sábado, 29 de junho de 2024

Davide Assael: Para além da retórica de 7 de outubro. O conflito institucional se reabre em Israel

Em Israel, parece estar se reacendendo o conflito entre os poderes do Estado, que já imobilizou o país nos meses anteriores a 7 de outubro. O embate interno reflete diferentes concepções do judaísmo. Espera-se que ninguém use a fronteira Norte como possível rota de fuga.

Primeiro de tudo a intimação da Corte Suprema ao governo para resolver a controversa questão do alistamento militar, do qual estão atualmente isentos os alunos das yeshivòt (escolas rabínicas), que vivem de subsídios estatais para ter tempo para estudar a Torá.

Segundo a antiga tradição de “não antecipar o fim” prevista pelas doutrinas cabalistas antissionistas, que incentivam a se dedicar ao estudo para estar preparados para a chegada do messias, evitando qualquer ação política que possa acelerar indevidamente os tempos.

Instâncias representadas no atual governo pelo partido Yahadut HaTorah e pelo sefardita Shas, que já teve que passar pela vergonha de ver seu líder Aryeh Deri cair dos cargos governamentais, considerado, sempre pela Corte, inadequado para desempenhar as funções que lhe foram atribuídas por Benjamin Netanyahu.

·        O confronto com o exército

Agora também o conflito com o exército, que decidiu uma pausa humanitária diária de algumas horas para implementar a entrada das ajudas humanitárias, de acordo com os desejos do aliado estadunidense, dos países árabes, com quem já se discute o pós-guerra, e do Tribunal Penal Internacional liderado por Karim Khan.

Inútil contornar a situação, o conflito institucional se reabriu em Israel, já abundantemente antecipado pela retomada das manifestações antigovernamentais, que viram as antigas partes contrapostas reunirem-se em torno do tema dos reféns e da responsabilidade pela guerra.

Assim cai o manto retórico que indicava o 7 de outubro como um momento de reconstituição da unidade nacional perdida durante os meses quentíssimos da reforma judiciária. Assim como era verdade que o conflito social anterior, incluindo as manifestações antigovernamentais dos líderes da polícia nacional e a recusa dos reservistas em responder à convocação do estado, comportasse uma ameaça à defesa do país, assim como era uma narrativa superficial e consoladora a ideia de que a inevitável compacidade, típica do Estado judeu nos momentos de emergência, sobre a necessidade de um a resposta militar ao Hamas, pudesse reparar as fraturas que, na realidade, representam dados culturais profundos aberto não há anos, não há décadas, mas há séculos, escondendo uma relação que nunca foi completamente resolvida entre o judaísmo e a modernidade.

·        Duas partes inconciliáveis

Dificuldades que se transferiram para dentro das fronteiras do novo estado fundado em 1948. Em Israel se opõem duas partes que parecem inconciliáveis: de um lado, uma galáxia tradicionalista-ortodoxa, na qual desempenha um papel cada vez mais relevante um componente messiânico, e um ligado aos ideais liberais e aos movimentos de emancipação europeus, que a própria cultura judaica contribuiu para fundar e desenvolver.

Não é por acaso que existe uma tese filosófica segundo a qual a modernidade é judaica, tantos são os autores e as autoras judeus que moldaram o imaginário cultural entre os séculos XIX e XX, no momento em que o judaísmo saiu dos guetos.

Tese ainda mais evidente no ano kafkiano que estamos vivendo. Em todo esse cenário bastante fragmentado, se insere a conspícua minoria árabe, que, como o atual conflito está demonstrando, já decidiu que sua conveniência é ficar com os dois pés firmemente plantados nas fronteiras do estado judaico, que lhe garante um padrão de vida impensável em qualquer país árabe.

Sem que, infelizmente, essa escolha se traduza numa ativa participação política, embora a participação no governo anterior da chapa árabe Ra'am não seja um dado negligenciável. Movimento míope, sem dúvida alimentado pelo clima de desconfiança que rodeia hoje os árabes israelenses, porque seria a fatia da população mais afetada por uma virada tradicionalista e autoritária do país.

·        A queda de Netanyahu

A reabertura do conflito entre os poderes do Estado é mais um elemento para esperar a queda de Netanyahu, que mais do que qualquer outra pessoa alimentou a divisão interna para fins eleitorais, já a partir da oposição a Oslo.

Mas Bibi, mesmo lidando com turbulências na maioria, sempre se reergue quando parece estar contra a parede e o aumento das tensões no Norte não deixa entrever nada de bom sobre a forma como ele pretende se desvincular de mais um aperto. Mesmo que pessoalmente eu não acredite num prolongamento do conflito, corre-se o risco de seguir a clássica partitura do “tanto trovejou até que choveu!”.

 

¨      A verdadeira derrota de Israel. Por Amira Hass

O Estado judaico perdeu porque os seus políticos estão levando à fome dois milhões e trezentos mil seres humanos e porque as doenças estão se disseminando em Gaza. Israel foi derrotado, e a sua derrota continua.

E não porque, após nove meses de guerra, o Hamas ainda não tenha sido neutralizado. O símbolo da derrota aparecerá para sempre ao lado daqueles do judaísmo, como a menorá e a bandeira de Israel, porque os líderes, os comandantes e os soldados israelenses mataram e feriram milhares de palestinos, semeando desolação na Faixa de Gaza. Porque a Força Aérea bombardeou edifícios cheios de crianças, mulheres e idosos. Porque os israelenses acreditam que não há alternativa.

O Estado judaico perdeu porque os seus políticos estão levando à fome e à sede dois milhões e trezentos mil seres humanos, porque espalham-se em Gaza a sarna e as inflamações intestinais.

Perdeu de forma esmagadora porque o seu exército concentra centenas de milhares de palestinos em áreas cada vez menores, rotuladas como zonas humanitárias seguras, antes de bombardeá-las. Porque milhares de pessoas tornadas permanente deficientes e crianças desacompanhadas estão presas naquelas áreas.

Porque ali estão se acumulando montanhas de lixo e a única maneira de eliminá-las é queimá-las, liberando emissões tóxicas. Porque rios de esgoto e excrementos escorrem pelas ruas.

Porque quando a guerra acabar, as pessoas voltarão para as casas em ruínas cheias de bombas não explodidas e o solo estará saturados de substâncias nocivas. Porque milhares de pessoas sofrerão de doenças crônicas.

Porque muitas daquelas corajosas equipes médicas da Faixa de Gaza, homens e mulheres, médicos, enfermeiros, motoristas de ambulância e paramédicos (e sim, mesmo aqueles que apoiavam o Hamas ou recebiam o seu salário do seu governo) foram mortos pelas bombas e pelos tiros de canhão de Israel.

Porque as crianças terão perdido anos preciosos de estudo. Porque os livros e os arquivos públicos e privados acabaram em chamas e os manuscritos, desenhos e bordados dos artistas de Gaza estarão perdidos para sempre.

Porque é impossível imaginar o dano psicológico infligido a milhões de pessoas.

A derrota consistirá no fato de um Estado que se considera herdeiro das vítimas do genocídio realizado pelos nazistas ter produzido este inferno em menos de nove meses, sem qualquer sinal de fim. Chamem isso de genocídio. Ou não chamem isso de genocídio. O fracasso estrutural não reside no fato dessa palavra ter sido agora associada ao nome de Israel nas denúncias apresentadas pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça. O fracasso reside na recusa da maioria dos israelenses de ouvir os sinais de alarme daquele recurso. Eles continuaram a apoiar a guerra, fazendo com que aquela denúncia se tornasse uma profecia.

A derrota está nas universidades do país, onde se formaram juristas que justificam como “proporcional” todo bombardeio que mata crianças.

São eles que fornecem aos comandantes um colete à prova de balas, repetindo o clichê "Israel respeita o direito internacional, tomando cuidado para não prejudicar os civis” sempre que é dada a ordem de expulsar a população.

As caravanas de deslocados, a pé, com carroças, com caminhões carregados de pessoas e colchões, com as cadeiras de rodas que transportam pessoas idosas ou amputadas são um fracasso para o sistema de educação do estado judaico, pelas suas faculdades de direito e pelos seus departamentos de história. Esta derrota é também um fracasso da língua hebraica: a expulsão tornou-se “evacuação”; uma blitz militar é “uma atividade”; o bombardeio de bairros inteiros é “um bom trabalho dos nossos soldados”.

A natureza monolítica de Israel é outra razão e mais uma demonstração da derrota. A maior parte da opinião pública israelense judaica, incluindo os opositores de Benjamin Netanyahu, é prisioneira da ideia de que uma vitória total deve ser a resposta ao massacre de 7 de outubro.

É verdade, o Hamas cometeu ações horríveis: não há palavras para o sofrimento dos reféns e das suas famílias. É verdade, ter transformado Gaza num enorme depósito de armas prontas para o uso é exasperante.

Mas a maior parte dos judeus israelenses ficou cega pela sede de vingança. A recusa de ouvir e saber está no DNA desta derrota. Os nossos comandantes oniscientes não apenas não ouviram as soldados de reconhecimento que deram o alarme sobre um possível ataque, mas acima de tudo não foram capazes de ouvir os palestinos.

As sementes desta derrota estão naqueles manifestantes que protestam contra a reforma da justiça israelense, mas hesitam em admitir que não pode haver democracia sem pôr fim à ocupação dos territórios palestinos. É um fracasso já escrito nos primeiros dias após 7 de outubro, quando qualquer um que tentasse apontar o “contexto” era considerado um traidor ou um apoiador do Hamas. Aqueles traidores eram os verdadeiros patriotas, mas a derrota também é deles.

 

¨      Gaza, o salvável é ainda salvável? Manifesto contra a guerra na Faixa de Gaza

"Há meses, a resposta de Israel à agressão do Hamas transformou-se numa guerra de extermínio contra o povo palestino. A ação do governo Netanyahu está infligindo um vulnus ao país que pesará por gerações", afirma o manifesto, assinado por várias personalidades contra a guerra na PalestinaFaixa de Gaza e Cisjordânia

<><> Eis o manifesto.

O nível de violência e crueldade na Palestina, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia há muito excedeu os limites. Havíamos nos expressado em janeiro, por ocasião do Dia da Memória, e voltamos a fazê-lo, cinco meses depois, porque a inércia e a indiferença diante do massacre da população palestina dizimada e faminta são insuportáveis.

Há meses, a resposta de Israel à agressão do Hamas transformou-se numa guerra de extermínio contra o povo palestino. A ação do governo Netanyahu está infligindo um vulnus ao país que pesará por gerações.

O próprio nome de Israel, já comprometido, desperta agora crescente hostilidade e desprezo no mundo, cria isolamento e insegurança e fomenta o antissemitismo.

Acreditamos que agora, mais do que nunca, cabe aos judeus da diáspora e a qualquer um que se preocupe com o futuro de Israel e dos palestinos apoiar as mulheres e os homens que em Israel, há semanas, vêm agora se mobilizando não só pela libertação dos reféns, mas também pedindo a demissão do governo de Netanyahu. Apoiamos os israelenses que querem sair do túnel de massacre e destruição para o qual o país foi arrastado.

Que cesse o fogo imediatamente e seja adotado um plano para pôr um fim aos sofrimentos, agora.

 

Fonte: Domani/Internazionale/Il Manifesto - tradução de Luisa Rabolini, para IHU

 

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