Chico, 80:
uma crônica para o cronista
Noel
Rosa e Tom Jobim tiveram um filho juntos, nascido e criado artista depois de
Chega de saudade. Cresceu e, ao reinventar a saudade, que não se traduz,
escreveu que “dói como um barco, que aos poucos descreve um arco, e evita
atracar no cais”. Exceto nos livros de ficção, quase não fala fora da canção,
nunca deixa sobrar palavra dentro dela.
Seu
conservadorismo formal construiu empreendimentos excelentes com coerência
ideológica anticonservadora. Com sutileza crônica, pôs tijolo com tijolo num
desenho lógico, mágico e à esquerda. Alta literatura fraseada em assovio,
caymmolente, de modo a fazer o pê de MPB parte constitutiva dessa estatura.
Está no verbete “canção brasileira” para o mundo como o cume do exemplo
convencional. Sua sorte, Bob Dylan, é que ele fala português.
Guri,
Pivete e Geni. Palhaços, ciganos e trabalhadores assalariados. Inúmeros pretos
com paus enormes em Caravanas, Mar e Lua, funcionário e dançarina. Ninguém
duvida do que é capaz a suposta gay que mistura baião e rock. Biscate, Sinhá,
As atrizes e a Beatriz. Elza Dura na queda. Dondocas, Ode aos ratos, A Rita e
Futuros amantes. Até mesmo Manuel e Miguilim. Nina lá de Moscou, nhonhô
histórico dentro do blues, O caderno. Juntos com outros tantos, sob as bênçãos
artísticas das Mulheres de Atenas, não moralizam seus modos de representação.
São arteiros, possuem modos de arte. Justamente por isso o período atemporal
provavelmente os conservará.
Em
briga de marido e mulher, a crítica social mete a língua e juntos fazem canções
de amor a três. Um dia, nos anos 1990, um casal viajou de avião pela
globalização neoliberal algo real, meio onírica, sem muita consistência do que
ocorria pelos ares, passeio com sentido e sentimento rarefeitos, mas não a
batida do tango, definida, certa de que Sonhos, sonhos são.
A
luta de classes, universal, particulariza-se no requinte da intenção
construtiva, na tônica de proparoxítonas proletárias em movimento e disciplina
ou, via anagrama, com Iracema pós-romântica lavando o chão da América colonial.
Certo espírito do tempo com quatro faces, Carlos Drummond, Manuel Bandeira,
João Cabral e Cecília Meireles, soprou pelo caminho uma brisa que é coesão de
época, tudo foi como foi, e para ele ainda é, também por conta desse desmedido
quadro.
Assim
o país se equilibra: se sua contraparte experimental, alegria alegria de Santo
Amaro, tem pronta em canções-ensaios uma teoria social brasileira, ele, que é
filho de sangue do ensaísmo canônico, teorizou contista à cantoria. Interpreta
a si mesmo como ninguém, parece que não interpreta.
Seu
poema faz assim, “Meu coração, que você sem pensar / Ora brinca de inflar, ora
esmaga / Igual que nem fole de acordeão / Tipo assim num baião do Gonzaga”,
quando faz assim. Vida e obra constrangedoras de toda afetação. Pedro Pedreiro,
com 21 anos daquele jeito, chocou ao não mentir a idade.
“Que
tal um samba?”, o último gesto por enquanto, é convite para o que propõe a
acontecer, mas, enquanto convida, o barulho dos fonemas encadeados já realiza
em ato, sem confessar, o que sugere para depois. A palavra dada, não literal,
não está dada. Se faz no agora, mas não imediata, faz de conta no som pelo fato
de ser música ao mesmo tempo que palavra. Aliás, a palavra é carne e motivo da
música. O ouvinte-convidado que escuta as consoantes é envolvido por elas.
Antes de dizer se aceita ou não o invite, percebe-se no meio da roda de samba
instrumental de timbres dependentes da técnica da aliteração e ao mesmo tempo
autônomos dela quando iluminados pelo resultado produzido.
Faz
cumprir o que disse: “Aprendi que melodia e letra podem, e devem, formar um só
corpo e procurei frear o orgulho das melodias”. Seu traço tem a data do século
XX. É delicado, imaginativo e amoroso com o engenho. Avança com o passado
futuro afora enquanto sobrevoa discreto, como presente, o estado do tempo pelo
qual alcança seus 80.
Fonte:
Por Rogério Rufino de Oliveira, no A Terra é Redonda
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