Paulo
Kliass: Os gols contra do governo na economia
O
alto comando do financismo internacional costuma se utilizar de seus
representantes no interior dos grandes meios de comunicação e em postos
estratégicos nos governos para criar falsos consensos a respeito de medidas a
serem adotadas em termos de políticas púbicas. Esse movimento ganhou uma
dimensão bastante relevante em meados da década de 1980, quando começa a
gestação do amplo programa de reestruturação econômica dos países do então
chamado Terceiro Mundo, que ficou conhecido como Consenso de Washington. Ali
tem início a formatação das medidas que viriam posteriormente a se constituir
no receituário neoliberal, com foco na privatização geral e irrestrita, na
liberalização mais ampla possível e em um pacote de proposições assegurando a
austeridade fiscal a todo o custo.
A
vitória de Margareth Thatcher no Reino Unido (1979) e de Ronald Reagan nos
Estados Unidos (1981) abriram o caminho para que esse liberalismo extremista se
transformasse em política econômica no comando de tais países. Além disso, o
programa de Estado mínimo começa a se espalhar por outras nações pelo mundo
afora, além de conquistar corações e mentes da alta tecnocracia e consolidar
espaço nas próprias universidades e instituições de pesquisa econômica. O
aprofundamento da crise dos países socialistas e a queda simbólica do Muro de
Berlim em 1989 reforçaram a ideia de que o caminho daquela forma particular de
capitalismo seria um atalho sem volta para todo o globo. Tanto que a primeira
ministra britânica adotou para si e divulgou para o mundo o acrônimo TINA, que
vem do inglês “There is no alternative”. Ou seja, a única possibilidade para a
Humanidade seria a adoção do receituário neoliberal em sua integralidade. O
historiador norte-americano Francis Fukuyama chegou até mesmo a vaticinar o fim
da História.
O
enraizamento dos pressupostos do neoliberalismo em nossas terras foi amplo e
profundo. Durante décadas não havia espaço para que vozes e visões alternativas
ao pensamento do “mainstream” fossem divulgadas. Deu-se um processo de
esmagamento político e ideológico contra quaisquer tipos de modelos que
propusessem algum grau de presença do Estado na economia ou que ousassem
questionar os fundamentos da austeridade fiscal como pré-condição para a busca
de soluções para as economias em busca de crescimento. No entanto, a emergência
da crise econômica e financeira de 2008 e 2009 colocou o modelo hegemônico em
crise. Não fosse uma reviravolta na lógica liberaloide, as economias dos
chamados países desenvolvidos teriam entrado em colapso ainda mais grave do que
o ocorrido de fato. A demonização do Estado foi flexibilizada para salvar o
sistema de uma bancarrota generalizada e a austeridade fiscal foi relativizada
para que os recursos públicos “surgissem” e contribuíssem para minorar os
estragos sociais, econômicos e políticos provocados pela crise.
• Neoliberalismo segue a todo o vapor
Porém,
o fato de o resto do mundo ter atenuado a rigidez dos princípios do
austericídio não significou que no Brasil as elites vinculadas os interesses do
sistema financeiro adotassem comportamento semelhante. A lógica do TINA
permaneceu intacta. Os sucessivos governos continuaram com a prática perversa
da “responsabilidade fiscal” cega e burra, sempre se vangloriando da obtenção
de superávit primário nas contas públicas. Procedimento este sempre muito
aplaudido pelas classes dominantes, desde que os custos de tal arrocho
permanecessem apenas pesando sobre o lombo da grande maioria da população.
E
esse percurso na condução da política econômica seguiu seu rumo, de forma
persistente, ao longo dos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), Lula,
Dilma, Temer, Bolsonaro e agora Lula 3.0. Ou seja, nem mesmo as crises de
2008/9 ou a mais recente da covid foram capazes de desmontar o arcabouço
teórico equivocado dos ideólogos do neoliberalismo local. Tanto é que a
conturbada transição Bolsonaro/Lula no final de 2022 foi marcada pela firme
disposição do futuro ministro da Fazenda em honrar o compromisso com o
financismo e com a austeridade. Assim, os passos seguintes foram a aprovação do
Novo Arcabouço Fiscal (NAF) em substituição ao dispositivo constitucional do
teto de gastos e o anúncio de metas de arrocho na política fiscal, com a busca
idílica da parte de Fernando Haddad pelo sacrossanto superávit primário.
O
fato é que os jornalões e as grandes redes de comunicação não desistiram de
fazer da chamada “questão fiscal” um de seus principais cavalos de batalha.
Assim, na visão desse povo que habita o topo da nossa vergonhosa pirâmide da
desigualdade, tudo se explicaria a partir de um suposto descontrole das contas
públicas. Senão vejamos o canto uníssimo apresentado pelas elites das finanças.
<><>
“Questão fiscal” é a nova obsessão
i)
a economia cresce a um ritmo lento e insuficiente? A culpa é da incapacidade do
governo em equilibrar suas contas. O PIB vai voltar a subir a níveis
compatíveis com as necessidades do país depois que o governo resolver a questão
fiscal.
ii)
a cotação do dólar norte-americano sobe a níveis recordes? A responsabilidade é
do déficit primário. O câmbio voltará a patamares adequados depois que o
governo resolver a questão fiscal.
iii)
a inflação ameaça retornar a níveis um pouco mais elevados? Ora, tudo isso
estaria mais sereno se o governo obtivesse superávit nas suas contas. O
crescimento dos preços deixará de ser um problema depois que o governo resolver
a questão fiscal.
iv)
a taxa Selic segue em níveis estratosféricos e a taxa real de juros por aqui
segue sendo uma das mais elevadas do mundo? Se o governo tivesse feito seu
“dever de casa”, o custo financeiro do conjunto da economia brasileira estaria
em níveis bem mais confortáveis. A taxa de juros voltará a níveis razoáveis
depois que o governo resolver a questão fiscal.
O
mais impressionante é que essa retórica mentirosa ganha adeptos inclusive
dentre representantes de outros setores do grande capital não financeiro. E
esse mantra da necessidade de se cortar despesas a todo o custo obtém ares de
unanimidade. Porém, como a metodologia disseminada e aceita envolve apenas a
dimensão “primária” das contas públicas, os gastos financeiros ficam de fora de
qualquer controle, teto ou limite. Assim, o impressionante volume de pagamento
de juros da dívida pública não é considerado como uma “gastança” pelos escribas
defensores da austeridade fiscal radical.
No
momento atual vivemos aqui no Brasil mais uma onda avassaladora por mais
equilíbrio e superávit nas contas governamentais. A alta tecnocracia
ministerial e os chefes das pastas da área econômica se juntam aos
representantes do setor financeiro para exigirem, todos eles juntos, maior
rigor no corte de gastos e maior empenho no arrocho das despesas não
financeiras. Tendo em vista a natureza regressiva e recessiva do NAF, seria de
se esperar que a novela do corte de gastos retomasse sua virulência contra as
rubricas da área social. Afinal, nenhum dos inúmeros “especialistas” convocados
a emitir suas opiniões em prol da austeridade e responsabilidade fiscais sequer
mencionou a verdadeira gastança dos R$ 776 bilhões pagos a títulos de juro da
dívida pública ao longo dos últimos 12 meses.
• Lula, abra o olho!
Sempre
que são chamados a oferecer sugestões para solucionar o “problema” fiscal, eles
apontam o dedo para a desvinculação dos benefícios previdenciários em relação
ao salário mínimo e para retirada dos pisos constitucionais para saúde e
educação. Além disso, os salários dos servidores públicos também são apontados
como um dos principais fatores responsáveis por uma suposta explosão dos gastos
públicos.
Para
dar conta da tarefa de “equilibrar” as contas públicas começam a ressurgir das
catacumbas as soluções miraculosas de sempre. Alguns órgãos da grande imprensa
se propõem, inclusive, a ajudar governo no mapeamento daqueles que seriam os
principais gargalos e oferecem as surradas fórmulas para reduzir os dispêndios
governamentais. Como sempre, as despesas sociais estão dentre as sugestões mais
relevantes para que os cortes orçamentários sejam mais efetivos aos olhos do
sistema financeiro.
Enfim,
a austeridade fiscal ganhou ares da nova panaceia para resolver todos os
problemas do país. No sentido oposto ao que vem ocorrendo na grande maioria dos
países no mundo, as elites do financismo local insistem na tecla abandonada de
redução do Estado na economia e de zerar o déficit primário. A palavra de ordem
se resume em “cortar e arrochar!”. Pouco importa que isso não ofereça
alternativas para que Lula cumpra seu programa de governo. Pouco importa que a
grande maioria da população tampouco se beneficie de tal investida neoliberal
fora de seu tempo. O fundamental é que ninguém aponte o dedo para o verdadeiro
rombo das contas fiscais: o volume estrondoso de despesas com juros da dívida
pública.
Lula
não pode mais assistir da arquibancada o jogo de seus ministros fazendo gols
contra a maioria do povo. O presidente da República precisa assumir o comando
da política econômica para redirecioná-la rumo ao desenvolvimento econômico e
social.
• Patrão mandou, o que fará o governo?
O
“ajuste fiscal” está na ordem do dia, pela pressão dos “patrões” do governo – a
oligarquia financeira – e sob as trombetas dos monopólios de imprensa. Não é
sem razão que, em maio, o editorial d’O Globo estampava, em letras garrafais:
“Ajuste fiscal é imperativo para o País”. Resta ao governo cumprir a ordem,
lacaio que é – afinal, foi este o acordo feito por Luiz Inácio e sua “Frente
Brasil Popular” com o “diabo”: receber seu apoio, vencer Bolsonaro e governar,
com as políticas do mal chamado “neoliberalismo”, que figuravam no programa
fiscal de Bolsonaro e Paulo Guedes.
Que
a pressão cresça pelo “ajuste fiscal” agora, também não é sem razão. O objetivo
é duplo: primeiro, de fato, garantir o saqueio desapiedado dos cofres da Nação,
ademais do lucro máximo esfolando nosso povo; segundo, extorquir do governo de
turno até a última porção, pois, sabendo que este é dócil diante das ordens do
capital financeiro, se aprofunda de quebra a desmoralização ante o eleitorado,
abrindo alas para que uma candidatura “puro sangue” da grande burguesia e do
latifúndio cresça para 2026.
Que
ninguém pense que o presidente da república ficou calado: “São os ricos que se
apoderam de uma parte do orçamento do País e se queixam daquilo que você está
gastando com o povo pobre… São as mesmas pessoas que têm R$ 546 bilhões de
isenção, desoneração da folha de pagamento, isenção fiscal”, ponderou o
presidente. Que belo discurso – mas contrastante com a prática do governo, que
num odioso show de hipocrisia, mandou os docentes das universidades federais
pastarem, culpando-os pela greve, e ainda disse que não tinha medo dos
grevistas. Como se vê, foi educado e cortês nas suas cavalheirescas críticas
aos seus “patrões”, e furibundo em sua condenação à findada greve.
De
fato, embora diga que não fará “ajuste fiscal” em cima dos gastos sociais, é
exatamente isso o que o governo tem feito.
Talvez
por isso Luiz Inácio continue a citar Bolsonaro em seus discursos – segundo
consta, contrariando as orientações de sua equipe de marqueteiros. Afinal, a
única forma de se apresentar como antítese do capitão do mato é mesmo
retorcendo as palavras, contrastando extremos em comparativos seletivos, para
tentar esconder o fato de que, na economia e na política, segue igual: economia
centrada no latifúndio monocultor agroexportador de produção primária, governo
sustentado numa aliança com o “centrão” bolsonarista, com destruição gradual da
Educação e Saúde públicas e retrocessos inauditos nas liberdades democráticas,
como mais recentemente veio à tona com a “PL do Estuprador”, ignomínia que
ameaça condenar uma mulher estuprada que tenha abortado a mais anos de prisão
do que seu próprio violador.
Os
amantes das liberdades democráticas, os progressistas, não devem ter nenhuma
dúvida de que apenas ocupando as ruas e marchando por seus direitos, contra a
liquidação gradual das liberdades democráticas, se poderá defendê-las e, com o
povo organizado, por abaixo a velha ordem reacionária “democrática” dos
exploradores e opressores. Todo compromisso com esta e seus governos de turno,
encubadores do fascismo e da extrema-direita, resulta em derrotas e ao retorno
dos governos “puro sangues” da reação.
Fonte:
Outras Palavras/A Nova Democracia
Nenhum comentário:
Postar um comentário