Comunidade
rural do Maranhão é ameaçada ao defender território tradicional
Agricultores
rurais da comunidade tradicional Jussaral, em Urbano Santos, leste do Maranhão,
denunciam o terror vivido diante do avanço da fronteira
agrícola em suas terras. As lideranças
comunitárias relatam invasões, desmatamento e ameaças violentas por parte de
fazendeiros e jagunços. Segundo os moradores, eles tentam expulsar 85 famílias
que vivem no território.
Com
o conflito cada vez mais acirrado nos últimos dias, mulheres defensoras de
direitos humanos chegaram a ser ameaçadas de sequestro e estupro, segundo os
relatos da comunidade.
Uma
denúncia formalizada pelos trabalhadores no dia 19 de junho, no Ministério Público do Maranhão, em Urbano Santos, descreve que as crescentes tensões agrárias
se intensificaram em 2023, quando Gladistone Antônio Dallan e Maikel José Gale
Odorisse, conhecidos como “gaúchos”, compraram a fazenda Todos os Santos, nas
imediações de Jussaral, com intenção de plantar soja e eucalipto.
Os
trabalhadores rurais alegam que foram informados de que estavam proibidos de
fazer novas cercas na área de propriedade de Gladistone Antônio. O cercamento
realizado antes de uma decisão liminar da Justiça tinha o objetivo de demarcar
a área da comunidade, que estava sob constante movimentação e indícios de
desmatamento iminente.
No
entanto, no dia 18 de junho ocorreu desmatamento na área tradicional em uma
ação com a presença de policiais militares dando apoio ao fazendeiro, o que
gerou indignação e levou ao conflito. Os trabalhadores declaram ter flagrado os
jagunços da fazenda Todos os Santos cortando os arames e arrancando os mourões
da cerca que divide a área de Gladistone e a área da sede da União dos
Moradores do Povoado Jussaral de Urbano Santos.
“Eles
estão invadindo as terras da comunidade Jussaral, estão desmatando a chapada
que tem muito bacuri, onde a comunidade faz o extrativismo e retira o seu
sustento”, denunciou, em entrevista à Amazônia Real, o líder rural
Raimundo Rodrigues Viana, presidente da associação que representa os moradores
da comunidade.
Eles
vivem e produzem no local há pelo menos 100 anos e ocupam uma área de 2.400
hectares, dos quais 30% estão destinados à preservação ambiental.
“Eu
queria que eles provassem que alguém do Jussaral vendeu terra para eles,
entendeu? Eles compraram a fazenda e estão tentando grilar a comunidade
Jussaral, então isso não é certo, as autoridades tem que ver isso. Quando
eles chegaram já encontraram a comunidade Jussaral naquele território ali, por
que não respeitam os direitos da comunidade?”, questiona Raimundo.
Os
moradores cobram do Instituto de Colonização e Terras (Iterma) um levantamento
fundiário que verifique se as terras disputadas estão inseridas em alguma gleba
de domínio público. Procurado pela reportagem, o Iterma não respondeu se irá
realizar o levantamento reivindicado.
O
Ministério Público também não respondeu se vai analisar a documentação da
fazenda para identificar possível caso de grilagem e verificar se há
irregularidades que possam ser constatadas e tratadas, de acordo com o pedido
dos moradores de Jussaral.
As
principais reivindicações são a verificação de existência de licença ambiental
na área, fiscalização ambiental, inclusão das lideranças no programa de
proteção, apuração da conduta de policiais militares supostamente envolvidos no
acompanhamento do desmatamento e ameaças à comunidade.
A
Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do
Estado do Maranhão (Fetaema) e o sindicato local apoiam as famílias afetadas. A
organização acionou a Comissão Estadual de combate e Prevenção à Violência no
Campo, o Instituto de Colonização e Terras, a Defensoria Pública do Estado do
Maranhão e a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Maranhão para
acompanhar o conflito.
Para
Diogo Cabral, advogado popular da Fetaema, o avanço da fronteira agrícola
que causa conflitos violentos no campo maranhense, como acontece em Jussaral, é
estimulado pelo estado brasileiro.
“O
estado brasileiro induz uma forma de desenvolvimento para a região, com
financiamento público (Plano Safra), pesquisa de ponta (Embrapa),
infraestrutura (rodovia, ferrovia, portos), arranjos institucionais (isenções
fiscais, liberação de terras públicas, flexibilização ambiental). Não há
agronegócios sem estado”, afirma.
·
Ameaças atingem mulheres e idosos
Trabalhadores
rurais da comunidade registraram boletins de ocorrência nos últimos dias
alegando terem recebido ameaças de jagunços. Entre os que denunciam as ameaças
de violência estão mulheres e idosos. As denúncias também foram feitas ao
Ministério Público.
Mayane
Viana da Silva, lavradora de 20 anos, relata ter recebido de um jagunço a
ameaça de ser capturada e estuprada caso fosse vista na área. Maria Melissa
Viana é outra mulher que conta ter sido ameaçada de violência sexual. Segundo
ela, jagunços disseram que iriam estuprar as mulheres na frente de toda a
comunidade.
“Nós
nos sentimos ameaçadas por eles. Esse foi o assédio sexual que sofremos na
semana passada. Mas outras ameaças já acontecem há muito tempo, nós vivemos
aterrorizadas”, diz.
Durante
a ação do dia 18 de junho, outros moradores alegam que foram recebidos com
ameaças de morte e avisados por policiais, encapuzados, de que eles estavam lá
para proteger os “gaúchos” e não a comunidade.
“A
polícia disse para comunidade ‘não entre para cá, porque se vocês entrarem nós
seremos obrigados a atirar em vocês, nós estamos aqui para proteger os gaúchos,
não a comunidade’. Aí começou o conflito”, descreve Raimundo.
O
líder rural afirma que o fazendeiro Gladistone afirmou ‘querer a sua cabeça’.
“Eu estou ameaçado pelos gaúchos e pelos jagunços. Eles falaram que se eu não
largasse de ser presidente da associação, eles iriam me pegar e me botar numa
sala fechada, e lá não ia ter pai e nem mãe e nem mesmo a associação para me
livrar do que eles iriam fazer comigo”.
Em
março deste ano, os moradores de Jussaral chegaram a
denunciar que os fazendeiros usaram cães da raça pitbull para intimidar a comunidade. Vacas e jumentos foram
violentamente atacados pelos cachorros, segundo a acusação.
Questionada
pela reportagem sobre as ameaças feitas por policiais durante o conflito, a
Secretaria de Segurança Pública do Maranhão informou que todas as ocorrências
de conflitos no campo registradas no estado são investigadas, “buscando
identificação e responsabilização no âmbito criminal dos envolvidos”.
A
secretaria informou também que vai intensificar as ações de policiamento
ostensivo, por meio da Polícia Militar, para prevenir ocorrências graves.
A
Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular respondeu
à Amazônia Real que foi realizado o encaminhamento do caso da
comunidade de Jussaral para análise e triagem no âmbito do Programa Estadual de
Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos do Maranhão, gerido
pela secretaria e executado pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos
(SMDH).
A
triagem já foi realizada e o caso está em análise pela equipe técnica, a partir
das informações, relatos e documentos coletados.
Representantes
da área de direitos humanos estiveram na região há uma semana para ouvir as
denúncias sobre os conflitos socioambientais e violência no campo. “A partir
das denúncias, foram tomadas medidas emergenciais, tais como solicitar a
abertura de processos de investigação para averiguar as violações relatadas
sobre ameaça e desmatamento ilegal; e tratar junto ao Judiciário e ao
Ministério Público do Maranhão para que sejam estabelecidos limites nas
atividades das partes envolvidas no conflito, evitando mais prejuízos,
destruição de bens e o agravamento da disputa”, disse a Secretaria de Estado
dos Direitos Humanos e Participação Popular.
Também
procurada, a Defensoria Pública, que acompanha o caso juridicamente, informou
que já foram adotadas medidas de proteção aos moradores de Jussaral em primeiro
grau e, mais recentemente, foi apresentado um recurso no segundo grau, que se
encontra pendente de julgamento.
“É
importante afirmar que essa é uma ação que não depende unicamente da
Defensoria. Existem vários caminhos que precisam ser percorridos em termos de
manifestação judicial”, declarou o órgão.
·
Impacto do desmatamento
A
destruição dos bens dos moradores e o desmatamento, principalmente de
árvores e plantas utilizadas para extrativismo, como bacuri, pequi, fava danta,
arruda, babaçu, araçá e a mangaba, acontecem todos os dias. O desmatamento
afeta a comunidade, que além de viver do extrativismo, cuida de roças e faz
criação de animais.
“É
um sofrimento muito grande para a comunidade, que vem passando por um momento
de calamidade e as autoridades não estão fazendo nada”, desabafa Raimundo.
“Nós
somos pobres aqui, nós vivemos de roça e eles estão desmatando tudo com
seguranças armados. Estão nos ameaçando e ninguém sabe mais o que fazer. Tem
que ir na fazenda fazer eles pararem, porque nossas terras estão sendo
destruídas, principalmente o bacuri. As autoridades têm que tomar providências,
o mais rápido possível”, apela Maria Celene Rodrigues Viana, moradora da
comunidade.
Além
disso, os trabalhadores denunciam que estão proibidos de transitar livremente
no território tradicional. “Botaram uma placa que diz que a comunidade não pode
mais passar nem para um lado nem para outro. Nem buscar água para beber,
pescar, passar pela roça”, lamenta Raimundo.
Maria
Melissa Viana confirma que a comunidade não pode ir ao rio para pescar, o que
pode afetar a alimentação. “Agora vamos morrer mesmo, porque estão proibindo a
gente de ir no rio pescar um peixe para poder trazer para casa e alimentar
tanto a gente quanto os nossos filhos. Quando chegarem [autoridades]
aqui, a comunidade estará toda morta de fome”.
De
acordo com Maria Celene, há ainda o adoecimento psicológico entre as famílias,
que não dormem direito porque estariam sendo vigiadas por drones a mando dos
fazendeiros. “Estamos assustados. Tem uma turma de dia vigiando e outra de
noite, ninguém dormiu aqui esses dias. Estamos desesperados pedindo socorro
para as autoridades”.
A
Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais identificou que a
área possui licença ambiental e autorização para supressão de vegetação. A
secretaria alega que não há irregularidades quanto ao processo de
licenciamento, mas que apura possíveis infrações ambientais por meio de
monitoramento por satélites e vistoria in loco.
“Serão
tomadas as providências cabíveis com relação a autuação e multa em caso de
detecção de algum crime ambiental”, diz o órgão público.
O
Batalhão Ambiental da Polícia Militar realizou uma vistoria na área do
conflito, na segunda-feira (24), e também não identificou ilegalidades. Os
documentos e licenças necessárias às atividades de desmatamento foram
concedidos pelos órgãos ambientais e apresentados à equipe do Batalhão durante
a fiscalização.
Procurado
pela Amazônia Real, o fazendeiro Gladstone Antônio afirmou
que a supressão da vegetação está com a licença ambiental autorizada.
“Inclusive teve uma patrulha da Polícia Ambiental na fazenda para averiguar
sobre essas denúncias falsas e nada de ilegal foi constatado”, disse.
Sobre
as ameaças aos moradores, Gladistone declarou que são falsas e que não tem
nenhum jagunço contratado, mas sim colaboradores nas funções de operador,
mecânico e serviço gerais. Segundo ele, as denúncias são distorcidas com o
objetivo de causar comoção na opinião pública.
O
fazendeiro disse ainda não ter histórico de violência e nem de ameaça a
qualquer pessoa, e que jamais toleraria qualquer atitude dessas vinda de seus
colaboradores.
“O
que está acontecendo é que o presidente do Jussaral, junto com alguns de seus
irmãos, alguns familiares e alguns da comunidade, levantam mentiras e falsos
testemunhos a todo momento, como é o caso da licença ambiental”, disse.
Questionado
sobre as denúncias de ameaça de violência sexual contra as mulheres, o
fazendeiro também nega as declarações. “Em relação à denúncia de violência
sexual feita por essa moça, queremos dizer que é mentira, essa denúncia é
gravíssima, inadmissível que alguém tenha inventado uma acusação desse nível
tão alto. E que estamos tomando as medidas necessárias para o esclarecimento da
verdade e também buscando uma maneira para que esse menino não fique com algum
trauma e nem um abalo psicológico”.
Maikel
José Gale Odorisse, o outro fazendeiro citado na denúncia feita ao Ministério
Público, não foi localizado pela reportagem para falar sobre as acusações.
Vice-presidente
da União dos Moradores do Povoado Jussaral de Urbano Santos, André Rodrigues
Gomes reforça a agonia de não ter uma ação concreta das autoridades para
proteger as terras e os moradores.
“Estamos
no maior sufoco aqui. Estamos precisando de uma ajuda emergencial o mais rápido
possível. Estão desmatando tudo e não podemos fazer nada com medo de morrer”.
Fonte:
Amazônia Real
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