Para se
tornar chefe da OTAN, Mark Rutte negou os crimes de guerra cometidos por Israel
Toda
quinta-feira, um grupo de funcionários públicos holandeses sacrifica sua pausa
para o almoço para se reunir em frente ao Ministério das Relações Exteriores
para protestar contra a posição da Holanda em relação a Israel. Funcionários
públicos são esperados para seguir as instruções dos políticos eleitos — e,
portanto, raramente criticam abertamente os líderes políticos.
Mas
desta vez, eles não têm muita escolha. Como funcionários do governo, eles
juraram lealdade à constituição — um documento que afirma claramente que a
Holanda “promove a ordem jurídica internacional”. Portanto, muitos funcionários
públicos argumentam que é seu dever resistir à posição pró-Israel do governo.
No
entanto, promover a ordem jurídica internacional não é o objetivo do governo
holandês. Em resposta aos ataques liderados pelo Hamas em 7 de outubro, o
primeiro-ministro Mark Rutte declarou imediatamente “apoio incondicional” a
Israel e “seu direito de se defender”. Muitos críticos observaram que isso
essencialmente deu carta branca à resposta de Israel. Mas Rutte há muito tempo
se mostrava relutante em pedir restrição.
Além
disso, a Holanda contribui ativamente para a guerra de Israel. Ela fabrica
várias peças necessárias para construir caças F-35 que depois são
enviados para Israel. Isso continuou mesmo depois que a Corte Internacional de
Justiça (CIJ) em Haia afirmou que era “plausível” que Israel estivesse
cometendo genocídio. Mesmo quando um tribunal holandês bloqueou essas
exportações, o governo não apenas recorreu da decisão do tribunal, mas também
começou a explorar maneiras de ainda exportar peças do F-35 para Israel por
outros meios, como enviá-las primeiro para os Estados Unidos.
·
Revertendo a autoimagem holandesa
Junto
com Alemanha e Grã-Bretanha, a Holanda tem sido um dos maiores apoiadores de
Israel na Europa Ocidental. Rutte visitou Israel duas vezes no último ano para
expressar apoio e tem mantido contato com o primeiro-ministro Benjamin
Netanyahu mais de uma vez por mês. Ele afirmou que um ataque terrestre a Rafah
seria um “fator de mudança”, mas quando Israel, após sete meses de massacres de
palestinos, efetivamente iniciou o ataque terrestre, ele declarou que “nenhuma
linha vermelha foi ultrapassada”. Embora a Holanda tenha sido historicamente
uma aliada persistente de Israel, também se
considera um dos mais fortes defensores
diplomáticos dos direitos humanos desde a Segunda Guerra Mundial.
Anteriormente,
a Holanda se alinhava com os países nórdicos ao falar a favor do direito
internacional, especialmente quando seus representantes visitavam países com
governos opressivos. Diante de eventos como os Jogos Olímpicos ou a Copa do
Mundo da FIFA, ministros frequentemente se manifestavam contra violações de
direitos humanos nos países anfitriões, ou até mesmo organizavam boicotes. A
Holanda se orgulha — assim como
Rutte pessoalmente — do teórico holandês do século XVII, Hugo Grotius, que
lançou as bases para o direito internacional. Além disso, Haia é sede da CIJ e
do Tribunal Penal Internacional. Portanto, a autoimagem dos holandeses sempre
foi construída sobre julgamento correto e justiça moral.
Esta
imagem começou a mudar nos anos 2000, com vários relatos de que a Holanda
tinha corresponsabilidade pelo
genocídio contra a população muçulmana bósnia em Srebrenica, em 1995. A
situação se deteriorou ainda mais quando a Holanda apoiou politicamente a
invasão dos EUA ao Iraque — posteriormente também enviou 1100 tropas — com base
em informações falsas, enquanto ignorava relatórios internos de funcionários
públicos. (Segundo Richard Armitage, vice-secretário de Estado na época,
isso também ajudou na nomeação do
último secretário-geral da OTAN holandês em 2003.)
Rutte,
que foi eleito deputado dois meses antes da invasão do Iraque, apoiou a invasão
de 2003. Ele logo se tornaria um ministro júnior e depois líder do free-market
conservative party (partido conservador de mercado livre (VVD)) em 2007. Três
anos depois, em 2010, ele se tornou primeiro-ministro no governo holandês mais
de direita desde 1945, apoiado pelo Wilders’s Freedom Party (Partido da
Liberdade de Wilders), sendo aclamado como um marco na consolidação da extrema
direita.
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Alinhamento com os EUA
Nos
primeiros anos como primeiro-ministro, frequentemente argumentava-se que Rutte
carecia de visão. Ele era ocasionalmente elogiado ou criticado por suas
habilidades retóricas, assim como por minimizar problemas sociais sérios —
sendo chamado variadamente de “Teflon-Mark”, um “Houdini político” ou
“escorregadio como uma enguia”. Antes de entrar na política, ele foi chefe em
uma fábrica de manteiga de amendoim, e seu estilo político era mais
pragmaticamente gerencial do que moralmente principista.
Para
escárnio de muitos, Rutte se apropriou de sua reputação como “homem sem visão”
— infamemente declarando que “visão é um elefante que obstrui a vista”. No
entanto, apesar de sua suposta falta de visão, Rutte permaneceu como o
primeiro-ministro com mais tempo de serviço na história holandesa. Mas até o
dia 7 de outubro e o início da resposta desproporcional de Israel, ele já havia
indicado que renunciaria assim que um novo gabinete pudesse ser formado.
Mas
não parou por aí. No final de outubro, Rutte expressou abertamente seu
interesse em suceder Jens Stoltenberg como novo secretário-geral da OTAN. No
entanto, para conquistar esse papel na OTAN, Rutte acreditava que precisava
provar ser capaz de direcioná-la na direção desejada pelo membro mais poderoso,
os Estados Unidos. Para convencer os Estados Unidos, ele usou sua influência
para alinhar a posição do governo holandês o máximo possível com a
administração Biden. Por exemplo, Rutte só pediu “uma cessação imediata da
violência” após o Conselho de Segurança da ONU aprovar uma resolução pedindo um
cessar-fogo imediato em 25 de março de 2024 (com os Estados Unidos se
abstendo).
Dois
meses antes, a Holanda foi o único Estado membro da UE a se juntar aos Estados
Unidos e ao Reino Unido no ataque aos rebeldes Houthi que sequestraram navios
ligados a Israel no Mar Vermelho. Enquanto isso, o julgamento da CIJ no caso
genocídio África do Sul vs. Israel em Haia — que ocorreu a poucos passos do
escritório de Rutte — não recebeu tanta atenção quanto em outros lugares e teve
pouco efeito na posição do governo holandês.
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Enganando o público
Aposição
da administração Rutte, no entanto, resultou em vários conflitos com
funcionários do Ministério das Relações Exteriores — muitos dos quais fazem
esforços sinceros para melhorar as condições para o povo palestino e garantir a
prevalência do direito internacional. Apelos para evitar a cumplicidade em
genocídio foram ignorados pelos ministros — mas provocaram respostas de vários
partidos do governo, insistindo que funcionários públicos deveriam renunciar ao
invés de criticar a política.
Em
novembro de 2023, um memorando interno da embaixada holandesa em Israel vazou para a imprensa,
confirmando que o governo de Rutte está bem ciente de que as Forças de Defesa
de Israel “pretendem causar destruição massiva deliberadamente à infraestrutura
e centros civis”. Segundo o memorando, isso explicaria o “alto número de mortes
em Gaza” e “viola tratados internacionais e leis de guerra”. O memorando também
afirmava que o objetivo de Netanyahu de eliminar o Hamas é “um objetivo militar
virtualmente impossível de alcançar”.
Em
dezembro de 2023, a Assembleia Geral da ONU votou a favor de uma resolução
pedindo um cessar-fogo imediato em Gaza. Funcionários públicos aconselharam os
Países Baixos a apoiar a resolução, junto com a maioria esmagadora de outros
países, incluindo países ocidentais como França, Bélgica, Suíça, Espanha,
Canadá, Austrália, Nova Zelândia e os países nórdicos. No entanto, pouco antes
da votação, Rutte e seus subordinados diretos intervieram para anular o
Ministério das Relações Exteriores. Os Países Baixos, assim como Alemanha,
Grã-Bretanha e Itália, se abstiveram.
Isso
foi posteriormente revelado em uma carta enviada anonimamente por um grupo de
altos funcionários do Ministério das Relações Exteriores, pedindo uma proibição
das exportações de armas para Israel. Os funcionários públicos expressaram uma
frustração geral com o fato de que, de repente, não era seu ministro, mas Rutte
quem determinava a posição em relação a Israel. A carta parafraseou um pedido
interno dos subordinados de Rutte ao Ministério das Relações Exteriores
perguntando: “O que podemos dizer para parecer que Israel não está cometendo
crimes de guerra?”
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Um Boris Johnson entediante
Esta
tentativa de enganar o público se encaixa em um padrão de esforços para reter
informações que cada vez mais determinaram a reputação doméstica de Rutte nos
últimos anos. Se Rutte, autodeclarado anglófilo, nos primeiros anos poderia ser descrito como uma
versão um tanto descontraída de David Cameron, mais tarde se transformou mais
em um Boris Johnson entediante: dando ao parlamento informações vagas e
alegando não se lembrar de nada. No caso holandês, no entanto, a controvérsia
não foi apenas sobre as acrobacias pessoais de Rutte.
Esta
mudança de reputação começou em 2017, quando ele utilizou todo seu capital
político para pressionar pela abolição de um imposto sobre dividendos para
acionistas, na esperança de persuadir a Unilever a (re)colocar sua sede de
Londres para Roterdã. Como essa política não constava em nenhuma das
plataformas partidárias, a oposição questionou de onde ela havia surgido — e se
o plano fora impulsionado por lobistas. Inicialmente, Rutte negou que houvesse
esses memorandos. Mas, graças a um pedido de acesso à informação, logo ficou
claro que havia vários deles. Rutte timidamente afirmou que não se lembrava dos
memorandos — mas conseguiu reunir seus parceiros de coligação ao seu redor.
Um
ano depois, surgiram dúvidas novamente quando foi revelado que o governo não
havia informado o parlamento sobre setenta civis mortos pelas forças holandesas
no Iraque durante uma tentativa de ataque aéreo contra o chamado Estado
Islâmico, ocorrida em 2015. Nem o Ministério da Defesa, nem o primeiro-ministro
informaram o parlamento. Muitos partidos de oposição acharam implausível que
Rutte não tivesse sido informado sobre tantas vítimas fatais, mas ele continuou
repetindo que não se lembrava disso. Como era impossível provar o contrário,
ele permaneceu no cargo.
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A “Doutrina Rutte”
Muito
mais relevante do que o ataque aéreo mortal foi o escândalo conhecido como
“escândalo dos benefícios para creche”, no qual milhares de famílias foram
falsamente acusadas de fraude e tiveram que pagar multas altíssimas, muitas
vezes empurrando-as para uma dívida profunda. Nos esforços oficiais para
comprovar a má conduta, elas enfrentaram uma autoridade tributária muito
suspeita que se recusava a divulgar informações sobre suas decisões. Quando,
após anos de negação, ficou claro que as alegações de fraude eram falsas, as
vítimas tiveram que apresentar uma quantidade interminável de documentos para
obter compensação.
Rutte
próprio havia tornado medidas rigorosas contra fraudes um foco político, e até
presidiu um comitê que fez recomendações de políticas. Quando o escândalo veio
à tona, documentos desses comitês foram divulgados e Rutte foi chamado para uma
audiência parlamentar. Os parlamentares ficaram surpresos ao descobrir que
havia tão poucos documentos e ficou claro que Rutte fez esforços deliberados
para minimizar todas as evidências do processo de tomada de decisão. A prática
de escrever o mínimo possível do que é discutido a portas fechadas foi rotulada
como a “Doutrina Rutte” pelos funcionários públicos. A frase foi rapidamente
adotada por jornalistas e parlamentares, frustrados com sua aparente evasão.
·
Falta de oposição
Embora
Rutte tenha prometido aumentar a transparência, há poucos sinais de que ele o
fez. Logo foi revelado que, mesmo após fazer essa promessa, ele apagou a maior
parte de suas mensagens de texto. Ele se defendeu alegando que não havia espaço
em seu telefone — até o ano passado ele dependia de um antigo Nokia 301. No
entanto, isso também significa que informações cruciais sobre decisões
governamentais durante os lockdowns da COVID-19 nunca serão disponibilizadas ao
público.
Poderíamos
nos perguntar por que Rutte permaneceu por tanto tempo apesar de sua
conveniente amnésia ou mentiras descaradas. Uma explicação é que ele sempre
enfrentou uma oposição amigável e parceiros de coligação pouco exemplares. Suas
mentiras não são patológicas, mas simplesmente oportunistas; nesse sentido,
seus motivos não são muito diferentes de outros líderes que, sem posições
principais fortes, podem facilmente se solidarizar com Rutte.
O
mesmo vale para a mídia. Quando, em março de 2021, outra mentira veio à tona
que quase selou o destino de Rutte, um dos principais comentaristas políticos
da emissora pública twittou:
“O problema real, é claro, não é que ele viole a verdade. Qual político não faz
isso? […] Seu problema é que ele não conseguiu mais escondê-la”. Os principais
analistas políticos holandeses não estão interessados em descobrir a verdade,
mas no teatro de se os políticos conseguem ou não escondê-la.
·
Implicações para a OTAN
Muitos
argumentariam que a OTAN deveria ter sido dissolvida décadas atrás, juntamente
com o Pacto de Varsóvia, no espírito de encerrar a Guerra Fria e melhorar as
relações com a Rússia para construir um novo acordo internacional. Ainda assim,
essa já não parece ser uma opção viável a curto prazo. Hoje, a OTAN está
redefinindo seu papel e, portanto, também é um dos jogadores mais importantes
na formação de uma ordem mundial diferente. Se haverá paz entre a Rússia e a
Ucrânia em grande parte depende da postura e do apoio da OTAN em relação à
Ucrânia.
Não
se espera que Rutte se desvie muito da posição política de seu antecessor
Stoltenberg. Mas ele provou ser extremamente obediente aos Estados Unidos e
disposto a se ajustar flexivelmente quando garantir sua posição exigir.
Igualmente preocupante é que, nos últimos anos, Rutte cortejou especialmente a
extrema direita. Ele visitou Giorgia Meloni durante sua última campanha
política em março de 2023 e anteriormente mostrou-se surpreendentemente
amigável com Donald Trump — o que lhe rendeu uma reputação internacional como
um conselheiro de Trump, enquanto
domesticamente pedia “para considerar Trump como uma oportunidade”.
Sua
deferência à extrema direita também se traduziu em políticas. Rutte é
considerado um dos arquitetos dos acordos entre a UE e a Turquia (em 2016) e
entre a UE e a Tunísia (em 2023) para transferir refugiados para esses países.
A dependência desses estados para limitar os movimentos de refugiados para a
Europa resultou em inúmeras violações dos direitos humanos — algo que os
membros da UE estavam bem cientes que aconteceria ao assinarem os acordos.
Nesse sentido, a liderança de Rutte é particularmente preocupante, dada a
presença crescente da OTAN no Mediterrâneo para monitorar os fluxos de
refugiados da Turquia para a Grécia.
De
maneira mais geral, a liderança de Rutte na OTAN não está no interesse dos
países membros, nem de uma ordem internacional segura. A reputação de Rutte
como um político desonesto não fará maravilhas para a própria reputação da
OTAN. Mas, mais importante, na construção de uma ordem internacional de paz,
devemos estar atentos a um líder que direciona de maneira niilista todos os
seus esforços para atender aos interesses mais poderosos, apenas para
salvaguardar sua própria posição. Ainda assim, podemos ter esperança no fato de
que sua longevidade política nos Países Baixos se deve à falta de uma oposição
feroz ou persistente. Isso pode mudar agora que ele está liderando no cenário
global; pelo menos, tal oposição é urgentemente necessária.
Fonte:
Por Jouke Huizer, com tradução de Sofia Schurig, para Jacobin Brasil
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