Luís
Nassif: O lado obscuro e o lado óbvio do Plano Real
A
partir de abril de 1995 tornei-me um crítico do Plano Real, especialmente da
mistura mortal de câmbio e juros. Não havia lógica em jogar o câmbio 20% abaixo
do Real e taxas de juros de 45% ao ano.
Os
resultados do balanço de pagamentos e da balança comercial do Brasil de 1995 a
1999 mostram importantes aspectos econômicos do país durante esse período. Já
em outubro de 1994, o país saía de um saldo comercial positivo para um
negativo. E eram apenas 3 meses de plano. Esse déficit foi de aproximadamente
419 milhões de dólares. E foi comemorado por Pedro Malan, dizendo que abria
espaço para a entrada de investimentos estrangeiros.
Não
havia lógica na comemoração. Como um país, com déficits externos estruturais,
fabricava um déficit de tal envergadura, apenas três meses após o lançamento de
um plano de estabilização, e as autoridades comemoravam?
Na
época, envolvi-me em uma discussão pesada sobre as taxas de juros e o
trancamento do crédito no país. Nas muitas palestras que fazia pelo interior,
em todo lugar havia queixas em relação à situação da economia e a interrogação:
será que está ruim só aqui?, já que a cobertura intensa da mídia apresentava um
quadro cor-de-rosa para o país.
Em
abril e maio de 1995 passei a criticar a intensidade do arrocho, que estava
produzindo uma quebradeira por todo o país. Na época, o governo reagiu de duas
maneiras. A primeira foi através de um dos colunistas da página 2, Gilberto
Dimenstein, que tentava rebater minhas previsões de quebradeira com análises
fornecidas, em off, por Cláudio Considera, economista do IPEA.
Tanto
Gilberto quanto Márcio Moreira Alves – que tinha coluna em O Globo -.
insinuavam que as críticas se deviam a lobby da FIESP (Gilberto) ou de Naji
Nahas (Márcio). Certa vez, almoçando com Delfim Neto, ele sugeriu que eu
contra-atacasse, chamando-os de “chapas brancas”. Recusei, porque significaria
levar a discussão a um nível não técnico.
Minha
análise é que a Fazenda e o Banco Central tinham errado na estratégia. No
segundo semestre de 1994, por conta da estabilização da inflação, houve uma
explosão inicial no mercado de consumo. Com o câmbio em níveis irreais, em
poucos meses ocorreu a reversão do mercado. No curto período de boom, empresas
se endividaram, para aumentar o capital de giro, e pessoas físicas se
endividaram com o crédito pessoal. O correto teria sido uma transição gradativa
para o patamar anterior, dando tempo de renegociar dívida e voltar ao patamar
de estoque inicial.
Em
vez disso, aplicou-se um choque – da mesma maneira que Joaquim Levy em 2015. O
resultado foi o efeito engarrafamento: empresas que corriam na frente batiam no
muro da falta de crédito, e as de trás provocavam o engavetamento.
Foi
um período duro de discussões, onde o irrealismo da mistura câmbio-juros foi
explosivo. Nas discussões, André Lara Rezende, que tinha uma coluna quinzenal
na Folha, escreveu uma sobre os “palpiteiros”, aqueles que se baseavam na
análise empírica para questionar a alta ciência.
Rebati
que não tinha lógica uma empresa como o Atacado Martins, com R$ 5 bilhões de
faturamento, registrar lucro de R$ 5 milhões, enquanto pequenas distribuidoras
de títulos da Paulista, com capital de R$ 15 milhões, registrar lucro de R$ 140
milhões. Ele sabia a que eu me referia.
O
jogo começou a ficar curioso quando muitos leitores passaram a escrever para a
Folha, para saber onde estava a bonança apregoada pelo jornal. Gilberto ameaçou
recuar em seu otimismo, mas uma pequena provocação minha fê-lo retornar à
posição anterior.
Até
que em um almoço do Conselho Editorial da Folha, Otávio Frias me questionou
sobre minhas projeções. Ele disse que tinha conversado com Malan que alegou que
no máximo o PIB ia perder 1 ponto de crescimento. Fiz um desafio:
• Peça para alguém ligar para meia
dúzia de prefeituras do interior e perguntar como está a economia.
À
tarde viajei para o estado do Rio, para uma palestra. No caminho, recebo
ligação do Frias:
• Você tem razão, a situação está
complicada.
A
crise tinha chegado no interior, por conta da âncora verde (o câmbio
superapreciado comprometendo as exportações agrícolas) e em breve chegaria nas
capitais.
Tentei
encontrar uma saída honrosa para Gilberto. Uma fonte minha, de uma consultoria,
depois de admitir (em off) que o quadro estava complicado, deu uma entrevista a
Gilberto dizendo que estava tudo bem. Propus, então, ao Otávio Filho, uma saída
honrosa para Gilberto. Nós, ambos, denunciaríamos o jogo da testemunha e
celebraríamos a paz, sem vitoriosos nem derrotados.
Otávio
Filho provavelmente supondo que eu estivesse pedindo água, mandou prosseguir a
batalha. À época, Secretaria de Redação da Folha, a Eleonora de Lucena deve se
lembrar desse episódio. Apenas alguns dias depois, Fernando Henrique deu uma
coletiva onde admitiu a gravidade da situação. Na época, eu tinha um programa
na Record e mandei minha coluna para a Folha mostrando como a teimosia cega é
inimiga do jornalismo e mencionando Gilberto.
Recebi
um telefonema do velho Frias, a pedido do filho, solicitando que mudasse a
coluna para não crucificar uma das estrelas do jornal.
Logo
depois de FHC, o Secretário de Política Econômica, José Roberto Mendonça de
Barros, me telefonou admitindo o erro. Foi um erro que custou a carreira
política de dois governadores: Eduardo Azeredo, em Minas, e Antonio Brito, no
Rio Grande do Sul.
No
ano anterior, o ICMS teve aumento recorde. Em 1995, recém-eleitos, e supondo
que o crescimento do ICMS se repetiria, distribuiram aumentos para o
funcionalismo. Lembro-me de participar de um programa na rádio Bandeirantes, de
manhã, e de uma entrevista ao vivo com Azeredo, contando seus feitos. Indaguei
se não tinha receio da economia não repetir 1994. Disse que não, pois contava
com a assessoria de uma consultoria prestigiada no mercado. Era a mesma que
sustentava os sonhos da equipe econômica.
Ali,
o país matou a grande chance que teve de se tornar uma potência, caminho
trilhado pela China e pela Índia em seguida. A multidão de novos consumidores,
que ascendera com o fim da hiperinflação, voltou rapidamente para o gueto do
sub-consumo, houve uma quebradeira generalizada no país, venda irresponsável de
estatais, como o desmonte do sistema Telebras.
E
uma dinheirama sendo canalizada para o mercado financeiro, com as mais altas
taxas de juros da história. Em 1995, a taxa média anual da Selic foi de 42%; em
1996, de 27%; em 1997, de 25%; em 1998, de 29%.
• O plano Real e o Encilhamento
O
câmbio do Real sempre foi um mistério para mim. Só por volta do ano 2.000
resolvi investigar mais a sério.
A
partir dos anos 90, após ler o livro “América Latina, Males de Origem”, de
Manoel Bomfim, passei a fazer uma análise comparativa da história econômica e
política do Brasil – e do mundo -, no sentido espiral, com cem anos de
distância. Ou seja, a história é uma espiral, que sempre voltava ao mesmo
lugar, alguns pontos mais alto, como ensinava o maestro e filósofo Joachim
Koellreutter.
Comecei
a escrever uma série de artigos, comparando FHC a Campos Salles, e vendo outras
coincidências centenárias. Aí me deu um click, com o Encilhamento, a política
monetária desastrosa aplicada por Rui Barbosa, primeiro ministro da Fazenda da
República, que provocou uma hecatombe, acabou com o governo de Deodoro da
Fonseca levando ao endurecimento com Floriano Peixoto.
Lembrei-me
que em dezembro de 1994, em um evento no Banco Central no Rio de Janeiro,
Gustavo Franco me havia presenteado com um livro escrito por ele sobre o tema,
vencedor do prêmio BNDES de tese acadêmica.
Não
encontrei o livro em minha estante e escrevi a ele, pedindo uma cópia. Sagaz
como sempre, ainda mais depois de meus
escritos sobre Campos Salles e FHC, Gustavo Franco matou a charada:
• Não vou mandar não, porque você quer
me fuder!
Por
grande coincidência, no dia seguinte achei o livro na minha estante.
Era
um ângulo interessante de análise. Franco mostrava todos os erros cometidos por
Rui Barbosa, mostrava suas tacadas para enriquecer e se preocupava
essencialmente com uma questão: o que faltou para o golpe dar certo.
Relembrando,
havia uma reação no mundo para substituir o padrão ouro pelo papel moeda. O
último Ministro da Fazenda do Império, Afonso Celso de Assis Figueiredo,
Visconde Ouro Preto, tentou introduzir o papel moeda. Sofreu enormes críticas
de Rui Barbosa, através de coluna que mantinha no Jornal do Brasil. Escolhido
Ministro da Fazenda de Deodoro, a primeira atitude de Rui foi repetir o plano
de Ouro Preto, mas com uma diferença. O novo sistema exigia um banco para
imprimir moeda. Ouro Preto escolheu o Banco do Brasil. Assumindo o Ministério,
Rui escolheu o Conselheiro Mayrink. Ele teria o monopólio de imprimir moeda, em
troca da contrapartida de reduzir a dívida pública – o que nunca fez.
Em
troca do benefício, tornou Rui Barbosa sócio de muitas de suas empresas.
Logo
em seguida, houve a falência do Baring Brothers & Co. com ampla atuação na
Argentina. A crise se espalhou pelo Brasil. A emissão descontrolada de moedas,
pelo Conselheiro Mayrink, havia promovido uma especulação inédita na Bolsa de
Valores do Rio. Rui vacilou entre salvar a economia e salvar sua sociedade com
Mayrink, e o resultado foi a bancarrota brasileira. Seu cunhado chamava cada
jogada de Rui de “tacada”.
Ali
estava a chave do jogo.
No
Cruzado – e nos planos anteriores – acompanhei as jogadas de alguns
formuladores, definindo regras de conversão de moeda que mudavam o jogo em
muitos mercados. Aí fui procurar na
história outros exemplos de troca de moedas, e as possibilidades de golpe que
abriam e me deparei com a história de John Law,
economista escocês, que convenceu a França a adotar o papel-moeda, para
financiar as guerras. Depois, montou a
Companhia do Mississippi, uma das mais valorizadas da Europa,
especulando com ações e prometendo enormes retornos aos investidores. E, como
todo grande especulador, quebrando após alguns anos.
Em
um primeiro momento, a “tacada” consistiu em só emitir reais para quem
trouxesse dólares no exterior. Foi a maneira de jogar a liquidez da economia
nas mãos dos banqueiros da Avenida Paulista – que ainda era o centro financeiro
de São Paulo.
Não
satisfeito com isso, resolveram dar a grande “tacada”, no mercado futuro de
câmbio. Em todo plano com âncora cambial, como foi o Real, o primeiro passo das
multinacionais é fazer “hedge”, comprando dólar, para se prevenir contra
eventual maxidesvalorização.
O
que os economistas do Real fizeram foi simples. O Real saia com a paridade de 1
x 1 com o dólar. Eles garantiam que não deixariam o dólar passar de R$ 1,00.
Mas, para baixo, podia cair quanto fosse. O que o mercado fez foi simples. Em
cima da taxa de juros, o mercado fazia a arbitragem. Ou seja, se eu vender o
dólar a, digamos, 90 centavos, o retorno da Selic me dará um ganho adicional
que compensará a queda do valor do dólar.
Com
o aparecimento dos déficits comerciais, entende-se a comemoração de Pedro
Malan. Precisava passar a impressão de que tudo estava nos conforme. Para
compensar o receio de uma explosão do câmbio, a Selic passou a ser aumentada
mensalmente, batendo em 47,47% em dezembro.
• Julho de 1994: 17,83%
• Agosto de 1994: 31,51%
• Setembro de 1994: 39,43%
• Outubro de 1994: 44,77%
• Novembro de 1994: 46,79%
• Dezembro de 1994: 47,47%
Para
confirmar a tese, marquei o almoço com o ex-presidente de um dos grandes bancos
estrangeiros da época. Ele abriu o jogo. Meses antes do Real, foi procurado por
Winston Frisch, espécie de economista auxiliar do grupo, contando qual seria a
estratégia do câmbio. Como na ponta comprada havia grandes multinacionais, era
relevante ter grandes players na ponta vendida. Aí, os bravos economistas do
Real foram buscar parceria com os grandes bancos internacionais.
O
ex-banqueiro disse que nunca ganhou tanto dinheiro na vida. Não ganhou mais
porque parou antes, com receio do Real explodir. Mas os economistas do Real
continuaram operando ainda no ano seguinte.
O
artigo de José Luiz Fiori na época, sobre a estratégia dos mercados para a
abertura financeira dos países periféricos, explica o pano de fundo dessa
operação.
Assim
como no Real, Rui Barbosa também tornou-se sócio de banqueiros ingleses, abriu
a área pública para um enorme endividamento externo – que ele combateria,
depois, na campanha civilista -, abrindo espaço para a invasão do país pelo
capital especulativo. E, depois, por décadas de economia estagnada. Tal e qual
o Real.
• O cartel da Faria Lima é identificado
nos EUA, por Luís Nassif
Robin
Brooks é professor sênior do Brookings Institution, principal think tank do
Partido Democrata. Anteriormente, foi economista-chefe do Instituto de Finanças
Internacionais, uma associação global que representa mais de 450 membros de
mais de 70 países. E foi também estrategista-chefe de câmbio Goldman Sachs.
No
X de hoje, ele traz mais evidências do poder de cartel da Faria Lima. Amparado
em gráfico, diz que todo movimento negativo do mercado é sempre liderado pelos
próprios residentes no Brasil. “A liderança política do Brasil não importa. Os
brasileiros odeiam o Brasil de qualquer maneira”.
Há
apenas uma incorreção na sua mensagem: os brasileiros, no caso, são os da
comunidade Faria Lima. É mais uma comprovação forte para o Ministério Público
de Contas anexar à preparação do processo contra a cartelização do mercado de
câmbio no país.
Obviamente
não se trata de gostar ou não do país. De um lado, é a comprovação enfática de
que esse grupo não partilha do sentimento de Nação. Mas o que está em jogo é a
manipulação de mercado, em movimento típico de cartel.
Ou
seja, tem-se um modelo de política monetária – ao menos no Brasil – que é
manipulada por um cartel. Trata-se de um fato objetivo, que compromete toda a
suposta ciência que sustenta essa loucura da taxa real de juros.
A
lógica é simples. Os bancos brasileiros e os estrangeiros têm o mesmo nível de
conhecimento sobre essa ciência abstrata que manipula conceitos como taxa de
juros neutra, PIB potencial etc. A economia não é ciência exata. É do ramo das
ciências humanas. Cada país tem suas características econômicas, seu perfil de
indexação, sua maior ou menor influência ao câmbio. Mas os cabeças de planilha
se valem das mesmas fórmulas para todos os países, os centrais e os
periféricos.
Se
não houvesse cartelização, tanto os fundos estrangeiros quanto os nacionais
teriam movimentos simétricos, de otimismo ou pessimismo, já que os fatos
analisados são os mesmos e o padrão de análise é idêntico. Mas, conforme
comprova Robin Broks, os movimentos de pessimismo são sempre comandados pelos
brasileiros.
Não
se trata apenas de um jogo entre vendidos e comprados – isto é, com lucros e
prejuízos sendo restritos ao mercado. Essa movimentação visa, fundamentalmente,
obrigar o Banco Central e o Tesouro a elevar as taxas de juros. E, com isso,
afeta toda a economia, tira dinheiro de quem toma crédito e repassa para quem
empresta, derruba a atividade produtiva, prejudica a geração de empregos.
E
tudo isso porque é um crime sem risco, sem castigo. De um lado, uma imprensa
que vive das falas dos sargentos Quinsan do mercado (para quem não se lembra,
era um ajudante de ordens do Golbery, tipo caricato; mas cada declaração sua
era atribuída a “fontes do Palácio” pelos setoristas). De outro, a
naturalização dessa manobra.
Desde
que mercado é mercado, os mais espertos criam movimentos de alta com um corte
mais à frente – por exemplo, um anúncio de reforma da Previdência, a
perspectiva de uma mudança na política fiscal. Quando o fato ocorre – ou deixa
de existir – há uma corrida. Os condutores da boiada já venderam suas ações e a
boiada sai correndo atrás do prejuízo.
Por
aqui, criou-se essa fábula das tais expectativas racionais. Ou seja, a corrida
da boiada é o fator fixo. As variáveis são as explicações para cada jogada. E a
brava mídia financeira aceita tudo, com todos os sargentos Quinsan sendo
tratados como general Golbery.
Por
tudo isso, o tema do momento é como enquadrar esses movimentos de mercado no
direito econômico, como formação de cartel, controle artificial de preços.
É
hora de abrir a caixa preta do Banco Central, mas com graça e arte para que os
terroristas não explodam uma bomba nas expectativas gerais.
Fonte:
Jornal GGN
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