Por que o suicídio
causa debate 'acalorado' sobre ritual do candomblé
Plantar,
cuidar, colher. Nascer, crescer, morrer. Aprender, ensinar e passar o bastão
aos mais novos. Em religiões tão baseadas nos ciclos da natureza como a umbanda
e o candomblé, como mostram seus mitos e rituais, a decisão de se romper a
trajetória de vida com um suicídio é difícil de ser assimilada.
"Como
tudo que nós fazemos é voltado para nossa ancestralidade, seja elas os orixás
ou os nossos antepassados que se tornaram ancestrais, esse é um ato que eu não
diria vergonhoso, mas é uma missão não cumprida dentro desse processo
ancestral”, explica o pesquisador André Aluize, sacerdote de candomblé (função
conhecida também como pai de santo ou babalorixá) em Monte Azul Paulista e em
cujo terreiro há também práticas da umbanda.
Talvez
o “maior problema” do suicídio para essas religiões seja justamente a
interrupção da possibilidade de se tornar mais velho, aponta Aluize, criador e
coordenador do Educaxé, um grupo de estudos na Universidade Estadual Paulista
(Unesp) sobre cultura negra e religiões de matriz africana no Brasil.
Como
vem mostrando a BBC News Brasil na série "Suicídio & Fé",
diversas religiões rejeitam historicamente o ato de se matar, prevendo punições
— em ritos funerários ou em planos espirituais — aos suicidas, o que traz dor a
famílias enlutadas.
No
candomblé, há um debate “acalorado”, nas palavras de André Aluize, neste
sentido — sobre se o axexê, um ritual de transição entre o mundo terreno e o
espiritual, deve ser realizado para pessoas que se mataram.
Na
internet, inclusive, há várias postagens em redes sociais e textos em blogs
discutindo essa questão.
• O que é o axexê e por que alguns
argumentam que suicidas não devem ter ritual
O
axexê é um rito funerário destinado a pessoas iniciadas no candomblé, ou seja,
que passaram por um processo de inserção na religião que leva anos e tem várias
etapas.
“O
axexê é um ato de desfazer os atos religiosos que foram feitos durante a vida.
Se você não desfizer esses atos, fica preso à Terra e não consegue ir para o
orum [o mundo espiritual]; e não indo para o orum, você não consegue
renascer", explica o sociólogo Reginaldo Prandi, professor emérito da
Universidade de São Paulo (USP), pesquisador e autor de diversos livros sobre o
candomblé, como Mitologia dos Orixás.
Na
prática, inclusive por ser considerado caro, o ritual costuma ser feito para as
pessoas mais importantes das comunidades, como pais e mães de santo e ogãs (um
cargo de prestígio que tem rituais e funções específicas, como tocar atabaques,
e que não incorpora entidades).
Mas
é importante destacar que, no candomblé — assim como na umbanda —, não há uma
instituição que centralize decisões e normas como em outras religiões.
As
regras também não costumam ser escritas: há uma forte tradição oral, em que as
crenças e o conhecimento são repassados de geração em geração por meio de mitos
e cantos, por exemplo.
Assim,
as práticas variam muito a depender do terreiro, da região do país e da nação
de candomblé (que corresponde à origem, na África, de certas práticas e orixás
cultuados no Brasil).
Segundo
os entrevistados pela BBC News Brasil, a nação ketu, de origem iorubá, é a
maior e a mais influente no candomblé. É dela que vem o nome “axexê”.
Outras
nações têm outros nomes para esse tipo de ritual, como sirrum para a nação jeje
e ntambi para nação angola — mas é comum que também esses segmentos usem o
termo “axexê”.
Resguardadas
as diferenças, o axexê pode levar dias e inclui cantos, danças, sacrifícios,
oferendas, comida e a destruição de objetos rituais do morto, como colares e
roupas.
Várias
decisões sobre esse ritual são tomadas a partir do jogo de búzios, um oráculo
através do qual são feitas consultas aos orixás e ancestrais.
Pergunta-se,
por exemplo, se objetos ritualísticos do morto devem ser destruídos ou
repassados para outra pessoa da família ou comunidade.
"Quanto
mais iniciado você for, quanto mais um sábio da religião você se tornar, quanto
mais responsabilidades você adquiriu ritualmente falando, mais complexo é o seu
axexê”, explica Prandi.
“Uma
mãe de santo que tem muitas responsabilidades e laços com todos os filhos de
santo do terreiro é a pessoa que tem mais laços religiosos a desfazer",
exemplifica.
Mesmo
que não seja uma situação frequente, o suicídio de alguém que teria direito a
um axexê rompe com essa programação e traz controvérsias sobre a realização ou
não do ritual.
O
babalorixá Alcemir de Odé, da casa de candomblé Ile Ase Alaketu Ode Labure
(nação ketu), em São José dos Pinhais, no Paraná, afirma categoricamente que
“quem faz o suicídio não tem direito a axexê”.
"Porque
orixá deu a vida, orixá leva a vida", argumenta. "Eu concordo porque
são meus ancestrais que assim fizeram, assim tem seguido de gerações em
gerações."
“Quando
a pessoa tira a própria vida, ela já decidiu seu destino”, diz o babalorixá.
Ele
afirma ter conhecimento de dois casos em sua região de pessoas que se
suicidaram e que, de outra forma, teriam tido um axexê: um ogã, há cerca de um
mês, e de um pai de santo, há cerca de oito anos.
Ele
esclarece que, nesses e em outros casos de suicídio, rituais mínimos são
feitos.
“A
gente também não pode deixar a pessoa de qualquer jeito... A gente vai preparar
o corpo, preparar o túmulo e acabou. A gente dá o que ela mereceu naquele
momento que terminou a sua própria vida”, diz Odé.
O
babalorixá Égbé Leandro, da Casa de Oxumarê, em Salvador, na Bahia, também
afirma que não se faz axexê para pessoas que se suicidam. Segundo ele, a casa
tem influência principalmente das nações ketu e jeje.
“O
axexê é uma celebração da passagem da pessoa ao orum. É uma festa. Então, eu
não tenho como fazer axexê para a pessoa [que se matou] porque não se tem como
comemorar uma pessoa que tirou a própria vida. Mas o rito fúnebre, as liturgias
são iguais para todos”, diz Égbé Leandro.
“É
feito o enterro dentro dos moldes da nossa religião. A liturgia acontece. Ela
tem que acontecer, porque ela é imprescindível. Na nossa filosofia, é
necessário desligar o espírito do indivíduo” de instrumentos ritualísticos
pertencentes a ele, explica.
O
sacerdote André Aluize prefere não firmar uma orientação e diz que, caso uma
notícia de suicídio em sua comunidade chegasse até ele, seguiria o que fosse
determinado pelo jogo de búzios.
“Cada
um acaba por fazer à sua maneira. É bem complexo, por conta disso existe um
tabu muito grande", aponta o pesquisador e sacerdote, cujo terreiro também
integra a nação ketu.
Ele
conta ter ficado sabendo de um caso, por volta de 2019, em que foi preciso
fazer uma espécie de concílio entre sacerdotes de candomblé para se decidir
sobre o axexê de uma pessoa que se matou — e cuja identidade e detalhes ele
prefere não compartilhar.
“Foi
preciso envolver líderes de outras casas, de outras comunidades, para se
discutir o oráculo", relata, afirmando que os sacerdotes jogaram búzios
individualmente para depois se chegar a uma decisão coletiva.
"Como
em um concílio religioso, chegou-se a uma jogada definitiva. Foi autorizado o
procedimento da ritualística do axexê com ressalvas”, diz.
Por
exemplo, pessoas importantes para a comunidade podem ser reverenciadas nos
chamados assentamentos, locais no terreiro que reúnem inúmeros objetos
sacralizados que pertenciam à pessoa e ficam na comunidade em sua memória. No
caso relatado por André, a pessoa não pôde ser honrada com um assentamento.
Entretanto,
o sociólogo Reginaldo Prandi diz que, nos itãs (mitos iorubás), não há “uma
linha” que fale do suicídio.
Por
isso, para ele, a rejeição ao suicídio nas religiões afrobrasileiras são
resultado da influência do espiritismo e do catolicismo.
“A
proibição não vem da origem africana”, afirma.
Na
primeira reportagem da série “Suicídio & Fé”, a BBC News Brasil mostrou
que, por séculos, o catolicismo proibiu a realização de ritos fúnebres para
suicidas, como a missa de sétimo dia. A proibição foi derrubada na década de
1980.
Assim
como nas igrejas evangélicas, também de origem cristã, o suicídio foi
historicamente encarado no catolicismo como um pecado, por conta da
interpretação do mandamento “Não matarás”.
Já
no espiritismo, que também cresceu no Brasil sobre uma base cristã, o suicídio
é visto como algo que trará consequências — frequentemente penalidades, segundo
alguns livros espíritas famosos — no mundo espiritual e em futuras
reencarnações.
As
religiões afrobrasileiras não têm tantos adeptos no Brasil como as religiões
citadas, mas a BBC News Brasil decidiu incluí-las na série de reportagens por
sua importância cultural.
De
acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o
candomblé tem 167.363 adeptos no país (0,08% da população) e a umbanda, 407.331
(0,2%).
O
candomblé e a umbanda têm várias semelhanças, mas também diferenças — o
pesquisador André Aluize explica uma delas.
"O
candomblé lida com deidades africanas e a umbanda lida com espíritos
desencarnados. A principal divergência entre as duas seria essa: uma
[candomblé] é voltada a todo um conhecimento ancestral ligado a pessoas que já
existiram, a reis e rainhas, aos nossos ancestrais e antepassados, e a umbanda
lidaria com os espíritos de uma forma geral", esclarece Aluize.
Assim,
o candomblé tende a se manter mais próximo das práticas africanas, enquanto a
umbanda, que inclusive se estruturou mais recentemente, tem mais presente a
influência de crenças indígenas, do catolicismo e do espiritismo.
Entretanto,
algumas linhas de umbanda se mantiveram mais próximas do candomblé e da matriz
africana ou estão se esforçando para resgatar essa origem.
• E como o suicídio é visto na umbanda?
Com
mais adeptos que o candomblé e com uma variedade maior de vertentes, não há
notícias de que a umbanda deixe de fazer rituais para pessoas que se matam,
segundo entrevistados pela BBC News Brasil.
Mas
ainda assim, esse ato é considerado “grave”, diz a mãe Flávia Pinto, matriarca
da Casa do Perdão, um terreiro de umbanda em Seropédica, no Rio de Janeiro.
“Houve
uma força divina que consagrou a vida. Portanto, não é você que tem o direito
de ceifá-la”, diz a ialorixá, também socióloga e autora de vários livros, como
Umbanda Religião Brasileira: Guia para leigos e iniciantes.
“Se
algo não está indo bem a ponto de você se suicidar, é porque você não está
conduzindo bem a sua vida. Então, você deve buscar ajuda.”
Ela
conta que, frequentemente, recomenda ajuda psicológica e psiquiátrica às
pessoas, embora acredite que nem sempre essa assistência “dá conta” sem um
“reforço energético”.
Pinto
conta que “inúmeras vezes” já sentiu a presença de espíritos de suicidas em
consultas com entidades ou no jogo de búzios.
“Quando
você tira o sopro divino por conta própria, você é um espírito condenado a
vagar. Porque nós somos reencarnacionistas — tanto pela visão umbandista,
quanto indígena e iorubá”, diz, destacando as raízes da umbanda.
"A
gente consegue quase sempre detectar se tem um espírito ali perto, tamanho o
peso que ele traz. Ele começa a ser um obsessor, um espírito vampirizador, um
kiumba [termo da umbanda para um espírito sem luz, ruim] a perturbar aquela
pessoa ou a família.”
Ela
diz que há também relatos de que o espírito de um suicida acompanha a
decomposição do próprio corpo.
Essa
crença vai ao encontro de livros espíritas que colocam o suicídio como uma
transgressão à lei divina e mencionam vários tipos de punição para os espíritos
de pessoas que se mataram, como mostrou a BBC News Brasil em outra reportagem
da série “Suicídio & Fé”.
Em
O Céu e o Inferno, um dos livros organizados pelo fundador da religião, o
francês Allan Kardec (1804-1869), um trecho diz ser comum que espíritos de
suicidas sintam vermes corroendo o corpo, embora as consequências do ato variem
de "duração e intensidade conforme as circunstâncias atenuantes ou
agravantes da falta".
Em
Memórias de um suicida, popular livro da médium Yvonne do Amaral Pereira
(1900-1984), é detalhada a existência de um “Vale dos Suicidas”, um lugar de
extremo sofrimento para os espíritos de quem se matou.
O
livro traz também histórias de espíritos de suicidas que tiveram que observar,
a partir do plano espiritual, o próprio corpo em decomposição, ou testemunhar
parentes em sofrimento por conta da morte.
Segundo
o sociólogo Reginaldo Prandi, a ideia de reencarnação na umbanda tem influência
do espiritismo, enquanto no candomblé manteve-se mais próximo às origens
africanas.
"A
ideia do renascimento no candomblé é uma ideia não de que o indivíduo está
nascendo [de novo], mas que a sociedade está se refazendo, se reproduzindo. A
ideia do renascimento é mais coletivizada", explica o professor emérito da
USP.
André
Aluize, do grupo de estudos Educaxé, também destaca a influência do espiritismo
na visão da umbanda sobre a reencarnação, como a ideia de que alguém reencarna
em várias etapas ou vidas.
Há
também a influência do catolicismo na ideia de castigo a um espírito que tenha
se comportado mal em uma vida passada, diz o pesquisador e candomblecista.
No
caso do suicídio, ele diz que a influência do espiritismo pode se manifestar
com a crença umbandista em dois cenários diferentes.
"Uma
delas seria que esse espírito vai para umbral, que é uma crença kardecista, e
vai passar por um tempo lá até a remissão. Outra, é de que esse espírito vai se
tornar um egum", aponta Aluize.
"É
um espírito zombeteiro, sem orientação, um espírito que estaria entre nós sem a
possibilidade de uma evolução — que é proposta dentro de uma visão
kardecista."
Já
a mãe Flávia Pinto defende que as origens da visão da umbanda sobre o suicídio
são muito anteriores ao espiritismo, que ela destaca ter nascido no século 19
na França.
"A
umbanda tem muito do kardecismo, mas ela tem uma origem africana e indígena”,
argumenta, apontando que essas tradições são milenares.
• Aumento de suicídios impõe debate
para as religiões
O
babalorixá Égbé Leandro afirma, no dia a dia, ser “perceptível” uma maior
demanda por questões relativas à saúde mental.
"A
doença do momento é a doença emocional. Quando eu vou jogar búzios, orientar as
pessoas, muitas das vezes o problema está no emocional. E infelizmente as
pessoas não têm a consciência da importância da saúde emocional”, diz,
apontando que as pessoas têm “vergonha” de procurar ajuda de especialistas.
O
babalorixá Alcemir de Odé também destaca a importância da orientação
profissional.
“Nossa
cabeça, nós chamamos de ori. A nossa ori nos faz muito forte, mas nossa ori faz
de nós um fracassado também. Existem algumas cabeças que precisam de ajuda, com
psicólogo, psiquiatra...”, afirma.
De
acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a ligação entre suicídio e
distúrbios mentais — com destaque para a depressão e o alcoolismo — já foi
comprovada, embora crises pontuais, como términos de relacionamentos e
problemas financeiros, também possam levar a esse ato.
Taxas
de suicídio tendem a ser maiores também em cenários de abuso, violência,
desastres e vulnerabilidade social — como entre refugiados e migrantes,
priosioneiros e pessoas LGBTQIA+.
No
Brasil, um estudo publicado na revista científica The Lancet Regional Health
Americas mostrou que a taxa anual de suicídios cresceu em média 3,7% ao ano de
2011 a 2022.
O
número total de suicídios também cresceu continuamente de 2016 a 2022, segundo
o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A
psicóloga Karen Scavacini, fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e
Posvenção do Suicídio, diz que, além dos dados, percebe claramente no dia a dia
um aumento nas tentativas e mortes por suicídio, “especialmente no período
pós-pandêmico”.
E
as religiões podem ter um papel importante nesse contexto, para bem ou para
mal, ela diz.
“Tem
muita pesquisa mostrando como ela [a espiritualidade] é um fator de proteção,
um fator forte de proteção. Acho que, quando a gente põe na balança, a
espiritualidade tem um fator mais de proteção do que de risco”, afirma
Scavacini, apontando que as religiões trazem benefícios como a vida comunitária
e o reforço da esperança.
“Porém,
e esse é o grande porém, quando ela se torna um fator de risco, também se torna
um fator de risco forte", coloca a psicóloga.
Por
exemplo, para pessoas que estão pensando em suicídio.
“Vai
entrar as questões de pecado, de culpabilização, de falta de reza, de estar
possuído... Isso vai ser um fator de risco: pode ser um gatilho, pode ocasionar
uma expulsão, um isolamento dessa pessoa da comunidade religiosa",
exemplifica.
“E
para quem está há pouco tempo de luto [por ter perdido alguém que se matou],
que está buscando respostas, uma fala de culpabilização ligada à religião tem
um peso muito grande. É uma família que está tentando entender o que aconteceu,
que está se culpando. E se ela pensa também que aquele que faleceu ainda está
no lugar pior, isso é cruel”, conclui a psicóloga.
O
sacerdote e pesquisador André Aluize diz que, justamente pela maior preocupação
social com questões de saúde mental, as religiões precisam rediscutir suas
tradições — como a orientação de não se fazer axexê para quem se mata, algo
sobre o qual ele se mostra aberto a discutir mudanças.
“Por
isso a dificuldade de os sacerdotes falarem sobre essas questões de morte,
falarem sobre as questões de gênero, porque é como se de uma certa forma você
virasse aos mais velhos e dissesse: eu vou fazer desta forma [diferente]. Como
se você estivesse descumprindo algo”, diz o pesquisador.
“Não
é de forma alguma apologia ao ato em si [suicídio], mas nós não podemos
condenar, e nem cabe a nós condenar as pessoas e desconsiderar tudo que elas
representaram enquanto estiveram conosco enquanto comunidade. Seria para nós
algo muito triste que essa memória se perdesse, que essa contribuição se
perdesse.”
Fonte:
BBC News Brasil
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