troca usada para aprovar outras coisas de interesse do governo. O Ministério da Saúde não questionou com vigor o PL 1904.

Mas o movimento social, jornalistas, médicos, mulheres indo para a rua dão respaldo político para que o governo, em algum momento, se sinta confortável e seguro de avançar. Se não houvesse mobilização, se a gente ficasse calado, o PL 1904 seria aprovado.

·        Quais seriam as questões essenciais para avançar?

É tratar o abortamento como assunto de saúde e suas orientações objetivas, como todos os países desenvolvidos tratam, qualquer país democrático. Só países como El Salvador, Afeganistão, Cazaquistão têm essa visão de que abortamento não é um problema de saúde pública, o problema são as mulheres, que devem ser presas ou mortas.

Ninguém quer o aborto, nem a mulher. Quando se trata o aborto como um problema de saúde pública, diminui o aborto. E diminuem as mortes. Por isso que no Canadá, em toda a Europa, na Itália, na Espanha, em Portugal, o tema já foi batido, ainda que às vezes apareça uma onda de negacionismo, como em alguns estados dos Estados Unidos.

Esperamos que a verdade e a ciência prevaleçam sobre questões político-partidárias. É questão de saúde, ponto. Não existe algo como “quem for de direita, toma penicilina. Quem for de esquerda, toma outro antibiótico. Quem for de esquerda, recebe sangue quando tiver hemorragia, quem for de direita, toma soro”. Saúde não é assim. Não pode ter política de enganar as pessoas.

<><> Depoimento: o aborto da menina de 10 anos que mobilizou Damares

Era um domingo, o secretário de saúde ligou para mim, disse que estava para chegar um voo às três horas da tarde. Avisei que não seria bom um carro oficial da maternidade buscar a menina no aeroporto. Falei com um movimento de mulheres e a ONG Curumim alugou o carro. Eu estava tranquilo, almocei com meus filhos, minha cervejinha. À tarde, começo a receber vídeos de pessoas fazendo convocação pra frente do CISAM (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros) “para impedir que Pernambuco se tornasse a capital do aborto”.

Trabalhamos com sigilo, não comunicamos ninguém, mas depois foi comprovado que o movimento “pró-vida” agiu sob orientação da Damares Alves e a Bia Kicis, que vazaram informação e passaram para seus correligionários locais.

Eu não sabia do que se tratava. Eu tinha falado dez minutos antes com a médica sobre a menina que chegava do Espírito Santo. “Tudo bem, doutor, está tranquilo”. Falei com o meu amigo do ambulatório, que faz o procedimento. “Estou chegando agora de viagem e vou direto para lá”. Quando a menina chegou, o profissional que ia fazer o procedimento de assistolia fetal estava lá. Eu tenho 35 plantonistas e a maior parte deles não tem objeção de consciência para realizar a abortamento por esse meio.

O ato em si eu não faço, não, e sim um plantonista, um diarista, enfim, os médicos da maternidade. No caso de 2020, quando eu saí para conversar com os manifestantes que estavam bloqueando a maternidade, eles fecharam a entrada e não permitiam que eu entrasse porque achavam que era eu que ia fazer o procedimento. Aí eles se distraíram, o portão abriu e a menina entrou, porque eles estavam bloqueando a entrada do carro.

Fiquei associado ao procedimento, por ser diretor da Cisam, o que pouco me importa, afinal, se não estamos lá é possível que o serviço desapareça.

 

Fonte: Entrevista a Gabriel Brito, para Outra Saúde

 

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