Calor
extremo, saúde pública e as lições para o Brasil
Em
função da falta de pressão pública, o tema não está priorizado como deveria na
agenda nacional de saúde. Certamente será, com o mundo caminhando, em futuro
não tão distante, para média de +3 ºC pós era industrial – com o agravante de
nossas características tropicais e doenças que podem ser potencializadas pelo
excesso de calor, como a dengue.
Os
problemas climáticos domésticos têm sido, mais notadamente, seca, incêndios e
chuvas intensas. Pantanal, Amazônia e Cerrado secam e ardem com maior
frequência. Chuvas extremas mudaram completamente a realidade no Rio Grande do
Sul.
O
prenúncio trazido pelo inverno de 2024, que se inicia com “veranico”, aponta
que as temperaturas médias deverão ficar 3 ºC acima dos invernos passados. Não
é bom sinal para o próximo verão. Precisamos estar atentos ao que ocorre hoje
no verão do Hemisfério Norte. A morte por calor extremo de mais de mil
peregrinos muçulmanos em Meca, na Arábia Saudita, durante o tradicional Hajj,
acendeu uma luz de alerta para o mundo. Os efeitos do aquecimento global estão
sendo fulminantes.
Episódios
de calor extremo na Europa, Oriente Médio, sul da Ásia e Estados Unidos também
devem servir de lição para o Brasil. O caso de Nova Delhi, na Índia, demonstra
a morbidade dos desabrigados, os que vivem ao ar livre e sem proteção contra o
calor extremo. O calor incessante de 40 ºC ceifou, na última semana, mais de
duzentas vidas dessa população vulnerável. Em menos de vinte dias a Índia
registrou 40 mil casos suspeitos de insolação. A Grécia está em sua segunda
semana de calor mortal, menos de um ano depois de experimentar uma onda de
calor de dezesseis dias, a mais longa da série histórica.
Em
geral, as ondas de calor que atingem várias partes do Hemisfério Norte tendem a
ser mais quentes, frequentes e duradouras. Na região do Mediterrâneo, os verões
de 2022 e 2023 trouxeram ondas de calor de tal magnitude que foram batizadas
pelos climatologistas da Itália com nomes de personagens como Cérbero, o cão do
inferno, e Caronte, o barqueiro dos mortos, da obra Divina Comédia, de Dante
Aligheri.
Nos
Estados Unidos, 80 milhões estão começando a enfrentar o verão de calor
extremo, que se inicia. Segundo as previsões, deverá ser a mais longa e tórrida
estação que algumas regiões norte-americanas já experimentaram.
O
ano de 2023 foi considerado o mais quente da história e as temperaturas globais
continuaram quebrando recordes mensais até 2024. O contexto tem demonstrado que
apenas a série histórica não pode mais orientar ações preventivas. O rompimento
sucessivo de padrões previsíveis faz da intempestividade a marca das mudanças
climáticas. Fomos arremetidos para uma realidade de incerteza radical.
Para
a saúde humana, os impactos podem ser mortais. “O corpo humano tem que
trabalhar mais para manter os órgãos e tecidos em suas temperaturas normais
saudáveis. Quanto mais tempo o corpo é forçado a fazer isso, maior a pressão
sobre seu sistema cardiovascular e maior o risco de efeitos negativos à saúde,
que, em casos extremos, podem incluir insuficiência cardíaca e renal”, afirma
matéria do Washington Post, citando os pesquisadores Brooke Anderson e Michelle
Bell. Após pesquisarem décadas de gradual crescimento das temperaturas no verão
norte-americano, concluíram que, para cada dia adicional de uma onda de calor,
o risco de morte aumenta em 0,4%. Os pesquisadores também concluíram que as
ondas de calor no início do verão eram mais perigosas do que as posteriores,
porque as pessoas se aclimataram fisicamente ao clima quente ou se equiparam,
comprando um ar-condicionado, por exemplo, ou passando mais tempo dentro de
casa.
Já
os pesquisadores Antonio Gasparrini e Ben Armstrong, do Departamento de Saúde
Ambiental da London School of Hygiene and Tropical Medicine, registraram
aumento adicional no risco de mortalidade após quatro dias quentes
consecutivos, ou seja, os organismos tendem a colapsar após alguns dias sem
possibilidade de resfriamento. Essa constatação está orientando políticas
públicas com instalação de “centros de resfriamento”, montados em departamentos
de bombeiros ou em outras instituições públicas norte-americanas para abrigar a
população mais vulnerável.
Enquanto
a ciência médica estuda o fenômeno do calor extremo buscando medidas para
proteção da saúde pública, a climatologia estuda suas probabilidades de
recorrência, intensidade e abrangência.
Repisando
os estudos do IPCC, a causalidade do calor extremo tem sido objeto de
pesquisas. As conclusões não deixam dúvida sobre as digitais humanas na piora
do clima planetário. Cientistas da Holanda examinaram dados de temperatura de
cinco dias em aspectos diurnos e noturnos dos dias mais quentes entre o final
de maio e o início de junho e compararam as temperaturas registradas com um
planeta hipotético no qual os humanos nunca haviam bombeado nenhum gás de
efeito estufa para a atmosfera.
Relatório
da Climate Central avalia que os recordes de temperatura registrados em várias
partes do mundo “não surpreendem” e fazem parte da “tendência de aquecimento
alimentada pela poluição de carbono”. “Enquanto a humanidade continuar a
queimar carvão, petróleo e gás natural, as temperaturas continuarão a subir, e
os impactos disso vão acelerar e se espalhar”, alerta a entidade.
Um
relatório sobre dados colhidos em uma cúpula de calor no México, onde
temperaturas excessivas foram exacerbadas por ciclos de retroalimentação
causados por uma seca contínua, relatou pelo menos 125 mortes desde março, de
acordo com o estudo, juntamente com mais de 2.300 casos de insolação. Esse caso
demonstrou também que mortes relacionadas ao calor tendem a ser subestimadas.
São confirmadas meses após o evento de calor, isso se forem relatadas.
Os
impactos correlatos ao calor extremo são conhecidos: o ressecamento da
vegetação e o aumento dos incêndios com vítimas fatais, como nos casos
devastadores registrados no Havaí, Califórnia, Chile, Portugal e Grécia.
Ressalte-se ainda as ondas de fumaça que provocaram efeitos adversos a grandes
contingentes populacionais de cidades como Nova York e Manaus.
As
conclusões sobre a severidade dos impactos das ondas de calor levaram grupos
ambientais e trabalhistas dos Estados Unidos a afirmar que o calor é o
assassino número 1 relacionado ao clima.
As
instituições estão pressionando a Agência Federal de Gerenciamento de
Emergências dos Estados Unidos (Fema) a declarar o calor como o maior desastre
climático, inserindo-o em situação de igualdade a tornados e inundações.
Esse
reconhecimento poderá desbloquear fundos da Fema para ajudar as localidades a
se prepararem para ondas de calor e fumaça de incêndios florestais, construindo
centros de resfriamento ou instalando sistemas de filtragem de ar em escolas. A
agência também poderia ajudar durante emergências, pagando pela distribuição de
água, exames de saúde para pessoas vulneráveis e aumento do uso de
eletricidade.
Na
área trabalhista os desafios são gigantescos. Todos os trabalhadores que
exercem atividades internas e externas expostos ao calor, como operários da
construção civil em geral, bem como das atividades agrícolas, estarão
seriamente comprometidos em episódios de calor extremo, assim como atividades
escolares e outros serviços públicos.
Estudo
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que medidas atuais em
favor da segurança e saúde no trabalho têm dificuldade em acompanhar riscos
climáticos, resultando em mais de 2,4 bilhões de trabalhadores expostos ao
calor excessivo em algum momento de suas carreiras, o que contribui para cerca
de 18.970 mortes registradas.
“Nenhuma
das instituições, ferramentas e conjuntos de dados do mundo são adequados para
responder ao tamanho do calor extremo para as comunidades”, disse Kathy
Baughman McLeod, CEO da Climate Resilience for All, uma organização sem fins
lucrativos focada em lidar globalmente com o calor extremo.
O
enfrentamento do problema deverá passar por situações estruturais de
planejamento e licenciamento. Uma leitura geomorfológica das cidades permitiria
planejar intervenções em pontos nevrálgicos como as ilhas de calor, o que
ensejaria políticas públicas visando ao conforto térmico da população, com
planejamento urbano adequado, troca de materiais construtivos, maior
arborização e adaptação com sistemas de refrigeração, especialmente para os
mais vulneráveis.
Será
preciso avaliar no Brasil as medidas que vêm sendo tomadas na área de saúde
pública para promover diagnósticos sobre populações vulneráveis, riscos
envolvidos, capacitação da sociedade e dos governos municipais, além de
identificar possíveis fontes de recursos para lidar com planos emergenciais
diante de cenários extremos, que tenderão a ocorrer com maior frequência e
intensidade em futuro próximo.
Fonte:
Por Carlos Bocuhy, no Le Monde Diplomatique Brasil
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