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PL do Estupro se envolveu em acidente que matou idosa. Não houve investigação
Autor
do Projeto de Lei 1.904 de 2024, conhecido como “PL do Estupro”, que equipara
o aborto após
22 semanas a homicídio, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) envolveu-se em
um acidente de trânsito em 2022, que resultou na morte de uma idosa. Nunca
houve investigação sobre o acidente.
A Agência
Pública teve acesso com exclusividade ao boletim de ocorrência registrado
pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), no qual consta que o deputado passou
direto num cruzamento onde deveria parar. Apesar disso, não houve investigação
ou processo sobre o acidente. Também descobrimos indícios de que o Boletim de
Ocorrência (B.O.) registrado pela PRF pode ter sido alterado.
O
acidente ocorreu às 13h25 do dia 15 de junho de 2022, na BR-040, na cidade de
Cristalina, em Goiás. Era uma quarta-feira, dia em que Sóstenes deveria ter
participado das comissões de Educação e de Direitos Humanos, Minorias e
Igualdade Racial, além da sessão do plenário da Câmara dos Deputados. O
parlamentar – que é pastor e uma das lideranças da Bancada Evangélica no
Congresso Nacional – não registrou presença em nenhuma das reuniões, e decidiu
pegar a estrada para visitar parentes em uma cidade do interior de Goiás.
Sóstenes estava dirigindo um Toyota Corola alugado – cujo aluguel custou R$ 4,5
mil à Câmara naquele mês.
Na
altura do quilômetro 92, ele cruzou a rodovia para ingressar na estrada
estadual GO-436. Foi neste momento que o seu carro colidiu com outro veículo,
um Mitsubishi ASX, que trafegava no sentido contrário.
Dentro
do carro estavam Irma Diniz da Cruz, de 81 anos, e duas filhas. Com problemas
de saúde, a idosa estava no banco traseiro usando um tubo de oxigênio. Ela
estava sendo levada de Paracatu, em Minas Gerais, para uma consulta em
Brasília. Fotos do acidente mostram que o veículo em que a família viajava
ficou destruído.
De
acordo ainda com os dados do boletim de ocorrência, as três ocupantes do
veículo tiveram lesões e foram levadas em uma ambulância da PRF para uma
unidade de saúde de Cristalina. Os machucados de Irma foram graves – e foram
intensificados pelo tubo de oxigênio, que se chocou contra o seu corpo e
pescoço. Ela foi transferida para a UTI do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, e
acabou falecendo 15 dias depois, em 30 de junho. O registro de óbito diz que
houve morte encefálica e politraumatismo.
Sóstenes
não teve nenhuma lesão, conforme ficou registrado no boletim de ocorrência, e
foi “liberado após os trâmites legais”.
O
documento diz que o acidente foi causado por desrespeito à sinalização de
trânsito por parte do deputado. “Conforme constatações em levantamento de local
de acidente, concluiu-se que o fator principal do acidente foi a desobediência
a sinalização de trânsito por parte do condutor V1 [Sóstenes], placa R-1(Parada
obrigatória), presente no local”, diz o texto.
Sóstenes
reconhece que foi o responsável pelo acidente. “Eu estava errado. Não vi o
carro vindo, ele estava num ponto cego, e cruzei onde não devia”, disse à
reportagem, em uma conversa por telefone. “Não vi o carro, senão não passaria”,
reforçou. “Ninguém sai de casa para fazer um acidente.”
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Por que isso importa?
- O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor do PL
1904.2024, conhecido como o “PL do Estupro”, se envolveu em acidente com
morte, mas não houve investigação;
- B.O. que registra o acidente foi alterado, segundo a PRF.
Uma
pessoa que estava no local, porém, ouvida pela reportagem, diz que o carro de
Sóstenes estava em alta velocidade. “Ele entrou de uma vez só, entendeu? Se ele
estivesse em baixa velocidade, não teria tido tanto estrago no carro. Pelas
fotos ficou bem feio mesmo, né?”, disse essa pessoa, que não quis se
identificar.
O
deputado afirma que não estava em alta velocidade. “Eu não estava em alta
velocidade porque eu que estava cruzando, eu estava errado. Quem estava em alta
velocidade era quem estava vindo direto na rodovia [o carro da família de
Irma]. Eu estava fazendo a rotatória e é impossível fazer a rotatória em alta
velocidade”, disse.
Ele
afirma que os agentes da PRF não pediram para que ele fizesse teste do
bafômetro e toxicológico, mas diz que não tinha usado substâncias tóxicas. “Não
foi pedido na hora nenhum tipo de procedimento, bafômetro, nada. Mas eu faço em
qualquer circunstância qualquer um desses exames, não bebo álcool, não uso
droga”, afirmou.
De
acordo com Sóstenes, ele ainda estava atordoado com a batida quando foi levado
para um posto da PRF enquanto as mulheres do carro atingido eram socorridas.
Ele pediu para a sua então chefe de gabinete, Andrea Desiderati, encontrá-lo no
local, e para que ela tratasse diretamente com a família das vítimas.
Desiderati,
que não trabalha mais com Sóstenes, contou para a reportagem que outros
familiares das vítimas chegaram ao local muito nervosos. A partir daí, conta,
ela ficou responsável por pagar as despesas relacionadas com o acidente. Tanto
Sóstenes como Desiderati relatam que pagaram passagens de avião para uma filha
e uma neta de Irma que moram no Rio de Janeiro, hospedagem da família em
Brasília, alimentação, e depois o enterro da vítima.
No
começo, de acordo com Desiderati, a família teria ficado satisfeita com a ajuda
financeira. Mas, logo depois da morte de Irma, pediu para uma advogada negociar
um novo acordo com o deputado para compensar as perdas financeiras.
De
acordo com a ex-chefe de gabinete, Irma era o esteio da família e bancava parte
da renda mensal de filhos e netos com a sua aposentadoria. Além disso, ainda de
acordo com o relato dela, por causa do acidente, uma das filhas se lesionou e
ficou impedida de trabalhar. Nos meses seguintes a família ainda foi acometida
por outras fatalidades: uma outra filha de Irma descobriu um câncer de pulmão e
faleceu. E o marido de uma delas sofreu um infarto e precisou de cuidados.
“Depois
disso minha família desmoronou”, disse um dos integrantes da família que topou
conversar com a Pública sem se identificar. “Quando a gente perde uma
pessoa muito querida parece que as coisas desmoronam na questão sentimental.”
“Eles
estavam de fato passando por muitas dificuldades”, ressaltou Desiderati. “Não
achei em nenhum momento que estavam tentando se aproveitar da situação para
obter vantagem financeira.”
No
entanto, Sóstenes não aceitou negociar um novo acordo. Em resposta ao pedido da
advogada da família, ele disse que ela poderia pedir reparação pela Justiça, de
acordo com Desiderati. Isso não ocorreu, segundo o próprio e a sua ex-chefe de
gabinete. Não há registro de processo contra o deputado por este motivo.
Entramos em contato com membros da família e a advogada sobre o assunto, mas
não houve resposta.
·
B.O. teria sido retificado, segundo PRF
Os
agentes da PRF que atenderam o local do acidente entregaram para a família e a
ex-chefe de gabinete de Sóstenes um número do boletim de ocorrência registrado
no local. Este documento, porém, nunca foi acessado pelos familiares da vítima
e não existe mais no sistema interno da polícia, de acordo com fontes com
acesso ao sistema da PRF, ouvidas pela reportagem.
“Quando
foi lavrado o primeiro boletim de ocorrência, o policial falou na minha frente.
Ele foi narrando, narrando, narrando tudo certinho o que aconteceu. Salvou,
passou o número da ocorrência anotado num papelzinho e falou que no outro dia
podia ir lá retirar. Fiz conforme o combinado, fui lá para pegar e não estava
pronto. Todo dia eu ia lá e não estava pronto. Acho que foram semanas e semanas
e não ficava pronto. Quando saiu, saiu totalmente diferente”, disse o familiar
ouvido pela Pública em condição de anonimato.
O
boletim de ocorrência lavrado no momento do acidente teria sido deletado,
segundo fontes ouvidas pela reportagem que têm acesso ao sistema da PRF. Uma
nova versão do boletim foi incluída em dezembro de 2022 – seis meses depois do
acidente.
A
PRF confirmou, por meio da Assessoria de Imprensa, que “o pedido de retificação
foi feito via Sistema Eletrônico de Informação por solicitação de uma das
vítimas que estava a bordo do Mitsubishi ASX” – ou seja, da família da idosa.
Não
é possível, de acordo com a fonte da PRF ouvida pela reportagem, saber o que os
policiais escreveram na primeira versão do boletim. Familiares das vítimas
dizem que não têm acesso a ele, e Desiderati também afirma não ter cópia do
documento. A PRF não respondeu porque a família não teve acesso ao documento
registrado no dia do acidente.
·
Nunca houve investigação sobre a colisão
O
Código Brasileiro de Trânsito prevê diversas infrações consideradas crimes,
como lesão corporal e homicídio. De acordo com a legislação brasileira,
acidentes de trânsito que resultam em lesão ou morte devem obrigatoriamente ser
investigados. Mas, de acordo com as informações obtidas
pela Pública, isso nunca ocorreu, também de acordo com o próprio
deputado. “Não houve nenhum
processo, não houve nada, até porque eu dei todo o atendimento à família, tudo que não me era obrigatório, mas eu me senti no dever”, ele disse à Pública.
Após
o registro da ocorrência, a PRF deve enviar os autos para a Polícia Civil para
dar prosseguimento. Perguntamos para as polícias de Goiás e do Distrito Federal
(as responsáveis pelo local da ocorrência e do local de origem do autor do
acidente), mas não obtivemos resposta. Sóstenes afirma que nunca foi chamado
para prestar depoimento.
A
PRF disse, por e-mail, que “a investigação criminal é de competência exclusiva
da Polícia Judiciária, no caso deste acidente, a Polícia Civil de Goiás,
conforme o artigo 144 da Constituição Federal.” Perguntamos mais detalhes sobre
a comunicação do acidente à Polícia Civil, mas não houve resposta.
Também
procuramos o Ministério Público Federal, que poderia investigar o caso por
causa do cargo do deputado. Mas nenhum procedimento foi aberto.
A
então chefe de gabinete do deputado desconversou quando perguntada por que acha
que não houve investigação. “Eu não sei. Sinceramente, eu não sei. Mas é
estranho”, ela respondeu. “Eu não sei se houve alguma coisa por trás, eu não
posso dizer, mas é muito estranho não ter aberto o processo, não terem chamado
ele”.
·
Deputado pediu para tirar matéria do ar
Em
setembro de 2022, três meses depois do acidente, o caso foi noticiado em
uma reportagem do portal 24h News assinada pelo jornalista Derick
Fernandes. Ele relatou que o caso não foi noticiado por nenhum veículo de
imprensa e que ele foi “abafado” por não ter sido aberta investigação.
“Fui
até a cidade de Irma Diniz, em Minas Gerais. Descobri que a família tinha medo
do Sóstenes, que valores foram oferecidos, mas não trouxe isso na reportagem”,
disse o jornalista. Segundo ele, a família tinha receio de falar sobre o
assunto porque o deputado é uma figura pública.
No
início deste ano, o jornalista recebeu uma notificação extrajudicial de um
advogado de Sóstenes, pedindo para que a matéria fosse tirada do ar. Ele
decidiu atender ao pedido e arquivou a página. Com a volta da repercussão do
caso, após polêmica envolvendo o PL do Estupro, a página voltou ao ar. Sóstenes
disse que fez o pedido porque havia “inverdades” na matéria, mas não explicou
quais eram elas.
À Pública,
o jornalista afirma que recebeu a denúncia sobre o acidente de um assessor da
senadora Damares Alves, que na época havia se licenciado do cargo de ministra
dos Direitos Humanos para concorrer às eleições. A assessoria dela nega, mas o
jornalista sustentou a versão.
Apesar
de serem do mesmo campo político e atuarem pelos interesses da bancada
evangélica, Sóstenes e Damares romperam relações
em 2022. Na época, o deputado criticou a candidatura da ex-ministra ao Senado,
afirmando que iria dividir votos entre a direita – já que o ex-presidente Jair
Bolsonaro apoiava Flávia Arruda (PL) para a vaga.
Fonte:
Por Amanda Audi, da Agência Pública
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