“Quem é
Julian Assange?”: livro inédito detalha bastidores do maior vazamento do
WikiLeaks
Desde
2019, Julian Assange não sabe o que é liberdade, encarcerado na penitenciária
de segurança máxima de Belmarsh, em Londres, no Reino Unido. Na verdade, ele
não está livre desde 2012, pois o fundador do WikiLeaks passou sete anos dentro
da embaixada do Equador na capital britânica, evitando a polícia local por
acusações de abuso sexual que acabaram arquivadas.
Contudo,
desde 26 de junho de 2024, última quarta-feira, Assange está novamente em
liberdade, desta vez, na Austrália. Ele conseguiu chegar a um acordo com o
governo dos Estados Unidos — que o perseguia sob acusação de espionagem e
vazamento de dados governamentais, dentre outras. Por um lado, o acordo exigiu
que Assange se declarasse culpado. Por outro, a estratégia impediu que ele
fosse extraditado e condenado a mais de cem anos de prisão nos EUA. Condenado a
pouco mais de 5 anos, essa pena acabou sendo equivalente ao período que ele já
passava preso no Reino Unido.
Mas
quem é o homem que gerou a ira do governo dos Estados Unidos em tantos anos de
perseguição?
Em
trecho inédito do livro O Vazamento (editora Fósforo), Natalia Viana, fundadora
e diretora executiva da Agência Pública, traça um perfil do tecnólogo e
jornalista que revolucionou o jornalismo e deu um novo significado ao termo
vazamento de informações.
O
livro é uma autobiografia que conta um ano da trajetória de Viana e do seu
trabalho junto à organização.
Viana
e a própria Pública têm uma longa história com Assange e o Wikileaks. Em 2010,
foi ela quem insistiu com grandes jornais brasileiros para que publicassem as
revelações avassaladoras do Cablegate, série de vazamentos do Wikileaks de
documentos confidenciais do governo dos Estados Unidos.
Mais
tarde, em 2011, a recém-fundada Pública publicou reportagens a partir do
material do Cablegate. A agência também publicou reportagens em vazamentos
futuros, como o SpyFiles, que revelou como diretores das maiores empresas de
vigilância do mundo teriam visitado países campeões em violações de direitos
humanos para vender seus produtos.
Neste
capítulo inédito do livro que chega às livrarias no dia 5 de julho, Viana conta
quem é o idealista sério de cabelos alvos que ela conheceu num antigo sobrado
em Paddington.
Leia
o trecho abaixo.
• Quem é Julian Assange?
Mas
como era Julian Assange? Ah, eu ouvi essa pergunta tantas vezes… Naqueles dias,
Julian não era a figura famosa e polêmica que se tornou depois. Não havia
centenas de perfis publicados sobre ele, detalhando cada aspecto da sua
excêntrica personalidade. Era um matemático, ativista e hacker — eu uso o termo
no sentido idealista que usávamos na época, relativamente bem descrito pelo
dicionário Michaelis como um indivíduo que se dedica a entender o funcionamento
interno de dispositivos, programas e redes de informática com o fim, entre
outras coisas, de encontrar falhas em sua segurança ou conseguir um atalho
inteligente que possa vir a resultar em um novo recurso ou ferramenta.
Ou
seja: Julian era um virtuoso na linguagem que passava a definir o mundo. Disso,
eu sabia. Sabia também que era amigo de um de meus mentores, Gavin, e que sua
plataforma prometia uma enorme revolução no jornalismo mundial.
Naquela
salinha do andar de cima do sobrado em Paddington, eu tinha me impressionado
com a sua brancura, principalmente pelos cabelos alvíssimos que contrastavam
com o seu rosto jovem, rechonchudo. Julian não tinha então quarenta anos, e
seus olhos brilharam como os de um garoto fazendo alguma travessura quando ele
me apontou aquele papel. Reparei que seus gestos tinham uma solenidade não
condizente com a idade. Quase nunca ria; Julian se levava muito a sério. Sempre
atento ao próprio raciocínio, levantava a mão quando alguém lhe dirigia a
palavra para terminar um pensamento antes de voltar os olhos ao interlocutor.
Era, por isso mesmo, desatento à própria aparência, a não ser quando decidia
que isso importava, e então obcecava-se em premeditar cada detalhe. Em resumo,
percebi que ele se esforçava para deixar uma profunda primeira impressão.
Mas
se Assange era bonito ou feio, alto ou magro, tudo isso desbotava diante do
fato de ele ser irresistível: carismático até o ponto de ser impossível
ignorá-lo. Ver sua mente trabalhar era fascinante. Talvez não existisse outro
pensador da tecnologia e suas implicações sociais e políticas tão vanguardista.
Naquela época ele já nos alertava sobre o perigo do aparato de vigilância do
Google, um debate que se tornou lugar-comum uma década depois. Mais ainda, ele
é um filho do nosso tempo. Desde as nossas primeiras conversas, a impressão que
tive foi a de que estava diante de uma figura histórica.
Eu
já ouvira Gavin contar que, quando preparou a publicação dos documentos do
WikiLeaks, Julian usara um pequeno quarto na sua casa como escritório
improvisado. Espalhara pequenos laptops por todo lado, trabalhara
freneticamente, debruçado sobre eles com sua pequena equipe, dormindo apenas
algumas horas por dia. “Não se fazem mais pessoas assim”, me disse Gavin. “Ele
passa horas discutindo geopolítica, filosofia, o mundo da internet noite
adentro. Eu não via nada parecido desde os tempos áureos do partido comunista.”
Mas havia uma diferença, claro.
O
WikiLeaks foi fundado em 2006, mesmo ano do lançamento do Facebook.
Diferentemente da pretensão comercial de Mark Zuckerberg, que lançara sua rede
social como uma comunidade VIP para os alunos de Harvard e outras universidades
de elite dos Estados Unidos, o WikiLeaks era fruto de valores da cultura
ciberpunk, um dos primeiros ativistas digitais, cuja máxima pode ser resumida
assim: diante da assimetria de poder entre governos e indivíduos, é necessário
exigir privacidade para os cidadãos e transparência completa, radical, para o
Estado. Julian sempre se subscreveu a essa filosofia.
“Uma
guerra furiosa pelo futuro da sociedade está em andamento. Para a maioria, essa
guerra é invisível. De um lado, uma rede de governos e corporações que espionam
tudo o que fazemos. De outro, os cypherpunks, ativistas e geeks virtuosos que
desenvolvem códigos e influenciam políticas públicas. Foi esse movimento que
gerou o WikiLeaks”, resumiu.
Julian
sempre foi um radical. Em sua “autobiografia não autorizada” — um dos produtos
literários mais esquisitos que já li — há uma frase reveladora: “Eu sempre
soube que era diferente”, disse Assange ao escritor Andrew O’Hagan. “Eu nasci
discutindo.”
Quando
fundou o WikiLeaks, ele sabia que estava criando uma ferramenta que o levaria a
bater de frente com governos incomensuravelmente mais poderosos, e até, à sua
própria ruína. No início, a ideia era ser uma plataforma aberta à colaboração
(daí o termo Wiki, inspirado na Wikipedia, enciclopédia online que permite a
qualquer pessoa acrescentar e editar informações). Mas logo o WikiLeaks deixou
de permitir que usuários editassem suas páginas e passou a fazer uma curadoria
cuidadosa do conteúdo publicado. Nesse gesto havia sem dúvida uma visão
jornalística: não se tratava apenas de um repositório, mas de conteúdo de
interesse público.
Entretanto,
ele apenas seguia os passos de um movimento que acontecia junto com o
desenvolvimento da internet. Em 2006 já pipocavam outros sites que pretendiam
salvaguardar documentos secretos. Um deles, Cryptome, fundado dez anos antes
pelo arquiteto John Young, foi admitidamente uma das inspirações para o
WikiLeaks. A missão do site era publicar materiais que governos e corporações
queriam suprimir. Julian também se inspirou no vazamento dos Papéis do
Pentágono, um conjunto de 7 mil páginas de documentos secretos sobre a Guerra
do Vietnã que o funcionário do Departamento de Defesa Daniel Ellsberg vazou
para o New York Times em 1971. Os documentos foram fundamentais para a erosão
do apoio popular à ofensiva, que estava fadada ao fracasso. Qualquer semelhança
com as guerras do Iraque e do Afeganistão não era mera coincidência.
Além
desses, vazamentos de dados e documentos já eram uma constante no crescente
movimento de hackers que se fortalecia com o ambiente de revolta pós-2008 e com
o avanço da internet. A genialidade de Julian, porém, foi construir, com ajuda
de outros coders, uma tecnologia que permitia a qualquer pessoa vazar
documentos de maneira totalmente anônima
—
um “Dropbox” seguro. Nem mesmo Assange poderia saber quem vazou os documentos,
o que ele chamou de um “sistema complexo de negabilidade”.
Já
estávamos mergulhados no século 21. Uma montanha de documentos como os Papéis
do Pentágono caberia agora em um pen drive. Isso permitia a whistleblowers, ou
denunciantes, compartilhar os documentos com enorme facilidade — e o WikiLeaks
garantia anonimato total. Um ex-agente da CIA, falando em condição de anonimato
ao Washington Post, resumiu como experts em segurança da agência de espionagem
estavam há alguns anos preocupados com a digitalização de informações secretas
pelos serviços de inteligência. “É uma tremenda vulnerabilidade”, disse.
“Ninguém [antes] podia carregar tanto papel para fazer o que o WikiLeaks fez.”
Fonte:
Agencia Pública
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