PARTICIPAÇÃO
SOCIAL COMO GARANTIA: Comunicação pública é forte pilar para os desafios democráticos
do presente
Na
tragédia do Rio Grande do Sul, quando nada mais funcionava, o rádio à pilha
tornou-se a única ferramenta de comunicação e foi o sinal da Rádio Nacional,
emissora pública ligada à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que chegou à região por meio de uma rede de emissoras locais.
Criada
em 2007, a EBC enfrenta agora o desafio de ampliar o seu alcance. Depois de um
período turbulento nos governos Temer e Bolsonaro, com o fechamento à
participação social e ameaças de privatização, a empresa aposta nessa ampliação
para atuar no combate à desinformação.
De
acordo com o estudo Marco Normativo e Políticas Públicas sobre a atividade
jornalística no Brasil, publicado pela
Repórteres Sem Fronteiras (RSF) em fevereiro de 2024, o histórico de
regulamentação da comunicação pública no país não aponta alicerces suficientes
para a pluralidade no debate público, essencial à democracia. Também faltam
sustentabilidade financeira e fiscalização às emissoras do setor.
O
primeiro ano do Governo Lula foi turbulento para a EBC, com mudanças na gestão:
foram três presidentes em menos de um ano. Além disso, a gestão da empresa
enfrentou dificuldades na relação com os servidores e recebeu críticas ao
conteúdo jornalístico, como a cobertura do tema das energias renováveis e as mudanças na programação — com a estreia de
programas como o “novo” Sem Censura. O Governo ainda foi acusado de lentidão na
retomada de espaços de participação social na gestão da empresa.
·
Garantia de
participação social é uma das chaves para pluralidade
Em
abril de 2024 o atual presidente da República publicou o Decreto 12.005
reabrindo, de forma limitada, o espaço de participação social, ao instituir um
Comitê Editorial e de Programação para a Empresa Brasil de Comunicação
(EBC). Já são quase oito anos sem garantia de participação popular na EBC,
desde que o Conselho Curador foi
cassado em setembro de 2016, ano do golpe contra Dilma Rousseff.
Pedro
Rafael Vilela — que representou o Sindicato dos Jornalistas do
Distrito Federal no grupo de trabalho (GT) criado no final de 2023, composto
por representantes da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República (Secom), da própria EBC, de membros do Conselho Curador cassado em
2016 e entidades representativas — destaca que a criação desse comitê
estava prevista desde 2017, com a publicação da Lei nº 13.417.
Ou
seja, o Decreto 12.005, que prevê “participação da sociedade civil no
acompanhamento da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão”,
ainda não é fruto do trabalho do GT. Na avaliação de Pedro Rafael Vilela, o
comitê instituído pelo decreto é limitado e não garante autonomia. “Esperamos
que se avance agora na composição de um colegiado mais amplo e com capacidade
de deliberar e acompanhar a aplicação dos princípios da lei da EBC na
programação dos veículos públicos, incluindo aspectos de diversidade e
pluralidade, além da garantia de autonomia editorial”.
De
acordo com Rita Freire, ex-presidenta do Conselho Curador da EBC cassado em
2016 e também integrante do GT, por causa da crise no Rio Grande do Sul e da
saída do ministro Paulo Pimenta da Secom em maio de 2024, o relatório final do
GT não foi oficializado. Para ela, a comunicação pública exige diálogo
permanente com a sociedade. “A EBC está em um caminho de buscar boas práticas,
mas o sentido de comunicação pública coloca a dependência da empresa, dos seus
veículos, a um diálogo permanente com a sociedade. Nós não temos comunicação
pública sem isso”, lembra.
Na
mesma linha, entidades como o Intervozes e o Fórum Nacional pela Democratização
da Comunicação (FNDC) defendem a participação social como garantia do caráter
público. “É fundamental para o fortalecimento da nossa democracia. Nós
esperamos que seja feito de imediato o chamamento para a constituição do
conselho”, cobrou Maria José Braga, secretária geral do FNDC.
Para
Rita Freire, o Comitê Editorial e de Programação criado em abril é apenas uma
parte de um sistema de participação social. “Nós propusemos um sistema que
incorpora o comitê, mas a nossa discussão indicava a criação de outras
ferramentas, como a retomada da ouvidoria, a criação de um conselho mais amplo,
a criação de conselhos regionais, algo que esse decreto não traz”, esclarece.
Gésio
Passos, diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal,
ressalta ainda a fragilidade do instrumento escolhido para o exercício da
autonomia. “O governo se comprometeu a criar, por portaria da EBC, uma nova
instância que teria talvez um empoderamento maior. Se essa nova instância
tensionar com a diretoria da empresa, basta uma portaria extinguindo o comitê”,
alerta.
De
acordo com a diretora geral da EBC, Maíra Bittencourt, o anúncio da nova
instância seria feito pela Secom, no dia 06 de maio, mas foi adiado por causa
da crise no Rio Grande do Sul. Até a conclusão desse texto, não havia previsão
para a instalação do comitê.
·
Expansão da rede
pública via universidades
“Daquilo
que a gente tem a iniciativa de fazer, a expansão da Rede Nacional de
Comunicação Pública é o projeto mais importante”. Foi assim que, em 17 de
outubro de 2023, Ricardo Zamora, secretário executivo da Secretaria de
Comunicação da Presidência da República, marcou a solenidade de assinatura de acordos entre a EBC e onze
instituições estaduais de ensino para
a integração de quinze emissoras de televisão e outras 20 emissoras de rádio à
rede que irá retransmitir a programação da EBC. Entre outubro e dezembro,
outras 81 instituições aderiram à Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP).
Com
isso, de acordo com o mapa interativo da RNCP, atualizado até o início de maio
de 2024, a rede passaria a contar com 117 emissoras de televisão e outras 155
emissoras de rádio, chegando a um total de 110 milhões de habitantes em 2,9 mil
municípios do Brasil. Atualmente, segundo a própria EBC, a rede tem 44
geradoras de rádio com sinal disponível em 186 municípios e 72 geradoras de TV
que atingem 2.427 municípios.
As
emissoras que aderem ao acordo de cooperação se comprometem a, além de
retransmitir a programação da TV Brasil, da Rádio Nacional ou da Rádio MEC,
produzir conteúdo local. A contrapartida da EBC envolve o auxílio na tramitação
de processos, suporte técnico e formação de profissionais, além de espaço para
conteúdos locais e regionais para exibição e transmissão nacional.
·
Expansão pode travar
por falta de orçamento
A
rede nacional não inclui repasses de recursos financeiros. Em outubro de 2023,
durante a assinatura dos acordos, a reitora da Universidade de Brasília e atual
presidente da Andifes, Márcia Abrahão Moura, destacou a necessidade de
financiamento. “Certamente todo esse avanço necessita de mais investimento,
mais pessoal. O financiamento não só para a manutenção das nossas instituições,
mas a ampliação do orçamento para que a gente possa dar conta das nossas
obrigações, e com grande compromisso social”, cobrou.
Na
Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), em Mossoró (RN), foram
iniciados os processos de licitação para a compra de equipamentos de
implantação da rádio, com o custo estimado de R$ 1,2 milhão. No entanto, ainda
não há uma solução para a contratação de mão-de-obra.
A
Universidade Federal do Ceará (UFC) já possui uma emissora de rádio em
Fortaleza e conseguiu autorização para instalar uma emissora de TV na capital e
uma de rádio no campus de Russas. Há a expectativa de instalação de outras duas
emissoras de rádio nos campi de Sobral e Crateús. “Essa parte burocrática está
andando, a parte do dinheiro é que não está”, afirma Kamila Fernandes,
secretária de Comunicação e Marketing da UFC. Também faltam equipamentos e a
contratação de pessoal.
Um
dos entraves para contratação são os decretos nº 9.262/2018 e nº 10.185/2019,
da gestão Bolsonaro, que impedem a realização de concursos ou contratação para
uma série de cargos da área de produção audiovisual e comunicação.
Universidades que já operam emissoras de rádio e televisão já começaram o
processo de terceirização.
Também
há muita indefinição sobre a programação local das emissoras. Em Mossoró, as
transmissões devem começar somente com a programação da EBC. No Ceará, a aposta
deve ser com a produção de conteúdo feita nos espaços de formação dos cursos de
Comunicação Social. Para Suzy dos Santos, professora da Escola de Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é preciso investir nesses
veículos. “Tem que se investir materialmente e também tem que se investir a
partir de concursos, porque falta gente nesses veículos. Você pode sim criar
linhas, por exemplo, de fomento para audiovisual com foco em questões sociais
relevantes”, lembra.
Para
Maíra Bittencourt, diretora geral da EBC, a expansão da rede é fundamental para
“se fazer presente enquanto comunicação pública e fazer o contraponto ao
processo de desinformação, de fake news, de notícias que não são adequadas e
estão circulando, estão sendo presença nos territórios”, reforça.
Em
maio de 2024, a EBC reuniu cerca de noventa representantes das emissoras
vinculadas à rede. O Ministério das Comunicações se
comprometeu a apoiar a expansão e a EBC lançou edital para a produção de treze episódios de uma série sobre turismo regional para emissoras da
RNCP, com um investimento total de R$ 260 mil.
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Rede pública é também
privada
A
lei que regula a radiodifusão pública (11.652/2008) permite o estabelecimento
de cooperação com entidades privadas. Atualmente, segundo a EBC, 34 emissoras
privadas de caráter educativo estão integradas à rede. Suzy dos Santos aponta
que “é necessário também observar como as redes públicas estão atuando, porque
a gente tem canais em algumas regiões que exibem programação que não é pública.
O Estado abriu mão há muito tempo”, denuncia.
Segundo
o mapa da RNCP, pelo menos três
grandes redes de comunicação privadas vinculadas a grupos religiosos e
empresariais retransmitem a programação da TV Brasil. É o caso da Rede
Mundial, vinculado à Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro
Santiago. Dados do Portal da Transparência do
Governo Federal apontam que a emissora recebeu R$ 167,1 mil para prestação de serviços de publicidade
institucional e de utilidade pública entre
2019 e 2024.
Já
a RBI TV, com sede em São Paulo, tem 79 retransmissoras abertas em 296
municípios, sendo doze capitais em todas as regiões do país. Desde agosto de
2022, a RBI passou a transmitir os noticiários e conteúdos da EBC e programas
religiosos de orientação cristã. A rede de emissoras pertence ao Grupo Mix de
Comunicação e aluga horários da programação.
A
Rede Mais Família, do empresário Rinaldi Faria, criador do grupo de palhaços
Patati Patatá, também é integrante da RNCP. A emissora sediada em Santa Inês,
no Maranhão, tem transmissão em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo
Horizonte, Florianópolis e nas principais cidades do interior de São Paulo.
Segundo a EBC, todas as parcerias da RNCP são realizadas por meio de contratos
com parecer do departamento jurídico e que prevêem um quantitativo de horas de
programação da EBC a ser transmitida.
·
Financiamento e TV 3.0
A
EBC conta com uma série de parcerias históricas, inclusive com emissoras
estaduais. Em comum, essas emissoras têm um desafio: a sustentabilidade
financeira. Para Flávio Gonçalves, do Instituto de Radiodifusão Educativa da
Bahia (IRDEB), falta criar um modelo de financiamento do sistema público de
comunicação no Brasil. “Isso é algo que não avançou ainda, em que além do
recurso de cada um dos estados e das entidades que mantêm as emissoras
estaduais, que nós possamos também ter acesso a recursos públicos federais,
para que as emissoras estaduais consigam produzir, estruturar e oferecer mais
conteúdo local e mais conteúdo nacional”, comenta.
Uma
das problemáticas é a não regulamentação da Contribuição para o Fomento da
Radiodifusão Pública (CFRP). Depositada pelas operadoras de telecomunicações,
seu repasse está embargado por conta de questionamento das operadoras no
Judiciário; dessa forma, os valores estão sendo depositados em juízo. “Em 2013,
algumas empresas passaram a pagar a taxa, mas o acesso aos recursos dependia de
alocação a cada ano pelo governo federal. Sucessivas gestões do Executivo
Federal represaram esses repasses, mantendo parte da CFRP no caixa do governo.
Em 2022, por exemplo, apenas 35% dos R$ 230 milhões arrecadados foram liberados
para a EBC”, aponta o estudo da Repórteres Sem Fronteiras.
Se
o orçamento está apertado agora, como ficará a implantação da TV
3.0 — nova geração da televisão aberta? A nova tecnologia propõe a
integração da transmissão de televisão com a internet e deve exigir
investimentos em equipamentos. “O campo público precisa de recursos. A gente
não pode deixar que só as empresas privadas tenham suporte financeiro do Estado
para fazer essa transição”, alerta Cláudia Lemos, jornalista e presidente da
ABC Pública.
A
interação dos usuários com os conteúdos também muda — saem os canais
numéricos e entram os aplicativos, o que vai permitir ainda a oferta de
serviços locais e publicidade personalizada. “A gente precisa trabalhar para
garantir que isso aconteça, para garantir que a gente não desapareça daquela
tela que vai abrir ali para o cidadão”, destaca Cláudia Lemos.
Os
estudos para a nova tecnologia foram autorizados pelo Decreto no 11.484 de
2023 e incluem universidades e empresas no Fórum do
Sistema Brasileira de TV Digital Terrestre. A
jornalista compara esse momento com o contexto de debate da Lei do Cabo. “Foi a
visão dos nossos colegas lá nos anos 90 que permitiu que a gente estivesse ali
no cardápio de canais de cabo. Quando eu digo a gente, é TV pública, TV
educativa, TV universitária, TV legislativa, TV justiça. A gente precisa ser
ousado de novo e propor essa presença. Isso é agora, isso está acontecendo
agora”, alerta. O prazo para a conclusão dos estudos da TV 3.0 é 31 de dezembro
de 2024.
Fonte:
Por Aline Braga e Iano Flávio, no Le Monde
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