Como o
Morena transformou a política anticorrupção em política de classe, no México
As
eleições presidenciais que ocorreram no México no dia 2 de junho deram uma vitória decisiva ao
partido governante Morena e à sua candidata, Claudia Sheinbaum. O partido
fundado por Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, em 2014, conquistou 60% dos
votos em uma corrida com três candidatos, além de uma maioria de dois terços no
legislativo. Sheinbaum está prestes a assumir o cargo com um mandato
incontestável. Ela fez campanha prometendo continuar as políticas implementadas
por AMLO durante seu mandato como presidente, que testemunhou avanços
mensuráveis para as classes trabalhadoras.
Os
números oficiais mostram que os salários reais aumentaram aproximadamente 30%,
a participação dos trabalhadores na renda aumentou 8%, e os rendimentos dos 10%
mais pobres cresceram 98,8%. Além disso, o coeficiente de Gini, medida de
desigualdade, registrou uma queda, e a pobreza geral diminuiu em 5%,
representando a maior redução em 22 anos para mais de cinco milhões de pessoas.
As taxas de desemprego estão agora entre as mais baixas da região, acompanhadas
de uma leve diminuição do trabalho informal.
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Política de Esquerda
Anticorrupção
Não
surpreendentemente, AMLO manteve índices de aprovação extraordinariamente
altos, com média na casa dos sessenta por cento (embora uma pesquisa recente da
Gallup coloque seu apoio em 80%). Certamente, esquerdistas e progressistas de
diferentes linhas criticaram a natureza e o alcance das reformas que ele
implementou durante seu governo. Durante seu mandato, críticos afirmam que AMLO
não rompeu completamente com o neoliberalismo, não atendeu às demandas de
feministas ou ambientalistas, e fortaleceu a chamada militarização dos assuntos
públicos — muitos grandes projetos de infraestrutura no México continuam sendo
construídos e gerenciados pelo exército. Essas críticas não são sem fundamento
na realidade.
O
que é incontestável, no entanto, é o progresso que o Morena alcançou em favor
da classe trabalhadora, confirmado nas urnas no início de junho. Isso despertou
um renovado interesse no mundo anglófono, que por décadas se perguntou como
revitalizar uma esquerda centrada nas classes populares. Se houve um traço
distintivo no estilo político de AMLO, foi sua habilidade em tratar o
neoliberalismo como sinônimo de corrupção. Historicamente, a política
anticorrupção tem sido o pilar da direita neoliberal que procura privatizar as
indústrias estatais dominadas pela corrupção. Pelo menos na América Latina, as
classes média e alta têm sido o eleitorado mais fiável para este tipo de
política. Mas AMLO soube adaptar a política anticorrupção para atrair as massas
sem abraçar um antiestatismo neoliberal ou uma antipolítica tecnocrática que
procura dar poder a funcionários não eleitos.
“A
privatização no México tem sido sinônimo de corrupção”, disse AMLO em seu
discurso de posse em dezembro de 2018. Ele acrescentou que
infelizmente,
essa doença quase sempre existiu em nosso país, mas o que aconteceu durante o
período neoliberal é sem precedentes nos tempos modernos — o sistema como um
todo operou em prol da corrupção. O poder político e o poder econômico se
alimentaram e nutriram mutuamente, e o roubo dos bens do povo e da riqueza da
nação se estabeleceu como o modus operandi.
As
características definidoras do estado neoliberal mexicano incluem um aumento na
terceirização de serviços para empresas privadas, subsídios para um setor
privado incentivado a competir com empresas estatais (a eletricidade é um dos
exemplos mais marcantes), mecanismos para ceder o controle de recursos públicos
através de fideicomissos (trusts) administrados privadamente, e formas
sancionadas e não sancionadas de evasão fiscal. No cerne do diagnóstico de AMLO
sobre o mal-estar do seu país reside uma redefinição fundamental do
neoliberalismo: ao contrário da crença comum, o neoliberalismo não se tratava
da contração do estado. Para AMLO, o neoliberalismo representava a
instrumentalização do estado para servir aos ricos.
Austeridade
republicana
A
reinterpretação de AMLO sobre o neoliberalismo trouxe uma sofisticação às
discussões sobre a economia que permanece alheia a grande parte do mundo
anglófono. Graças ao Morena, o debate no México não é, como nos Estados Unidos,
sobre governo pequeno versus governo grande — o México operou sob um “grande
governo” durante o neoliberalismo, mas ele servia consistentemente à classe
alta por meios legais e ilegais. O reconhecimento deste fato forneceu a base
para uma política de classe anticorrupção.
Essa
compreensão ajuda a explicar o conceito emblemático do governo de AMLO, que
talvez seja contraintuitivo: “austeridade republicana”. A austeridade
republicana refere-se a uma reorganização e centralização contínuas dos gastos
públicos, com o objetivo de “cortar de cima”. O neoliberalismo no México,
conforme entendido pelo Morena, não significava a contração geral do estado,
mas sua descentralização e instrumentalização — a austeridade (de um tipo
específico) poderia, portanto, ser contra intuitivamente uma ferramenta para
combater o neoliberalismo.
Aqui,
a conexão com o diagnóstico mais amplo de AMLO sobre corrupção é fundamental: a
austeridade republicana busca combater o neoliberalismo/corrupção através da
eliminação de intermediários de todos os tipos entre o estado e a cidadania na
distribuição de recursos públicos. A visão do governo de AMLO é que essas redes
intermediárias — partes do setor privado, intermediários clientelistas, ONGs
que recebem fundos governamentais, fideicomissos ou simplesmente empresas
privadas contratadas pelo estado para realizar serviços específicos — facilitam
a captura orçamentária. Assim, central para a política do Morena tem sido o
impulso para centralizar funções governamentais que haviam sido terceirizadas
para entidades privadas ou semi privadas.
Em
uma coletiva de imprensa em maio de 2021, AMLO vinculou seu projeto político a
uma visão distinta da história mexicana:
No
nosso país, a acumulação de capital não ocorreu necessariamente através da
exploração do burguês ou do empregador sobre o trabalhador; a acumulação de
capital no México ocorreu através da corrupção. Isso não é novo; aumentou na
última fase, no período neoliberal… não é para marginalizar o marxismo, não é
[que discussões] sobre luta de classes, ou mais-valia sejam inválidas, mas sim
que o caso do México é algo especial.
Certamente,
há muitas objeções acadêmicas que se poderiam fazer aos argumentos de AMLO,
especialmente sua afirmação de que a redistribuição política ascendente é uma
característica única da política mexicana. No entanto, o que essa narrativa faz
é explicar em grande parte a perspectiva e os objetivos do governo Morena. Mais
do que uma série de crimes individuais ou escândalos isolados, para AMLO, a
corrupção é consequência de uma reordenação na relação estado-economia. O
neoliberalismo foi caracterizado não pela contração do governo, mas pela sua
conversão em um estado rentista reverso, no qual o governo e uma rede de
contratantes drenavam dinheiro público através de uma série de mecanismos
muitas vezes ilegais. Isso variava desde a terceirização de funções
governamentais até, nos casos mais extremos, a criação de estruturas paralelas
de empresas de fachada e empresas fraudulentas, produzindo uma aliança não
oficial entre políticos, empresários e prestadores de serviços especializados.
Esse
nexo de políticos-empresários-consultores representa uma fração que é, se não
específica do neoliberalismo mexicano, especialmente proeminente dentro dele. A
característica definidora desta fração de classe é que seu valor excedente é
gerado não pela produção e venda de bens no livre mercado, mas pela extração de
recursos públicos. Em vez de focar exclusivamente na exploração dos
trabalhadores, AMLO concebeu a luta de classes no neoliberalismo principalmente
como uma batalha para desmantelar essa fração através da luta contra a
corrupção armada com a ferramenta da austeridade republicana.
Mas
os fenômenos observados por AMLO no México têm análogos em todo o mundo. O
sociólogo histórico Robert Brenner argumentou há muito tempo que o período
neoliberal é caracterizado pela redistribuição ascendente através de meios
políticos. Cortes de impostos, altas taxas de juros sobre dívida governamental,
privatização de ativos públicos a preços de barganha e socialização de perdas
privadas massivas, como os programas de resgate após a crise financeira de
2008, são todos exemplos de como o estado interveio na economia para alterar o
equilíbrio do poder de classe em favor dos ricos.
Em
todo o mundo rico, assim como no Sul Global, o estado não simplesmente se
contraiu. O historiador de desigualdade Thomas Piketty descobriu que as
receitas fiscais nos países ricos como porcentagem do produto nacional nunca
diminuíram durante o período neoliberal. O neoliberalismo foi, na verdade, uma
reorganização do estado para que ele pudesse reproduzir mais de perto os
interesses do capital. Esta fusão de poder político, administrativo e econômico
sem dúvida tornou o neoliberalismo difícil de desalojar. Mas também expôs as
elites ao tipo de crítica moral e política promovida mais fortemente por AMLO.
Este tipo de política de esquerda anticorrupção não apenas conseguiu legitimar
a redistribuição, mas trouxe a classe trabalhadora de volta ao campo dos partidos
de esquerda, revertendo a tendência de desalinhamento predominante em grande
parte do mundo rico.
Fonte:
Por Edwin F. Ackerman, com Tradução de Sofia Schurig, para Jacobin Brasil
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