quinta-feira, 27 de junho de 2024

Desdolarização e independência; ou: o eterno fracasso das sanções à Megara

Um mundo sem dólar é possível?

Em sua última visita à China, em abril de 2023, o presidente Lula fez um discurso ousado em Xangai, na cerimônia de posse de Dilma Rousseff como nova chefe do banco dos BRICS.

Lula resumiu, na linguagem simples e profunda que é sua grande qualidade retórica, um dos desafios mais centrais do mundo contemporâneo: por que os países precisam fazer negócios em dólar? Por que não podem fazê-lo em suas próprias moedas nacionais?

Apesar da imprensa brasileira “tradicional” ter ignorado, minimizado ou manipulado solenemente a intervenção do presidente da república, ele teve um enorme impacto no Sul Global. Não por ter sido pronunciado por Lula ou por ter vindo do Brasil, mas porque esta tem sido, de facto, uma das questões econômicas mais complexas dos últimos tempos, especialmente para os países do Sul Global.

A mais recente edição da Wenhua Zongheng, “revista trimestral do pensamento chinês”, como ela se denomina, é focada exatamente nesse tema: os desafios da desdolarização.O primeiro artigo desta edição é do economista brasileiro Paulo Nogueira Batista Jr, que já foi vice-presidente do banco dos BRICS, além de diretor indicado pelo Brasil para o FMI. Os outros textos são escritos por economistas chineses.

A revista traz quatro artigos fundamentais para entendermos a questão do dólar sob uma perspectiva rigorosamente científica. Não se assuste com o termo científico, porque os textos são escritos, apesar da sofisticação intelectual dos autores, com linguagem jornalística, ou seja, didática e acessível a todos.

O artigo de Ding Yifan analisa o tema através da pergunta do título: “O que impulsiona o debate sobre a desdolarização no BRICS?”

Assim como os outros textos, Yifan é bem direto: a questão do dólar tornou-se urgente a partir do momento em que os Estados Unidos decidiram “congelar” (eufemismo para roubar) as reservas de mais de 300 bilhões de dólares do banco central da Rússia.

No entanto, Yifan lembra que o problema não é novo. Trecho de seu artigo:

“(…) Nessa época em que o mundo está caminhando para uma ordem multipolar, a hegemonia do dólar estadunidense dificulta a cooperação internacional entre muitos países. Desde sua ‘guerra ao terror’, os Estados Unidos descobriram que, em comparação com as guerras comerciais tradicionais, é muito mais eficaz usar a hegemonia do dólar para impor sanções financeiras aos países que violam a ‘ordem baseada em regras’ liderada pelos EUA. Essa lógica foi detalhada por Juan Zarate, ex-funcionário dos EUA durante o governo de George W. Bush, em seu livro de 2013, Treasury’s War: The Unleashing of a New Era of Financial Warfare [Os tesouros da guerra: a deflagração de uma nova era de guerra financeira]. Nas últimas décadas, os EUA têm usado o dólar como uma arma para impor sanções financeiras a países que não lhes agradam.”

O livro de Zarate citado pelo articulista é uma obra-prima do cinismo imperialista americano. Decidi estudá-lo antes de escrever essa resenha e confesso que fiquei, mais uma vez, espantado com a candidez com que os americanos admitem agir sob uma filosofia absolutamente autoritária em relação a outros países.

Zarate conta que trabalhou dentro da secretaria do tesouro (equivalente ao ministério da fazenda no Brasil) e que ajudou a implementar, dentro da instituição, uma cultura de guerra. O tesouro americano deveria ser usado, sobretudo a partir da “guerra ao terror”, como uma ferramenta de subjugação de todos aqueles que se punham no caminho dos EUA para dominação total do planeta. Nem os aliados estavam à salvo, pois há trechos em que ele relata casos em que Reino Unido e França tiveram que ser “convencidos”, a custa de “pressões financeiras” a obedecerem lealmente as orientações da Casa Branca em suas políticas para o Oriente Médio.

Zarate é direto: “O dólar serve como reserva monetária global, além de moeda de troca para o comércio internacional, e Nova York permanece como o centro financeiro do capital internacional e eixo de todas as transações em dólar. Com essa concentração de poder financeiro e comercial, vem a habilidade de transformar o acesso aos mercados americanos, aos bancos americanos e aos dólares americanos em armas financeiras.”

Ou seja, o dólar americano é visto pelo governo americano como uma arma de guerra. Uma arma financeira, mas tão ou mais letal e eficiente que uma bateria de mísseis de longa distância.

Há um ponto meio cômico, no entanto, no livro de Zarate, que eu gostaria muito de trazer aos leitores.

Ao abordar os antecedentes do uso destas armas econômicas para subjugar outros países, ele resgata alguns fatos históricos famosos.

O mais antigo deles, e um dos mais célebres, lembra Zarate, é o cerco econômico que os atenienses fizeram a Megara, uma cidade grega aliada de Esparta.

Atenas vivia o auge de sua prosperidade econômica e cultural, até que… resolveu aplicar sanções econômicas a Megara. Os motivos dessa agressão são vários. O humorista ateniense Aristófanes chega a escrever que foi vingança de Péricles, porque alguém em Megara raptou uma das empregadas de Aspasia, sua esposa.

O bloqueio econômico proibiu os megarenses de acessarem portos e mercados em todo o grande Império Ateniense, o que efetivamente estrangulou a economia megarense. As sanções também teriam afetado os aliados de Megara e podem ter sido vistas como uma manobra de Atenas para enfraquecer seus rivais e estender sua influência. Megara controlava as rotas importantes entre o Peloponeso e a Ática, tornando-a crucial tanto para Atenas quanto para Esparta.

Os espartanos imediatamente enviaram diplomatas a Atenas, para implorar que as sanções fossem levantadas, explicando que elas estavam provocando graves problemas econômicos e sociais tanto em Megara como em muitas cidades gregas, especialmente aquelas sob influência de Esparta.

Atenas ignorou os apelos dos espartanos e tem início a Guerra do Peloponeso, que seria o equivalente, inclusive em número proporcional de mortos, das grandes guerras mundiais do século XX.

O resultado seria trágico especialmente para Atenas, que seria derrotada e dominada por Esparta, representando o fim do império ateniense.

Ou seja, as sanções econômicas contra Megara foram uma péssima ideia de Atenas! Zarate parece não se dar conta disso ao mencioná-las como um “exemplo”.

Ele lembra de outras sanções econômicas da história, e todas são igualmente desastrosas. Em nenhum momento, Zarate reconhece esse fato: de que sanções econômicas, em qualquer época, costumam explodir contra quem as aplica.

O Tratado de Versalhes, por exemplo, também citado por Zarate, promovia um terrível cerco econômico contra a Alemanha. O primeiro livro de Keynes, As Consequências Econômicas da Paz, trazia um poderoso alerta contra a estupidez inerente a esse tipo de agressão econômica. Apesar de ter sido um sucesso de público e crítica na Europa, os governos que haviam vencido a Primeira Grande Guerra ignoraram Keynes. Em suas brilhantes memórias sobre a guerra, Winston Churchill faz igualmente uma crítica devastadora ao que ele chama de “loucura dos vencedores”, mencionando sanções econômicas inventadas por políticos populistas e burocratas insensíveis, que ignoravam a complexidade das relações econômicas da época. As sanções contra a Alemanha não enfraqueceram o país. Ao contrário, transformaram-na na maior potência militar da época, mas fragilizaram sua democracia e criaram as condições para a emergência do nazismo.

Repito, todos os exemplos de sanções econômicas citados por Zarate resultaram em desastre para quem as tinha aplicado.

O mais recente exemplo confirma a regra. As sanções econômicas que os EUA e seus vassalos europeus aplicaram contra a Rússia, a partir do início da guerra na Ucrânia, resultaram em crise econômica na própria Europa, ao passo que aceleraram o desenvolvimento da Rússia.

Entretanto, a consequência mais visível da obsessão americana em sancionar metade do planeta é o aumento da vontade, por parte sobretudo dos países do Sul Global, os mais prejudicados por estas sanções, e os mais vulneráveis a esse tipo de ameaça financeira, de se livrarem dessa chantagem insuportável.

Chegamos num momento da história, portanto, em que as ameaças dos Estados Unidos aos países, de que serão sancionados se não obedecerem aos éditos imperiais, e usando sempre a hegemonia do dólar como uma arma financeira realmente perigosa e eficaz, têm como resultado, ironicamente, o enfraquecimento do dólar, e a proliferação de debates, estudos e exercícios de como inaugurar uma verdadeira ordem financeira multipolar, em que os países possam participar do comércio internacional e estabelecer suas reservas usando como referência um pool de moedas, e não mais apenas uma moeda específica de um só país.

Os artigos da Wenhua Zongheng denunciam a contradição cada vez mais aguda entre um comércio internacional cada vez mais pujante, variado e ágil, e a dependência de uma moeda vinculada a um país com déficits em conta corrente cada vez maiores, e ainda assim um país mais e mais agressivo e egoísta no uso militar dessa moeda.

Os chineses já iniciaram um processo de distanciamento do dólar. Parte crescente do comércio internacional da China é feito em renminbi. A Rússia foi obrigada, pela própria truculência financeira americana, a fazer mudanças bruscas em suas trocas com o mundo, e hoje negocia a maior parte de seu produto em rublos, renminbi ou moedas locais. A Índia também tem aumentado dramaticamente o uso de sua própria moeda, a rúpia, em suas trocas com outros países.

Entretanto, os países menores têm muito mais dificuldade de usar suas próprias moedas, e isso os deixa muito vulneráveis a ataques especulativos, flutuações cambiais nas bolsas, e sobretudo às truculências e ameaças oriundas dos EUA. Uma pequena nação que deseja negociar com a China ou a Rússia terá, frequentemente, que avaliar as consequências geopolíticas dessa transação.

O Brasil também sofre terrivelmente as consequências da hegemonia do dólar, pois a nossa riqueza nacional é precificada, muitas vezes, antes por especuladores em Nova York do que pelo custo de produção em nosso território. Os preços da nossa soja, da nossa carne, do nosso café, do nosso petróleo, ficam expostos às intempéries financeiras de uma nação com déficit fiscal que cresce 1 trilhão de dólares a cada 100 dias. Não é possível que uma população com mais de 200 milhões de habitantes continue exposta a esse tipo de risco.

Em outubro, haverá um encontro dos BRICS em Kazan, na Rússia, e o tema da desdolarização já foi anunciado como prioridade. Em 2025, o Brasil assume a presidência dos BRICS, e caberá, portanto, aos economistas e jornalistas econômicos brasileiros aumentar sua participação nesse debate. Como grande exportador e importador, tendo obtido uma corrente de comércio de quase US$ 600 bilhões em dois anos seguidos, 2022 e 2023, e que deve se repetir este ano, o Brasil se tornou um dos principais players do comércio internacional. A questão cambial, por isso mesmo, tornou-se absolutamente estratégica para a nossa estabilidade econômica, social e política. Para o Brasil, o dólar também se tornou um estorvo e um perigo, o que foi agravado pelo fato de que nossos principais parceiros comerciais hoje estão no Sul Global, ou seja, são justamente aqueles mais agredidos pelas guerras financeiras promovidas pelos EUA através da manipulação descarada do dólar.

A desdolarização do mundo tornou-se, portanto, uma das principais bandeiras da independência geopolítica do Sul Global e do Brasil!

 

¨      Desdolarização está em andamento por causa das políticas de Washington, diz candidata ao Senado

A desdolarização da economia global já está em curso e está acontecendo como resultado direto das políticas dos EUA, disse à Sputnik a candidata independente ao Senado dos EUA Diane Sare.

"Acho que isso está acontecendo. Está acontecendo. E não precisa ser assim, mas por causa de nossas políticas, acho que as pessoas realmente não têm escolha", disse Sare, que está concorrendo a uma das duas cadeiras de Nova York no Senado dos EUA.

Quando questionada se este processo pode ser revertido, Sare disse que um governo "racional" nos EUA poderia ser capaz de inverter a maré.

"Ou talvez não. Você sabe, talvez não devesse ser", disse ela. "Talvez faça mais sentido ter uma cesta de moedas."

Sare observou que Lyndon Larouche, oito vezes candidato presidencial independente, com quem trabalhou durante 32 anos, apelou a taxas de câmbio fixas para eliminar a capacidade das pessoas especularem contra as moedas umas das outras e destruírem as economias nacionais.

"Penso que se os Estados Unidos tivessem uma política claramente pretendida pelos nossos pais fundadores, por Hamilton, pelo nosso primeiro secretário do Tesouro, por John Quincy Adams, até mesmo por Lincoln ou John F. Kennedy, isto não estaria acontecendo. Mas no momento está", acrescentou Sare.

Em uma entrevista com Tucker Carlson, o presidente russo, Vladimir Putin, classificou o uso do dólar pelos EUA como ferramenta de política externa como um dos maiores erros estratégicos da liderança dos EUA. Até mesmo os aliados norte-americanos estão agora reduzindo as suas reservas em dólares americanos, destacou Putin.

O ministro das Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, disse em fevereiro que a desdolarização do comércio exterior da Rússia está em curso, com cerca de 90% de todos os pagamentos mútuos com a China e cerca de 50% com a Índia sendo feitos em moedas nacionais.

O presidente da Reserva Federal dos EUA (Fed), Christopher Waller, disse que o domínio do dólar americano provavelmente permanecerá, apesar das manchetes sobre blocos comerciais, criptomoedas e sanções que supostamente minam a sua posição como moeda de reserva mundial.

<><> EUA e Rússia têm formas produtivas de cooperar em benefício da humanidade

Existem formas potenciais de cooperação produtiva entre a Rússia e os Estados Unidos que poderiam beneficiar a humanidade, disse Sare à Sputnik.

"Penso que existem formas muito, muito produtivas pelas quais a Rússia, os Estados Unidos e outras nações com capacidades científicas avançadas poderiam cooperar, o que traria grandes benefícios para a humanidade", disse Sare. "Se começássemos a promover isso e a nos relacionarmos uns com os outros nessa base, poderíamos deixar para trás esta retórica e ações de guerra."

A candidata destacou que um exemplo de cooperação bem-sucedida entre os países foi o trabalho na Estação Espacial Internacional (EEI).

Além disso, Sare disse que Moscou e Washington precisam retomar as negociações sobre controle de armas.

"Nós realmente deveríamos estar conversando sobre nos livrarmos completamente das armas nucleares", disse ela. "Sabe, temos certas ameaças que deveriam ser alarmantes para todos nós, como cometas, meteoritos, asteroides, coisas que poderiam colidir com a Terra e ser o nosso fim. E francamente, não temos sistemas eficientes para detectar todas essas coisas."

No início de abril, o chefe da NASA, Bill Nelson, disse que a agência espacial solicitou financiamento de emergência adicional ao Congresso para começar a preparar uma nave espacial para desorbitar a EEI e trazer os seus restos em segurança para a Terra após 2030, caso a cooperação espacial com a Rússia seja interrompida antes disso.

Os planos atuais preveem que a NASA e a empresa espacial estatal russa Roscosmos vão trabalhar em estreita colaboração para desorbitar com segurança a estação, para que os seus detritos não ameacem nenhuma área povoada da Terra. No entanto, dadas as atuais tensões nas relações EUA–Rússia, a NASA não pode presumir que a cooperação em curso com a Roscosmos continuará com segurança em um futuro indefinido.

<><> Os EUA poderiam reformar a economia global com a Rússia e a China se não fossem tão hostis

Os Estados Unidos poderiam cooperar com a Rússia, a China e outras potências para transformar o sistema econômico global se abandonassem a sua hostilidade e a guerra financeira, afirmou a candidata independente ao Senado.

"Penso que, realmente, se não fôssemos tão hostis a muitas nações, ficaríamos felizes em colaborar com a Rússia, a China, outras grandes potências econômicas, o Japão, para reorganizar o sistema transatlântico. Se não fizermos isso e continuarmos a colocar sanções contra as pessoas e o roubo do seu dinheiro, vamos ver o que estamos vendo", disse Sare.

Alguns países estão agora abandonando o dólar americano e encontrando outros meios de comércio que são mais fiáveis, observou ela.

"Isso não é porque as pessoas sejam contra os Estados Unidos em si, mas porque não têm intenção de causar grandes perturbações na sua economia por causa da guerra financeira que estamos tentando lhes impor", disse ela.

Ela também alertou sobre uma bolha de obrigações de derivativos detidas por Londres e Wall Street, estimada em US$ 2 quatrilhões (cerca de R$ 11,01 quatrilhões).

Sare a chamou de "uma espécie de impulsionador da guerra" e rejeitou a ideia de que os EUA "ainda possam ser a hegemonia global de alguma forma pela força militar, embora isso também não esteja funcionando tão bem".

"Teremos que encarar o fato de que não há US$ 2 quatrilhões para cumprir essas obrigações. E é aqui que o governo pode intervir e resolver os problemas dos bancos", afirmou ela.

Em uma sessão plenária do Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, o presidente russo, Vladimir Putin, disse que os EUA estão quebrando a sua própria "ferramenta de grandeza" — o dólar americano. Os EUA "com as suas próprias mãos" estão afastando os atores econômicos globais do dólar, observou ele. A mudança do dólar acontecerá de qualquer maneira devido ao encolhimento da economia norte-americana, mas os EUA estão a acelerar este processo, disse Putin.

 

Fonte: Por Miguel do Rosário, em O Cafezinho/Sputnik Brasil

 

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