Sincretismo
brasileiro: especialistas destacam influências do Islã nas religiões de matriz
africana
O
Brasil, devido ao seu passado colonial, escravagista e com diferentes ondas
migratórias, ganhou uma rica diversidade cultural e criações próprias. É o caso
das chamadas religiões de matriz africana, que guardam muitas semelhanças com o
cristianismo. Mas o que poucos sabem é que elas também receberam influências do
islamismo.
As
similaridades desconhecidas e o modo como o Islã influenciou as religiões de
matriz africana brasileiras foram temas do episódio desta sexta-feira (28) do
Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e
Marcelo Castilho.
• Qual a semelhança do Islã com a
umbanda e o candomblé?
Tido
como menos sincrético que a umbanda, o candomblé é uma religião
"orgulhosamente brasileira", diz Márcio de Jagun, advogado, escritor,
babalorixá e professor de cultura iorubá na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ).
"Lá
no continente africano nós temos várias matrizes, vários nascedouros de
tradições, de grupos étnicos diferentes, que no contexto brasileiro, na nossa
'salada', nas várias formas de resistência […] produziram o que seria mais
correto chamar de candomblés, assim como umbandas."
Ele
afirma que "denominar no singular o candomblé seria pouco para dimensionar
a quantidade de matrizes, de fontes […] trazidas para cá e [que] se
constituíram aqui".
Segundo
Jagun, entre essas influências que constituíram os candomblés e as umbandas
brasileiras, muitas vezes é apontada a mistura que ocorreu com ritos católicos
e indígenas.
Porém,
aponta o babalorixá, "o período de escravização humana no Brasil foi muito
longo, cerca de 400 anos", e dentro desses séculos, quatro ciclos
ocorreram.
"Nos
dois primeiros vieram, em maior quantidade, pessoas escravizadas das etnias
bantos. No terceiro, no quarto e no chamado ciclo da ilegalidade, vieram mais
aqueles de origem étnica nagô e iorubá, de etnia fom, como nós costumamos
chamar os fons de jeje", explica.
De
acordo com Jagun, havia muçulmanos entre todos esses grupos que foram trazidos
para o Brasil.
"Então
a presença do Islã, seja no contexto das religiões africanas produzidas no
Brasil, assim como no período anterior, que a gente chama de pré-diaspórico, é
muito intensa", acrescenta.
Jagun
sublinha que muito se discute o sincretismo afro-católico como se esse
"fosse o único nível, o único nicho de interseção entre essas matrizes
religiosas, culturais e filosóficas".
"Mas
a relação do sincretismo afro-islâmico, afro-indígena, intra-africano, podem
ter certeza, é uma relação muito mais intensa", afirma o babalorixá.
Rafael
Maron, graduado em história e mestre em antropologia pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA), aponta que no livro "Rebelião escrava no Brasil", do
professor João José Reis, há o detalhamento de um caso de uma guerra no antigo
principado de Oió, no sudoeste da África, na qual os muçulmanos foram
derrotados e vendidos como escravos para trabalharem no Brasil.
"Desde
o século XVI se fala […] até em muçulmanos que chegam aqui também na própria
frota de Cabral."
Quanto
às influências pré-diaspóricas, Maron explica que "o Islã admite a
possibilidade de aquisição cultural dos locais onde ele está, desde que essas
práticas não contradigam sua mensagem principal, não contradigam seus
princípios".
Jagun
menciona como exemplo dessa aquisição cultural o episódio de Oió, citando uma
história de Xangô, divindade iorubá, deus do fogo, da justiça e cultuado nos
terreiros de umbanda e candomblé.
"Em
determinada ocasião [Xangô] expandiu os seus domínios na cidade de Oió, que
fica na região sudoeste da África, precisamente na atual Nigéria […] até o
Mali, onde a população era, na época, majoritariamente islâmica", reconta
o professor da UERJ.
"Xangô
assentiu a um pedido, demonstrando politicamente respeito ao islamismo: ele
adotou para si e para todos os seus descendentes um interdito típico do
islamismo, que é não consumir carne de porco. E é curioso, porque até hoje nos
terreiros de candomblé do Brasil, e depois, nessa nova diáspora, mundo afora,
quem é filho de Xangô […] não come carne de porco."
João
Luiz Carneiro, escritor e doutor em ciências da religião pela Pontífica
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), traz ainda mais semelhanças entre
as duas religiões, como o uso de amuletos sagrados no pescoço, como os talismãs
do Islã, e os lequés, "que são cordões ritualísticos utilizados pelos
praticantes de candomblé e de umbanda".
"Dependendo
de características do terreiro, da sua filiação espiritual no candomblé, existe
uma certa abstinência de certos tipos de alimentos. O uso de banhos de ervas,
da purificação, também é comum em ambas as tradições."
Um
dos exemplos mais significativos é o uso do mesmo instrumento musical: o
atabaque, ou al-tabak, como é chamado pelos árabes, segundo aponta Carneiro.
"Existem
muitas saudações, rezas, utilizadas tanto no candomblé quanto na umbanda, que
possuem raízes e expressões que também transitam pelo Islã. Eu gosto de
utilizar o exemplo do atabaque, que vem de al-tabak."
Jagun
acrescenta que outra semelhança entre o candomblé e o islamismo pode ser
observada em celebrações nas quais as mulheres fazem um sibilar de língua que
produz um som muito similar à salguta, o som que as muçulmanas produzem com a
boca em celebrações, sobretudo que envolvem dança.
"Igualzinho.
Você vê que essas relações, o uso do branco na sexta-feira, o jejum de Oxalá às
sextas-feiras, a origem referencial de paz, o Exu da umbanda que atende a
Xangô, Xangô-Orixá, que respeitam o islamismo, tudo isso forma um caldo muito
interessante de um sincretismo afro-islâmico que nós precisamos conhecer
melhor", afirma.
Fonte:
Sputnik Brasil
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