sexta-feira, 28 de junho de 2024

Vincius de Andrade: ‘Varão Valadão, por que teme a educação?’

"Se a faculdade vai acabar com a vida do seu filho, não manda ele para a faculdade", disse o pastor André Valadão em um de seus eventos.

Parece meio contraintuitivo com os conselhos que deveriam ser proferidos, mas ele tem uma justificativa: "Não manda, que vá vender picolé na garagem. 'Ah, mas não criei meu filho para isso'. Criou para que, então? Para ele ir para o inferno? Criou sua filha para que? Para ser uma vagabunda ou uma mulher santa, digna, de família e de Deus? Daí ela tem um diploma, mas é rodada e doida."

O Varão Valadão continua: "'Ah, mas tenho um sonho de ter doutor em minha família'. Daí seu filho tem mestrado, doutorado, você vai falar de Jesus e ele diz 'Não fala de Deus para mim não'. Tenho uma mensagem para vocês: não parem de lutar pelos seus filhos."

Assim que assisti o vídeo, senti que precisava falar sobre. Não irei politizar excessivamente, mas não posso deixar de pontuar que a fala dele está bem coesa com a de alguns governantes da extrema direita, sobretudo no sentido de adjetivar pejorativamente as universidades públicas.

O Valadão é uma figura bem única e especial, para dizer o mínimo, se é que me entendem. Em muitos de seus vídeos, é possível dar boas risadas, ainda que não tenha sido sua intenção proporcionar esta sensação, mas em muitos outros, como este que motivou a coluna, ele faz um total desserviço. É importante que pessoas com o poder de alcance que ele tem, entendam sua responsabilidade para com suas falas e posicionamentos. Ele passa longe disso.

Meu objetivo aqui será esclarecer alguns pontos que ele cita em sua fala e que acredito que mereçam ser iluminados com informações.

•           Desrespeito às universidades

É impressionante como as universidades públicas incomodam o Varão e boa parte da corja política que o segue. Confesso que fico na dúvida sobre o quanto realmente acreditam que são instituições inúteis, ou se é justamente a produção intelectual que os incomoda tanto.

Se eu disser que nas universidades não há droga ou que 100% do corpo discente é comprometido, estarei mentindo. Há drogas, claro, e há estudantes que não são focados com a formação. É fato.

Mas pegar casos fora da curva para tentar manchar não apenas toda uma classe, mas também toda uma instituição é de uma maldade indescritível. Para além disso, sejamos honestos, já está bem brega e cansativa a narrativa de que há apenas vagabundos e comunistas nas universidades. Poxa, já deu.

As instituições brasileiras possuem estudantes incrivelmente comprometidos com a própria formação e altamente capacitados. Não coincidentemente, muitas delas configuram entre as melhores do mundo, e muitos de nossos docentes são referências mundiais nas respectivas áreas. Por que não falar sobre isso também?

•           Acessar o ensino superior pode ajudar na ascensão social

Outro ponto que me incomodou muito foi "Que vá vender picolé na garagem". Não há nada de errado ou de não virtuoso em vender picolé. Meu ponto não é esse. Para muitos brasileiros é, inclusive, a única fonte de renda e o que sustenta a família.

Mas é de tamanha irresponsabilidade ele usar seu poder de influência e alcance para deslegitimar uma ação que para boa parte do povo brasileiro ainda é a única possibilidade de algum tipo de ascensão social, o ingresso no ensino superior.

Já vi essa ascensão, via educação, ocorrendo inúmeras vezes, e é lindo. Me lembro de uma jovem preta aprovada em medicina na USP, e no dia da matrícula, a mãe foi com ela e vestida com o uniforme de caixa de supermercado. A filha, num único plantão, poderá ganhar mais que o mês todo da mãe. Os filhos da filha, já irão nascer em uma outra realidade, com mais conforto e possibilidade.

O Varão, por outro lado, vive numa grande bolha de privilégio e é um homem rico. Seus filhos já têm a vida garantida, assim como boa parte dos que vierem após. Uma parte expressiva de seu público, já não conta com o mesmo privilégio. Muitos, influenciados por ele, já não mais apoiarão seus filhos em relação aos estudos, e assim, consequentemente, terão suas possibilidades de ascensão limitadas.

Fico curioso se ele seguirá a mesma premissa com os próprios filhos. Será mesmo que não irão para a universidade?

•           É mentira que pessoas graduadas não acreditam na religião

Ao final de sua fala, afirma por A + B que pessoas que passam pelo ensino superior não acreditam em Deus ou em Jesus. É mentira.

Tenho uma colega que trilhou uma brilhante trajetória acadêmica, tendo feito doutorado sanduíche na melhor universidade do mundo, e hoje sendo professora doutora numa das melhores do Brasil, e que em nenhum momento teve sua fé diminuída. Segue, até hoje, muito fiel à sua religião e com uma relação muito bonita com a Igreja.

Na realidade, existem até grupos religiosos de estudantes dentro das próprias instituições.

Não há qualquer tipo de correlação entre perda de fé e escolarização. O que ocorre é que, de fato, quanto mais o indivíduo se capacita e agrega conhecimento, mais crítico ele fica e, naturalmente, menos suscetível a cair em discursos simplórios como o do Varão Valadão.

Me pergunto o que há nas universidades que incomodam tanto ele. Minha tese é que teme perder seu público e ter suas falas questionadas. Ele, assim como outros, ganha força numa população que não tem muito senso crítico. Essa força se traduz em poder, visibilidade, influência política e, não coincidentemente, também em muito dinheiro.

Para que tudo isso seja possível, as pessoas precisam acreditar, sem grandes questionamentos, em tudo o que ele diz, e usa a fé alinhada com a religião para manipular as pessoas a favor de suas próprias agendas e interesses políticos, ou seja: o conhecimento para o povo é o maior antídoto contra sua própria ascensão e isso ele não irá permitir.

•           Por que a Educação não avança no Brasil

"Das 20 metas do Plano Nacional de Educação, só 4 foram ao menos parcialmente cumpridas" – esse é o título de uma matéria publicada na Folha de S.Paulo há alguns dias e escrita por Isabela Palhares. Preocupante, né?

Para começar, acredito que caiba apresentar o Plano Nacional de Educação, o PNE. De forma simplista, é uma lei sancionada em 2014 pela ex-presidente Dilma Rousseff e que se pautava em um conjunto de 20 metas para a educação, indo do ensino básico ao superior.

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação divulgará na próxima terça um relatório completo de análise do avanço das metas, mas já adiantam que além de poucos avanços, tivemos alguns retrocessos. Inclusão e permanência seguem sendo grandes problemas.

Na próxima coluna, falarei mais sobre as metas, os avanços e os retrocessos. Nesta, pretendo elencar três hipóteses que podem ser boas em explicar o porquê de estarmos onde estamos. A primeira é a excessiva polarização política do Brasil, alinhada a uma falta de plano político estratégico; a segunda é a falta da real participação de importantes agentes na construção de políticas públicas. Por fim, precisamos falar sobre o teto de gastos e a excessiva austeridade.

<><> Sobra polarização e faltam planos

O cenário político brasileiro é marcado por uma polarização exacerbada. Não estou dizendo que somos o único país do mundo em que há polarização, O problema não está em haver oposição, mas nasce na medida em que ela sobrepõe qualquer projeto político de longo prazo. De modo simplista: é aquele bom e velho "entra um e muda tudo que o outro fez".

Um professor deu uma aula muito boa sobre isso uma vez e citou brilhantemente um caso brasileiro que é exceção: o Ceará. O Estado é referência nacional em educação, com destaque para Sobral, e se tornou um exemplo de projeto que resiste às questões políticas. Não importa quem esteja no governo, saberão que é melhor não "mexer no que está dando certo".

Infelizmente, é uma exceção. Todo o restante se torna marionete nas mãos de quem está no poder. Não serei ingênuo ou romântico aqui de pautar meu incômodo no fato de que eles não têm o bem do povo em seus planos. O problema é ainda maior: muitas vezes, não têm nem mesmo uma estratégia por trás de suas políticas para além de agendas puramente políticas.

<><> Faltam professores e profissionais da educação nas políticas públicas

Tendo estratégia ou não, é fato: políticas foram criadas durante todo o período. Acredito, inclusive, que muitas até eram bem intencionadas. Qual o problema então?

Aqui entramos no território das políticas públicas – e não coincidentemente essa é minha área de mestrado. Há um consenso na literatura acerca do seguinte ciclo de políticas públicas: identificação do problema, formulação da política, implementação e avaliação.

Na prática não há uma divisão tão clara e as fases se sobrepõem, de modo que a divisão exposta é mais no sentido didático.

Bom, qual o problema que quero trazer para a discussão? O fato de que os professores e demais agentes da educação são, quase sempre, subestimados no processo. Sempre são acionados na fase da implementação, e tendo suas ações pautadas em regras, diretrizes e metas.

Não são eles que são convidados para elencar os problemas reais ou para ajudar no desenho das políticas, de modo a fazer com que estas sejam coesas com as reais demandas e tenham instrumentos de operação exequíveis e eficientes. Geralmente os convidados, assumindo o título de "especialista em educação", são altos cargos de grandes institutos e fundações, e muitos desses não pisam em um colégio desde quando eram alunos.

Além disso, muitas das políticas simplesmente não são avaliadas. Como saber se são verdadeiramente eficientes?

Em suma, o processo de políticas públicas de educação no Brasil precisa urgentemente valorizar os profissionais que verdadeiramente estão nos colégios e os trazer para todas as etapas do processo. Somado a isso, todas as políticas precisam estar sempre em processo de avaliação para que ajustes possam ser feitos.

<><> O Brasil não gasta pouco com educação, mas o teto de gastos limitou avanços

Por fim, mas não menos importante, precisamos falar sobre os gastos com educação. Não serei sensacionalista: o Brasil não é um dos países do mundo que menos gastam em educação. Em alguns momentos, sim, estivemos alinhados, no geral, com os países da OCDE.

Mas tiveram momentos problemáticos. De acordo com a Agência Brasil, o relatório de 2023 Education at a Glance, da OCDE, mostrou que "enquanto o Brasil investiu em 2020 US$ 4.306 por estudante, o equivalente a aproximadamente R$ 21,5 mil, os países da OCDE investiram, em média, US$ 11.560, ou R$ 57,8 mil". Os valores são referentes aos investimentos feitos desde o ensino fundamental até a educação superior.

A meta 10 do PNE diz: "Ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do PIB no quinto ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio”.

Em 2022, o Instituto de Estudos e Educacionais Anísio Teixeira (INEP) publicou um relatório de monitoramento. Lá, o investimento brasileiro em educação chegava a 5,5% do PIB, e o investimento público em educação pública, a 5% do PIB. Ou seja: bem distantes do próprio Plano Nacional de Educação.

Durante boa parte do PNE, esteve em vigor a lei do teto de gastos e agora está em alta a narrativa, adotada pela extrema direita, da austeridade exacerbada. Essas políticas limitam qualquer avanço possível na educação.

Quais são os maiores prejudicados diretos? Os milhões de estudantes brasileiros, mas não somente eles. Também os professores, suas famílias e toda a nação. Educação é um dos ingredientes mais importantes para o desenvolvimento de uma nação. Enquanto a educação for interpretada como um custo e não como um investimento, avançar com as metas será um dos mais ingênuos sonhos.

•           Expansão de "especialistas" sem formação: um grave problema

Foi num curso online de cerca de um mês, e através de uma apostila de cerca de 43 páginas, que Natália Becker, autointitulada esteticista, aprendeu o procedimento de peeling técnico de fenol. A formação, infelizmente, não foi bem-sucedida: sua irresponsabilidade e negligência resultou na morte de um homem de apenas 27 anos.

Numa reportagem transmitida pelo Fantástico no domingo (09/06), ela simplesmente não quis responder uma das perguntas mais simples e básicas que poderiam ser feitas. "Qual a sua formação?"

Ela se dizia estética e cosmetóloga e até exibia com muito orgulho o título de especialista em melasma em suas redes sociais. No entanto, em nota enviada ao programa dominical, a própria Associação Nacional dos Esteticistas e Cosmetólogos a desmentiu e afirmou que Natália é "uma pessoa leiga atuando como esteticista".

Aqui acredito que estamos diante de um problema em dois níveis: institucional e individual. Na prática, não há necessariamente uma divisão visual, mas acredito que valha a divisão no nível de didática.

<><> Muitas vezes o problema começa nas instituições

Há alguns dias, em viagem, estava à mesa de almoço com uma família. A mãe, professora particular de matemática; o pai, economista, e atuou por anos como professor de uma universidade privada de excelência; e a filha, estudante de medicina.

Não lembro como começou o papo, mas falávamos sobre como algumas instituições de ensino superior não têm qualquer tipo de preocupação com a qualidade da formação. Eu até citei o fato de que a filha, pelo menos, estava num curso que há uma estrutura mínima de qualidade em qualquer que seja a instituição. A mãe me disse que não era bem assim não: citou alguns casos de universidades em que mesmo o curso de medicina é perigosamente desprovido de qualidade.

Lembrei de uma universidade privada com alcance nacional e que tem caixa o bastante para vincular publicidades no horário nobre. Num dos comerciais, com duas grandes celebridades brasileiras, a instituição se orgulhava de mensalidades absurdamente baratas. Parecia que estavam vendendo um produto na feira ou um plano para celular. Era muito claro que aquele valor não pagava os custos básicos para uma formação sólida nas áreas oferecidas.

A instituição se maquiava de uma espécie de Messias da democratização do acesso a um diploma, mas tratava-se apenas de uma maquiagem para a realidade, que era a completa não preocupação com a qualidade das formações oferecidas.

Vejo casos assim diariamente nas redes sociais: graduações, cursos técnicos, cursos online e n tipos de outras formações oferecidas por instituições que, para um olhar um pouco mais atento e treinado, fica claro que simplesmente não há um compromisso com a qualidade, com a ética ou para com a ciência.

<><> Redes sociais aumentam grupos de "especialistas" sem formação

Nas redes sociais, há um certo fetiche em acrescentar o título "especialista" no perfil e isso em todas as áreas possíveis. Está em desenfreada expansão o grupo dos "especialistas" sem formação. Estes vão além dos simples "juízes da internet", que apenas focam em comentar todas as publicações, dando opiniões sobre o que não entendem. O grupo descrito aqui na coluna vai além e vende palestras, formações e serviços, assumindo, sem qualquer pudor, a posição de detentores de formações que nunca realizaram.

Quantas vezes a influenciadora Maíra Cardi já teve falas problemáticas acerca da área de nutrição e emagrecimento? Não duvido que ela tenha um bom coração e acredito, sim, que realmente valorize a saúde, mas ela simplesmente não tem nenhum tipo de formação científica na área. Nesse contexto, todas suas falas são pautadas, muitas vezes, em achismos e em formações tão rasas quanto a que a Natália fez para aprender a técnica do peeling.

Ela, no caso, chega a vender cursos, palestras e formações sobre o tema. Não está só e integra um time que faz um grande desserviço e apresenta total desprezo pela importância da ciência e de uma formação sólida, ética e responsável.

É curioso, pois podemos acreditar que as pessoas perderam a ambição de ter uma formação. No entanto, aparentemente elas querem sim, só não querem estudar para isso.

<><> O problema é grave e requer regulação

O problema chegou a um nível que simplesmente não pode ser ignorado. O caso da falsa esteticista culminou na morte de um indivíduo, o que, de alguma forma, é o pior desfecho que uma negligência pode causar, mas há outros tipos de desfechos.

Entendo que o mundo de hoje não é mais o mesmo que o de décadas atrás. Entendo e aceito o poder da internet e sou grato pelo fato de que hoje vivemos num mundo em que temos acesso a informações sobre praticamente tudo. É encantador eu saber que posso, de forma online e gratuita, aprender sobre engenharia, direito e medicina. Mas isso não me torna um engenheiro, um advogado e muito menos um médico.

A externalização dessas falsas formações, sobretudo quando envolve lucro e contato direto com pessoas, simplesmente não pode acontecer. Não está certo alguém sem formação em nutrição vender cursos sobre emagrecimento. Não está certo alguém sem formação em engenharia ficar responsável por um projeto da área. A lista poderia continuar, mas acredito que entenderam a lógica.

Infelizmente há uma grande subestimação da ciência e de formações tradicionais. O caminho para mudar essa valorização na cabeça das pessoas será complexo, árduo e de longo prazo.

Até lá, precisará haver uma regulação, e em dois níveis: institucional e individual. No nível institucional, é preciso sofisticar a regulação das instituições de educação. O mundo mudou e entendo que seja um tanto quanto complexo, dada a grande quantidade de cursos online, mas um curso como o que a Natália fez não pode existir.

Já no nível individual, precisamos focar nos "especialistas" sem formação. Isso precisa ser proibido. É grave, negligente, antiético, imoral e, sobretudo, ainda que de formas diferentes, literalmente coloca vidas em risco.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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