PLANOS DE
SAÚDE NUNCA DESCARTARAM TANTOS AUTISTAS E PORTADORES DE DOENÇAS GRAVES QUANTO
AGORA
QUANDO
BEATRIZ LIMA OLIVEIRA decidiu fazer um plano de saúde para o filho Heitor,
uma criança diagnosticada com hiperatividade e autismo aos três anos de idade,
ela achava que seu maior problema seria pagar o boleto todos os meses – uma
tarefa difícil para quem é mãe solo e ganha pouco mais de um salário
mínimo.
Beatriz
tem cumprido essa obrigação financeira rigorosamente. O mesmo não se pode dizer
do plano de saúde que ela contratou, a Unimed Teresina.
No episódio que estreia a parceria entre o Intercept Brasil e o podcast Rádio
Escafandro, investigamos os abusos no sistema de saúde suplementar – e
descobrimos que casos como o de Heitor, uma das crianças vistas como um
prejuízo pelas operadoras de planos de saúde, são mais comuns do que
nunca.
Planos de saúde estão
descartando clientes autistas e outros portadores de doenças crônicas com
recorrência: só de janeiro a maio deste ano, a Agência Nacional de Saúde, a
ANS, recebeu mais de 9.500 denúncias de negativas de cobertura ou cancelamento
de convênios de forma unilateral.
Cancelamentos
de contratos de autistas são uma das reclamações mais recorrentes: neste ano,
aumentaram 212% em comparação com o mesmo período de 2023. Já as reclamações
por negativas de cobertura subiram quase 33%.
Outros
dados, obtidos pela deputada estadual de São Paulo, Andréa Werner, do PSB,
corroboram o cenário. Ela mapeou quase mil denúncias contra os planos de saúde
no estado desde 2023. Os cancelamentos unilaterais de contratos correspondem a
36% das reclamações.
A
Amil e a Unimed são as principais denunciadas. As operadoras foram citadas em
26% e 21% das reclamações, respectivamente, segundo o levantamento da
parlamentar. Ela levou os casos para o Ministério Público de São Paulo, que
abriu seis inquéritos para investigar a ação das operadoras.
O
problema aconteceu principalmente nos planos coletivos por adesão, que são
destinados a grupos de uma mesma categoria profissional ou entidades de classe.
Essa
modalidade é diferente dos planos empresariais, pagos pelo empregador.
Contratados individualmente, os planos coletivos por adesão diferem dos planos
individuais ou familiares porque não são regulamentados da mesma forma.
Eles
têm cláusulas que permitem, por exemplo, o cancelamento por decisão da
operadora, mesmo que o beneficiário esteja em tratamento e pagando o boleto
mensalmente, o que é proibido nos planos individuais.
·
18 meses à espera de uma consulta
Heitor,
hoje com oito anos, é nível dois do Transtorno do Espectro Autista. Isso
significa que ele tem certo grau de independência, mas precisa de suporte para
realizar determinadas tarefas.
A
criança está há um ano e meio sem consulta com neuropediatra. Também nunca
conseguiu vaga em uma clínica especializada.
Por
dois anos, mesmo quando já tinha o plano de saúde, sua mãe Beatriz se esforçou
para pagar uma terapia comportamental conhecida pela sigla ABA em uma clínica
particular. O método ajuda a promover autonomia e aprendizagem a crianças
neurodivergentes.
“Ele
tinha acompanhamento de fonoaudiólogo, psicólogo e terapia ocupacional. Era uma
hora por semana para cada especialidade”, disse a mãe.
Quando
as contas apertaram, Beatriz recorreu à justiça para obrigar o convênio a
disponibilizar as terapias. De acordo com a ordem judicial, seu filho deveria
receber todas as terapias de que precisa como uma criança não-verbal – mas a
liminar, segundo a mãe, está sendo cumprida apenas parcialmente.
Hoje,
segundo Beatriz, Heitor faz apenas 30 minutos de sessão por semana, em grupo –
foi o que o plano ofereceu. A mãe acredita que as crises do filho estão mais
intensas e frequentes por causa disso.
“Eu
tenho que achar uma maneira de ajudá-lo a se acalmar. Tento acolher no braço,
deitar ele numa rede para balançar. É um desafio enorme”, me disse, pedindo
desculpas por estar chorando. O filho teve uma crise na madrugada do dia em que
ela me deu a entrevista.
Em
nota, a Unimed Teresina justificou que a demanda por neuropediatras “cresce
vertiginosamente e este fato pode resultar em períodos de espera prolongados”.
Quanto às terapias, informou que “o tempo das sessões ocorre de acordo com a
avaliação dos profissionais […] conforme a necessidade do paciente”.
A
operadora ainda disse que não constatou “evidência de má qualidade
assistencial” e se prontificou a agendar uma reunião com Beatriz para “garantir
que o paciente receba todo o suporte adequado”.
·
‘Meu filho é um problema do qual eles
querem se livrar’
Os
dados da ANS mostram que as reclamações por rescisão unilateral de contrato de
beneficiários em geral aumentaram 32% este ano. Entre eles estão idosos e
crianças em internação domiciliar, que dependem de aparelhos para sobreviver.
É o
caso de Francisco, de três anos, filho de Eveliny Goulart. Ele tem Síndrome de
Edwards, uma doença genética que causa má formação dos membros e anomalias
cerebrais, além de problemas como cardiopatia e câncer de fígado.
Em
95% das gestações nesses casos, ocorrem abortos espontâneos. Apenas entre 5% e
10% dos bebês sobrevivem ao primeiro ano. Francisco é uma exceção. Após ficar
os primeiros nove meses de vida em UTIs e fazer cinco cirurgias, ele passou
para a internação domiciliar.
A
criança não consegue fazer os movimentos de respiração sozinha e se alimenta
por sonda. Também depende de uma máquina para aspirar a secreção das vias
aéreas superiores, várias vezes ao dia. Às vezes, precisa de oxigênio, segundo
me disse Eveliny.
Nada
disso foi suficiente para impedir a Amil de cancelar o contrato de Francisco.
No dia 30 de abril, a Qualicorp, administradora de planos coletivos por adesão,
enviou um WhatsApp para Eveliny, informando que ele ficaria sem convênio por
decisão da Amil. O motivo: prejuízo.
Na
ANS, o número de reclamações de pessoas em home care, que tiveram contratos
cancelados pelas operadoras, aumentou 91% este ano, comparando com o mesmo
período do ano passado. Foram 21 denúncias somente nos primeiros cinco meses.
Em 2023, foram 28 no ano todo.
A
explicação das empresas para o descarte dessas pessoas não poderia ser mais
transparente do que foi em uma nota emitida pela operadora em maio. Segundo a Amil, foi feito o cancelamento de um
conjunto de contratos “que demonstram desequilíbrio extremo entre receita e
despesa há pelo menos três anos”.
As
centenas de cancelamentos de convênios, que só foram revertidas em um acordo
com o presidente da Câmara Arthur Lira devido a má repercussão, eram uma
bomba prestes a explodir, como explicou Lígia Bahia, doutora em saúde pública e
professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Para
Bahia, a falta de regulamentação dos planos coletivos por adesão facilita a
prática da seleção de risco, porque permite que as operadoras cancelem
contratos de forma unilateral. “As empresas podem fazer isso, porque esses
planos não têm proteção. Eles ficaram em uma espécie de limbo das regras. E a
ANS está muda”, disse Bahia.
Procurada,
a ANS confirmou por e-mail que “é lícita a rescisão de contrato de plano
coletivo com beneficiários em tratamento”. Mas ressaltou que “a operadora
deverá arcar com todo o atendimento até a alta hospitalar”, assim como garantir
a cobertura de “procedimentos autorizados na vigência do contrato”.
‘Prejuízo
acumulado’ foi a justificativa enviada pelo plano de saúde à Evelyne.
A
agência também informou que “nenhum beneficiário pode ser impedido de adquirir
plano de saúde em função da sua condição de saúde ou idade; não pode ter sua
cobertura negada por qualquer condição; e, também, não pode haver exclusão de
clientes pelas operadoras por esses mesmos motivos”.
Também
por e-mail, a Associação Brasileira de Planos de Saúde, a Abramge, negou que
fez seleção de risco de beneficiários autistas, em internação domiciliar ou
idosos. “O que houve foi o anúncio do cancelamento de alguns contratos inteiros
de planos coletivos por adesão”.
A
entidade ainda alegou que respeitou “os trâmites necessários que proíbe o
cancelamento durante a internação”. Mas não foi isso que aconteceu no caso de
Francisco. Como advogada, Eveliny atua na defesa do próprio filho e teve que
conseguir uma liminar para impedir o cancelamento.
Ela
ainda luta diariamente por coisas pequenas, como luvas e seringas, que o plano
de saúde não está fornecendo como deveria, segundo ela. Agora, a mãe também
está com medo do aumento abusivo no preço do convênio.
“Meu
filho é um problema do qual eles querem se livrar. Eu gostaria de ter
oportunidade de ser apenas sua mãe, de pegá-lo no colo, cantar para ele. Mas,
os problemas que o plano de saúde me impõe, impedem que eu viva a maternidade
de forma plena, nesse tempo que Francisco ainda tem com a gente”, afirmou
Eveliny.
Em
nota, a Amil destacou que Francisco permanece com o seu plano de saúde ativo e
reforçou que não houve cancelamento por conta de doença específica. A empresa
afirmou que “manteve ativo o plano de saúde dos beneficiários internados ou
submetidos a tratamento médico garantidor de sua sobrevivência”.
·
Só 1,8% das denúncias geraram multas
Segundo
a deputada Andrea Werner, uma das maiores dificuldades é conseguir punição para
as empresas, mesmo quando há denúncias graves e descumprimento de liminares
judiciais. “As multas não fazem nem cócegas nas finanças das operadoras, porque
são muito leves. Às vezes, elas preferem pagar do que cumprir a lei”, me disse
a parlamentar.
De
acordo com a ANS, a operadora que rescindir o contrato indevidamente pode ser
multada em até R$ 80 mil. Em 2019, foram aplicadas apenas 229 multas por causa
disso, o que corresponde a 1,5% das mais de 14 mil denúncias recebidas naquele
ano.
De
janeiro a maio de 2024, as operadoras foram multadas 142 vezes, enquanto as
denúncias por cancelamento unilateral passaram de 7,6 mil no mesmo período, o
que corresponde a 1,8%.
Werner
acredita que existe um movimento coordenado das operadoras para aumentar as
margens de lucro, por meio da seleção de risco dos clientes. “Querem atender só
as pessoas que usam menos o convênio e, portanto, dão mais lucro. É o modelo de
negócio perfeito para eles”, disse a deputada.
Segundo
Lígia Bahia, a ANS, que deveria proibir essa prática, optou pela omissão
completa. “É uma agência reguladora da saúde suplementar, que não cumpre seu
papel. Parece um suicídio institucional”, afirmou.
Werner
concorda. “Se a saúde suplementar fosse bem regulada, a gente não estaria
passando tanta raiva, tanto desgosto. Não estaria nem debatendo isso”, disse.
Por
e-mail, a ANS afirmou que o setor é composto por atores com interesses
antagônicos. Por isso, “é natural que haja críticas e insatisfações de
diferentes naturezas”.
Em
sua defesa, a agência citou várias de suas ações, que protegem o consumidor,
entre elas a atualização permanente da lista de coberturas obrigatórias pelos
planos de saúde e a definição de prazos máximos de atendimento.
Enquanto
a ANS é criticada por não cumprir seu papel de reguladora da saúde suplementar,
o protagonismo é assumido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP. Após
as denúncias de cancelamento em massa de convênios ganharem repercussão, ele
fez um acordo informal com as operadoras para que elas voltassem atrás no cancelamento dos
planos.
Segundo
a Abramge, o compromisso assumido com Lira está sendo seguido à risca. Ao menos
até ele entender “o contexto do setor”, são “asseguradas coberturas aos
beneficiários internados, em ciclos de terapias oncológicas e que realizam
terapia para transtornos globais do desenvolvimento, incluindo o transtorno do
espectro autista”, garantiu a entidade por e-mail. Porém, não há documento
oficializando esse compromisso.
Também
está nas mãos do presidente da Câmara a abertura da CPI dos Planos de Saúde,
solicitada em junho de 2024 pelo deputado federal Áureo Ribeiro, do
Solidariedade, com o apoio de 300 parlamentares.
Segundo
Bahia, Lira é “uma pessoa dos planos de saúde”, que deve abafar o assunto, pelo
menos neste ano de eleição. “Até onde a gente consegue ver, ele vai tirar o
bode da sala”, acredita a especialista.
·
‘Planos de saúde afogam o SUS’
Os
planos de saúde tiveram um lucro líquido de R$ 3,3 bilhões no primeiro trimestre de 2024, segundo o Painel
Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar, divulgado pela ANS. Os números
contradizem a narrativa adotada pelas empresas de que estão amargando prejuízo.
Segundo
a professora da UFRJ, as operadoras tentam confundir as pessoas com esse
discurso, como se o orçamento de grandes grupos empresariais pudesse ser
comparado com o orçamento doméstico. “Talvez elas tenham prejuízo operacional,
mas lucram de verdade com investimentos internacionais, transações financeiras,
fusões e expansões”, explicou.
Outro
argumento criticado por Bahia e por Werner é de que os planos de saúde estão
desafogando o SUS. Para elas, ocorre o contrário. “A saúde suplementar está
falando para algumas pessoas que não as querem, mandando elas para o SUS. É o
famoso: o lucro é para mim e o prejuízo é para o estado”, disse a deputada.
De
acordo com Bahia, não se trata de defender o fim dos planos de saúde, mas de
lutar para que o SUS inclua as classes médias de fato, deixando a saúde
suplementar “apenas para os super ricos”. Afinal, só eles podem pagar por
convênios chamados de primeira linha.
A
especialista defende que o SUS não precede o privado, ele sucede – é um avanço.
“Isso é muito difícil de entender, porque é contra intuitivo no Brasil. Parece
que o sistema privado é sempre moderno, inovador e ético, mas não é. Vários
países asiáticos estão indo em direção ao sistema universal. Nós é que estamos
no passado” afirmou Bahia.
Fonte:
Por Nayara Felizardo, em The Intercept
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