Davide Assael:
Para além da retórica de 7 de outubro. O conflito institucional se reabre em
Israel
Em Israel,
parece estar se reacendendo o conflito entre os poderes do Estado, que já
imobilizou o país nos meses anteriores a 7 de outubro. O embate interno reflete diferentes concepções
do judaísmo. Espera-se que ninguém use a fronteira Norte como possível rota
de fuga.
Primeiro
de tudo a intimação da Corte Suprema ao governo para resolver a
controversa questão do alistamento militar, do qual estão atualmente isentos os
alunos das yeshivòt (escolas rabínicas), que vivem de subsídios
estatais para ter tempo para estudar a Torá.
Segundo
a antiga tradição de “não antecipar o fim” prevista pelas doutrinas
cabalistas antissionistas, que incentivam a se dedicar ao estudo para
estar preparados para a chegada do messias, evitando qualquer ação
política que possa acelerar indevidamente os tempos.
Instâncias
representadas no atual governo pelo partido Yahadut HaTorah e
pelo sefardita Shas, que já teve que passar pela vergonha de ver
seu líder Aryeh Deri cair dos cargos governamentais,
considerado, sempre pela Corte, inadequado para desempenhar as funções que lhe
foram atribuídas por Benjamin Netanyahu.
·
O confronto com o exército
Agora
também o conflito com o exército, que decidiu uma pausa humanitária diária de
algumas horas para implementar a entrada das ajudas humanitárias, de acordo com
os desejos do aliado estadunidense, dos países árabes, com quem já se discute o
pós-guerra, e do Tribunal Penal Internacional liderado por Karim Khan.
Inútil
contornar a situação, o conflito institucional se reabriu em Israel, já
abundantemente antecipado pela retomada das manifestações antigovernamentais,
que viram as antigas partes contrapostas reunirem-se em torno do tema dos
reféns e da responsabilidade pela guerra.
Assim
cai o manto retórico que indicava o 7 de outubro como um momento de
reconstituição da unidade nacional perdida durante os meses quentíssimos da
reforma judiciária. Assim como era verdade que o conflito social anterior,
incluindo as manifestações antigovernamentais dos líderes da polícia nacional e
a recusa dos reservistas em responder à convocação do estado, comportasse uma
ameaça à defesa do país, assim como era uma narrativa superficial e consoladora
a ideia de que a inevitável compacidade, típica do Estado judeu nos momentos de
emergência, sobre a necessidade de um a resposta militar ao Hamas,
pudesse reparar as fraturas que, na realidade, representam dados culturais
profundos aberto não há anos, não há décadas, mas há séculos, escondendo uma
relação que nunca foi completamente resolvida entre o judaísmo e a modernidade.
·
Duas partes inconciliáveis
Dificuldades
que se transferiram para dentro das fronteiras do novo estado fundado em 1948.
Em Israel se opõem duas partes que parecem inconciliáveis: de um
lado, uma galáxia tradicionalista-ortodoxa, na qual desempenha um papel
cada vez mais relevante um componente messiânico, e um ligado aos ideais
liberais e aos movimentos de emancipação europeus, que a própria cultura
judaica contribuiu para fundar e desenvolver.
Não
é por acaso que existe uma tese filosófica segundo a qual a modernidade é
judaica, tantos são os autores e as autoras judeus que moldaram o imaginário
cultural entre os séculos XIX e XX, no momento em que o judaísmo saiu
dos guetos.
Tese
ainda mais evidente no ano kafkiano que estamos vivendo. Em todo esse cenário bastante fragmentado,
se insere a conspícua minoria árabe, que, como o atual conflito está
demonstrando, já decidiu que sua conveniência é ficar com os dois pés
firmemente plantados nas fronteiras do estado judaico, que lhe garante um
padrão de vida impensável em qualquer país árabe.
Sem
que, infelizmente, essa escolha se traduza numa ativa participação política,
embora a participação no governo anterior da chapa árabe Ra'am não
seja um dado negligenciável. Movimento míope, sem dúvida alimentado pelo clima
de desconfiança que rodeia hoje os árabes israelenses, porque seria a fatia da
população mais afetada por uma virada tradicionalista e autoritária do país.
·
A queda de Netanyahu
A
reabertura do conflito entre os poderes do Estado é mais um elemento para
esperar a queda de Netanyahu, que mais do que qualquer outra pessoa
alimentou a divisão interna para fins eleitorais, já a partir da oposição
a Oslo.
Mas Bibi,
mesmo lidando com turbulências na maioria, sempre se reergue quando parece
estar contra a parede e o aumento das tensões no Norte não deixa entrever nada
de bom sobre a forma como ele pretende se desvincular de mais um aperto. Mesmo
que pessoalmente eu não acredite num prolongamento do conflito, corre-se o
risco de seguir a clássica partitura do “tanto trovejou até que choveu!”.
¨
A verdadeira derrota
de Israel. Por Amira Hass
O
Estado judaico perdeu porque os seus políticos estão levando à fome dois milhões e trezentos mil seres humanos e porque as doenças
estão se disseminando em Gaza. Israel foi derrotado, e a sua
derrota continua.
E
não porque, após nove meses de guerra, o Hamas ainda não tenha sido neutralizado. O símbolo da derrota
aparecerá para sempre ao lado daqueles do judaísmo, como
a menorá e a bandeira de Israel, porque os líderes, os
comandantes e os soldados israelenses mataram e feriram milhares de palestinos, semeando desolação na Faixa de Gaza. Porque a Força Aérea
bombardeou edifícios cheios de crianças, mulheres e idosos. Porque os israelenses acreditam que não há alternativa.
O
Estado judaico perdeu porque os seus políticos estão levando à fome e à sede
dois milhões e trezentos mil seres humanos, porque espalham-se
em Gaza a sarna e as inflamações intestinais.
Perdeu
de forma esmagadora porque o seu exército concentra centenas de milhares de
palestinos em áreas cada vez menores, rotuladas como zonas humanitárias seguras, antes de bombardeá-las. Porque milhares de pessoas
tornadas permanente deficientes e crianças desacompanhadas estão presas
naquelas áreas.
Porque
ali estão se acumulando montanhas de lixo e a única maneira de eliminá-las é
queimá-las, liberando emissões tóxicas. Porque rios de esgoto e
excrementos escorrem pelas ruas.
Porque
quando a guerra acabar, as pessoas voltarão para as casas em ruínas cheias de
bombas não explodidas e o solo estará saturados de substâncias nocivas. Porque
milhares de pessoas sofrerão de doenças crônicas.
Porque
muitas daquelas corajosas equipes médicas da Faixa de Gaza, homens e mulheres, médicos, enfermeiros, motoristas de
ambulância e paramédicos (e sim, mesmo aqueles que apoiavam
o Hamas ou recebiam o seu salário do seu governo) foram mortos pelas
bombas e pelos tiros de canhão de Israel.
Porque
as crianças terão perdido anos preciosos de estudo. Porque os livros e os
arquivos públicos e privados acabaram em chamas e os manuscritos, desenhos e
bordados dos artistas de Gaza estarão perdidos para sempre.
Porque
é impossível imaginar o dano psicológico infligido a milhões de
pessoas.
A
derrota consistirá no fato de um Estado que se considera herdeiro das vítimas
do genocídio realizado pelos nazistas ter produzido este
inferno em menos de nove meses, sem qualquer sinal de fim. Chamem isso de genocídio.
Ou não chamem isso de genocídio. O fracasso estrutural não reside no fato dessa
palavra ter sido agora associada ao nome de Israel nas denúncias apresentadas pela África do Sul
no Tribunal Internacional de Justiça. O
fracasso reside na recusa da maioria dos israelenses de ouvir os sinais de
alarme daquele recurso. Eles continuaram a apoiar a guerra, fazendo com que
aquela denúncia se tornasse uma profecia.
A
derrota está nas universidades do país, onde se formaram juristas que
justificam como “proporcional” todo bombardeio que mata crianças.
São
eles que fornecem aos comandantes um colete à prova de balas, repetindo o
clichê "Israel respeita o direito internacional, tomando cuidado para
não prejudicar os civis” sempre que é dada a ordem de expulsar a população.
As
caravanas de deslocados, a pé, com carroças, com caminhões carregados de pessoas e
colchões, com as cadeiras de rodas que transportam pessoas idosas ou amputadas
são um fracasso para o sistema de educação do estado judaico, pelas suas
faculdades de direito e pelos seus departamentos de história. Esta derrota é
também um fracasso da língua hebraica: a expulsão tornou-se “evacuação”;
uma blitz militar é “uma atividade”; o bombardeio de bairros inteiros é “um bom
trabalho dos nossos soldados”.
A
natureza monolítica de Israel é outra razão e mais uma demonstração
da derrota. A maior parte da opinião pública israelense judaica, incluindo os
opositores de Benjamin Netanyahu, é prisioneira da ideia de que uma vitória total deve ser a
resposta ao massacre de 7 de outubro.
É
verdade, o Hamas cometeu ações horríveis: não há palavras para o
sofrimento dos reféns e das suas famílias. É verdade, ter
transformado Gaza num enorme depósito de armas prontas para o uso é
exasperante.
Mas
a maior parte dos judeus israelenses ficou cega pela sede de vingança. A recusa
de ouvir e saber está no DNA desta derrota. Os nossos comandantes oniscientes
não apenas não ouviram as soldados de reconhecimento que deram o alarme sobre
um possível ataque, mas acima de tudo não foram capazes de ouvir os palestinos.
As
sementes desta derrota estão naqueles manifestantes que protestam contra a
reforma da justiça israelense, mas hesitam em admitir que não pode
haver democracia sem pôr fim à ocupação dos territórios palestinos. É
um fracasso já escrito nos primeiros dias após 7 de outubro, quando
qualquer um que tentasse apontar o “contexto” era considerado um traidor ou um
apoiador do Hamas. Aqueles traidores eram os verdadeiros patriotas, mas a
derrota também é deles.
¨
Gaza, o salvável é
ainda salvável? Manifesto contra a guerra na Faixa de Gaza
"Há
meses, a resposta de Israel à agressão
do Hamas transformou-se numa guerra de
extermínio contra o povo palestino. A ação do governo Netanyahu está
infligindo um vulnus ao país que pesará por gerações",
afirma o manifesto, assinado por várias personalidades contra a guerra
na Palestina, Faixa de Gaza e Cisjordânia
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Eis o manifesto.
O
nível de violência e crueldade na Palestina,
na Faixa de Gaza e na Cisjordânia há muito excedeu os limites. Havíamos nos expressado em
janeiro, por ocasião do Dia da Memória, e voltamos a fazê-lo, cinco meses
depois, porque a inércia e a indiferença diante do massacre da população
palestina dizimada e faminta são insuportáveis.
Há
meses, a resposta de Israel à agressão do Hamas transformou-se
numa guerra de extermínio contra o povo palestino. A ação do governo Netanyahu está
infligindo um vulnus ao país que pesará por gerações.
O
próprio nome de Israel, já comprometido, desperta agora crescente
hostilidade e desprezo no mundo, cria isolamento e insegurança e fomenta o
antissemitismo.
Acreditamos
que agora, mais do que nunca, cabe aos judeus da diáspora e a qualquer um que
se preocupe com o futuro de Israel e dos palestinos apoiar as
mulheres e os homens que em Israel, há semanas, vêm agora se mobilizando
não só pela libertação dos reféns, mas também pedindo a demissão do governo de Netanyahu.
Apoiamos os israelenses que querem sair do túnel de massacre e destruição para
o qual o país foi arrastado.
Que
cesse o fogo imediatamente e seja adotado um plano para pôr um fim aos
sofrimentos, agora.
Fonte:
Domani/Internazionale/Il Manifesto - tradução de Luisa Rabolini, para IHU
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