Leandro
Barbosa: Comunidades pobres de Porto Alegre ainda vivem o horror das enchentes
DESDE
QUE AS ENCHENTES tomaram o Rio Grande do Sul no início
de maio, Margarete da Silva Tavares, 65 anos, está impedida de voltar para
casa, na Ilha do Pavão, em Porto Alegre. Sua casa de palafitas próxima ao Rio
Guaíba foi coberta pela água e ficou inabitável. Foi só um mês depois desta
tragédia que ela conseguiu voltar para o lugar que um dia chamou de lar.
A
esperança era encontrar algo que pudesse salvar e que amenizasse o custo do
recomeço. “Tentar salvar uma coisinha ou outra, para tentar economizar na
reconstrução de tudo”, ela me contou. Ao apresentar o que restou da sua casa ao
Intercept, Margarete recepcionou a reportagem dizendo: “bem-vindos ao
horror”.
Porto
Alegre ainda é a cidade do estado com maior número de desabrigados. Segundo
dados do governo do Rio Grande do Sul, cerca de 2 mil pessoas estão fora de
suas casas. Para atendê-las, a cidade dispõe de 41 abrigos. Contudo, para
Margarete, ir para um abrigo seria abandonar o pouco que pode salvar e deixar à
mercê de ladrões, sem ter expectativa alguma de que o governo do Rio Grande do
Sul garanta a ela um novo lar.
Por
enquanto, a expectativa é consertar as madeiras quebradas para voltar a viver
na única opção de moradia que ela tem e sair da beira da BR-116, onde armou uma
barraca para ficar com seus filhos e netos. “Eu quero sair daqui. Mas pra onde?
Se o governo me garantir um lugar que eu tenha espaço para plantar meu pé de
alface, eu vou. Agora o que eu tenho é isso aqui”, afirma Margarete, enquanto
mostra o lugar coberto de lama.
Seu
vizinho, Ademir Soares Rodrigues, 70 anos, vive o mesmo drama à beira da
estrada. O barraco de madeira que morava com a esposa, filha, genro e os netos
foi destruído. Dos escombros que restaram, ele junta o que pode. Pregos,
brinquedos, talheres, tudo que é possível reutilizar.
Ademir
vive angustiado desde de setembro de 2023, quando a primeira enchente das três
que acometeram o RS aconteceu – as seguintes foram em novembro e maio.
Quem o conhece diz que ele não é mais o mesmo e que está cada vez mais magro.
“Como é que um velho como eu recomeça a vida?”, questiona.
Caminhões-pipa
chegaram recentemente para as famílias à beira da BR. Mas elas seguem sem
banheiros químicos, defecando à beira do Guaíba. Energia elétrica puxam de um
poste – o fio utilizado está exposto no chão do acampamento.
A
comida é feita na lenha, num fogão improvisado com os blocos das casas que
caíram com a força da correnteza. Alimentos e água potável são doados pela
sociedade. Já são quase dois meses nestas condições.
“Isso
aqui é área de risco. Entra um caminhão desgovernado aqui, mata meio mundo [de
gente]. Se a polícia mandar todo mundo sair, não tem o que fazer. É baixar a
cabeça e enfrentar aquela lama [nas casas]. A vontade que dá é de pegar uma
muda de roupa e largar faixa afora. Tá ruim mesmo!”, lamenta Ademir.
O Intercept
Brasil questionou a Secretaria de Desenvolvimento Social de Porto Alegre
sobre a falta de assistência às famílias da Ilha do Pavão. Não houve resposta.
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Periferia da periferia
Em
outro bairro de Porto Alegre, o Sarandi, na zona norte da cidade, fui recebido
com um “bem-vindos ao inferno” pelo líder do Quilombo dos Machado, Luis
Machado. Definir onde se mora com as palavras horror e inferno escancara o
abandono das comunidades que, até agora, seguem soterradas de lixo e
entulho.
Segundo
o Painel interativo sobre o impacto da cheia do Guaíba em Porto Alegre,
organizado pela prefeitura, o Sarandi foi o bairro mais atingido da cidade, com
26.042 pessoas afetadas pela inundação do rio. As águas ultrapassaram os
telhados, subindo mais de um metro acima do limite das casas. Com isso, as ruas
estão tomadas pelos entulhos retirados das casas.
“A
grande maioria do Sarandi é a periferia. Este povo se reconstruir sozinho
diante de tamanha destruição é praticamente impossível. Só vamos conseguir
fazer isso se estivermos juntos, já que a omissão do governo é um fato. Não se
tem um olhar fixo do estado pelo Sarandi”, afirma Machado.
O
quilombola define o interior mais afetado da comunidade como periferia da
periferia. O lugar, segundo ele, esquecido pela prefeitura. “A situação ainda
está bem grave ali. A gente entende que tem vários pontos para limpar, mas o
povo ali pra dentro da vila tá esquecido”. “Há vários lugares ali que ainda não
dá para passar [por causa dos entulhos]”, denuncia Luís.
O
Departamento Municipal de Limpeza Urbana informou que iniciou a limpeza no
Sarandi desde que as águas recuaram. Contudo, pontuou que inicialmente foram
priorizadas as vias com maior fluxo de trânsito, a fim de liberar a circulação
de veículos, ambulâncias e dos equipamentos necessários para a retirada dos
lixos e entulhos.
O
órgão ainda informou que foi iniciado um mutirão de limpeza das vias internas
do bairro e que a população pode acompanhar o roteiro diariamente no site e
redes sociais da prefeitura.
¨
Porto Alegre: da
catástrofe climática a uma reconstrução catastrófica? Por Erick Kayser
As
chuvas e enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul neste último mês de maio
produziram a maior catástrofe climática brasileira. O grande volume de chuvas
provocou rapidamente inundações, alagamentos e um rastro de destruição ainda
por se mensurar em sua totalidade e prolongamento. A singularidade deste evento
resultou em 175 vidas perdidas, 478 municípios afetados e aproximadamente meio
milhão de atingidos e deslocados climáticos – entre desabrigados, desalojados
e, eventualmente, “refugiados” – em todo o estado.
Em
Porto Alegre, o volume das águas do Guaíba foi crescendo ininterruptamente ao
longo de dias, ao ponto de ultrapassar a marca histórica da enchente de 1941 –
até então a maior da capital. Com o Centro Histórico e inúmeros bairros
alagados, a tragédia ambiental se estendeu por mais de trinta dias, sendo que
apenas no início de junho a cidade voltou a ter sua situação parcialmente
normalizada. Em termos gerais, esta foi uma tragédia simultaneamente abrupta e
gradual, mas não imprevisível.
O
mundo já vem sentindo os impactos das mudanças climáticas e Porto Alegre não é
exceção a essa realidade. Em 2015, por exemplo, as águas do Guaíba chegaram ao
muro da Mauá. Este fenômeno se repetiu em setembro e novembro do ano passado,
além dos violentos temporais de janeiro ocorridos em 2016 e 2024, evidenciando
um padrão crescente de eventos climáticos extremos na região. As cheias do
último ano serviram como um alerta ainda mais grave: o sistema de combate à
enchente – que inclui bombas, comportas, diques, além do muro da Mauá –
projetado para proteger a cidade contra inundações, mostrou-se falho e
necessitando de urgente manutenção. Mesmo com este histórico recente, o governo
local não providenciou nenhuma política preventiva quanto às causas e efeitos
de eventos climáticos.
Não
foi por ausência de alertas que políticas ambientais e climáticas preventivas
não foram concebidas e implementadas. Como apontado por inúmeros técnicos e
especialistas, tivesse o sistema passado pelas manutenções necessárias, os
efeitos das cheias poderiam ter sido evitados ou minimizados. Este imobilismo
ocorre tanto por negacionismo diante das mudanças climáticas, quanto pelo
desmonte da administração pública. Governada nos últimos anos pela lógica
dogmática implacável das políticas neoliberais, Porto Alegre perdeu capacidade
técnica para execução de políticas públicas. A contínua substituição de
profissionais concursados por trabalhadores terceirizados e precarizados, levou
a uma fragilidade estrutural da prefeitura em responder a muitas necessidades
básicas, que se tornam mais evidentes em um momento de crise como este.
É
verdade que muitas das causas da crise climática demandam soluções globais.
Seguramente um conjunto de ações locais, um tanto desarticuladas ou
desorientadas, não será capaz de superar os impasses abertos na era do
Antropoceno, onde a humanidade reconhece os efeitos destrutivos de suas ações
nos últimos séculos em uma escala geológica no planeta, colocando em risco a
própria continuidade da vida humana e de outras espécies. Reconhecer a grandeza
da escala do problema não deve conduzir a uma atitude de paralisia, mas a um
aumento da responsabilidade coletiva e seu sentido de urgência, para o qual
ações locais são possíveis e necessárias.
O
processo de reconstrução deveria ser um momento de ajuste de rota. Preparar a
cidade para a nova conjuntura climática demanda políticas ambientais que
deveriam minimamente partir de um tripé formado por ações de proteção,
adaptação e mitigação. Pouco ou nada disso se vê nos planos de reconstrução
apresentados até agora, restando a mera reprodução do que já deu errado. Pior
ainda, alguns sinais indicam um possível agravamento do cenário.
O
governador Eduardo Leite e o prefeito Sebastião Melo adotaram uma estratégia
comum de contratarem empresas estrangeiras de consultoria, como a Alvarez &
Marsal (A&M) e a Mckinsey, com o fim de orientar seus planos de
reconstrução e auxiliar seus governos a se desresponsabilizarem dos previsíveis
processos de “litigância climática” que
se abrirão. Conhecida pela participação no processo de reconstrução de New
Orleans, nos Estados Unidos, após a passagem arrasadora do furação Katrina em
2005, a A&M se especializou em um tipo de “capitalismo de desastre”, como
sugeriu Naomi Klein no livro A doutrina do choque. Isso ocorre
quando gestores privados e públicos se utilizam de experiências de choque –
como catástrofes – para fazer avançar oportunidades de negócios de maneira que,
em situações de normalidade, não seria possível.
Caso
prosperem projetos baseados em grandes obras, como enormes canais de drenagem e
barragens para reter e desviar águas dos rios, implicando amplas alterações no
ambiente, temos o risco de intensificar a degradação ambiental, tornando a
própria reconstrução um vértice de catástrofes. Como apontam grupo de
professores do Instituto de Biocências da UFRGS, em recente carta publicada na
revista científica Nature, devemos
ir para um caminho oposto a este: “O momento em que vivemos exige mais que a
redução dos impactos de nossas atividades e a proteção dos ambientes naturais
que nos restam, exige também a recuperação de áreas degradadas e ocupadas
inadequadamente”. Somente com políticas ambientais decididas de mitigação,
adaptação, proteção, mas também de recuperação, poderemos ter uma Porto Alegre
menos vulnerável a eventos climáticos.
Fonte:
The Intercept/Jornal GGN
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