sábado, 29 de junho de 2024

ESG e direitos humanos nas sociedades empresariais

As práticas de ESG (Enviromental, Social and Governance) pelas sociedades empresariais é um tema de grande interesse no mundo corporativo. Trata-se da busca de crescimento com adoção de regras de desenvolvimento sustentável e socialmente responsáveis, utilizando-se ainda de instrumentos de governança adequados. Atualmente, a responsabilidade corporativa tornou-se um valor fundamental na reputação das sociedades empresariais. Mas, afinal, em que consistem essas práticas?

Com efeito, o direito ao desenvolvimento, tal como definido pelo artigo 3º da Constituição Federal, possui algumas dimensões que devem ser aplicadas de forma concomitante: a dimensão econômica, que impõe práticas voltadas ao crescimento, ao progresso, à inovação, à tecnologia e à inserção global; a dimensão institucional, que diz respeito à governança, com a imposição de transparência, políticas anticorrupção, qualidade institucional e normas de integridade e inclusão;  e a dimensão social, que inclui programas sociais, respeito pelas diferenças, participação de todos os atores sociais e bem-estar.

É imperativa a conscientização de que desenvolvimento, justiça social e democracia, enquanto objetivos de uma sociedade como a brasileira, com um grau acentuado de desigualdade e problemas estruturais complexos, somente podem ser alcançados com a participação de todos os setores, inclusive as empresas. Não sem razão, são diversos os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) estabelecidos pelas Nações Unidas, no âmbito da Agenda 2030.

Assim, com relação aos mecanismos de governança, especificamente, é fundamental que as sociedades empresariais adotem regras que estejam em consonância com a proteção aos direitos humanos e à democracia. Ou seja, devem ser estabelecidos mecanismos sérios para que haja tratamento isonômico entre todos, que tragam inclusão e que impeçam o assédio contra mulheres.

Recomenda-se a criação e divulgação de um código de ética e de conduta, com regras simples e diretas, compreensíveis a todos e adaptadas à realidade operacional da instituição.

Sob o ponto de vista social, há que se respeitar a diversidade e a inclusão, perspectivas que não se confundem, embora sejam intimamente relacionadas. Assim, por exemplo, recente pesquisa publicada em março de 2024 consistente na 3ª edição do estudo “Estatística de Gênero – Indicadores Sociais das mulheres no Brasil”, realizada pelo IBGE e na qual constam dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) e da Pesquisa Nacional da Saúde, que tem por recorte os anos de 2018 a 2022, confirma a permanência de uma distorção historicamente presente no mercado: embora as mulheres estudem mais (o que pressupõe um preparo maior para a assunção de funções, inclusive de direção e comando), ainda possuem salários inferiores aos homens.

Neste sentido, em 2022, as mulheres ocupavam 39,3% das funções gerenciais e ganhavam 78,8% dos salários pagos aos homens. Não sem razão, o ODS nº 8.5 das Nações Unidas determina como objetivo, até 2030, que os países e suas sociedades alcancem o emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor.

Assim, não basta a manutenção de quadros profissionais oriundos de grupos minoritários ou vulnerabilizados, ainda que majoritários, como é o caso das mulheres (diversidade), necessária é a sua inclusão, vale dizer, a viabilização de oportunidades equitativas de crescimento na carreira.

O ideal de desenvolvimento, portanto, não se resume a mero crescimento econômico, mas deve estar inserido em um conjunto de práticas que envolva crescimento e inovação associadas a uma administração séria e competente, com regras de participação democrática, políticas voltadas a defesa de direitos humanos, direitos sociais e dignidade da pessoa humana, além do respeito ao meio ambiente.

Exige-se, ainda, uma busca global para criação de mecanismos regulatórios para com vistas a efetiva implementação das práticas ESG. A Comunidade Europeia já traz diretivas (Corporate Sustainability Due Diligence Directive) para que se estabeleçam mecanismos de fiscalização e de monitoração da responsabilidade das empresas quanto a sustentabilidade, o que envolve a constante avaliação quanto à adoção de práticas sustentáveis e adequadas aos direitos humanos.

No que tange ao Brasil, em 11 de novembro de 2023, foi instituído o Grupo de Trabalho Interministerial para a elaboração de proposta da Política Nacional de Direitos Humanos e Empresas por meio do Decreto nº 11.772. O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) vem coordenando o mencionado Grupo de Trabalho e já realizou, no primeiro semestre de 2024, rodada para a coleta de contribuições da sociedade civil e entes empresariais, sob o tema marcos regulatórios nacionais e internacionais sobre Direitos Humanos e Empresas.

Contudo, ainda parece longo o percurso a ser seguido para que o setor empresarial reconheça a importância de sua contribuição para a efetivação dos direitos humanos, da democracia e do desenvolvimento do país para além de mera estratégica de marketing. Na realidade, estamos a falar de mudança de mentalidade e de cultura, sempre muito mais difícil.

Podemos compreender a conclusão acima quando analisamos, a título de exemplo, o cenário que envolve o trabalho escravo no Brasil. A escravidão é considerada um delito de direito internacional cuja proibição tem status de jus cogens, isto é, norma imperativa de direito internacional, tal como decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil.

Ainda assim, o cenário que envolve a presença do trabalho escravo no Brasil preocupa. Em 21 de junho de 2024 o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região sediou importante painel que tratou do papel da Justiça do Trabalho e seu Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, Tráfico de Pessoas e Proteção ao Trabalho do Migrante.

Alguns dados importantes foram apresentados: em torno de 20,9 milhões de pessoas são vitimadas pelo trabalho forçado, e os fluxos migratórios no mundo também são atingidos pelo trabalho escravo. Além disso, abordou-se o aumento de denúncias de trabalho escravo recebidas pelo Ministério Público do Trabalho em São Paulo, ao longo dos últimos anos: 103 denúncias em 2018; 150 denúncias em 2019, sendo que entre 2015 e 2019 o MPT/SP recebeu um total de 607 denúncias de trabalho escravo, o equivalente a 10% do total registrado no país no mesmo período, conforme explicou o Juiz do Trabalho e membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Guilherme Guimarães Feliciano.

Assim, o conhecimento pleno sobre os elementos e atores que compõem a cadeia produtiva das empresas é condição sine qua non para que justiça social, direitos humanos, reputação empresarial e desenvolvimento se tornem efetivamente equações virtuosas para toda a sociedade brasileira.

A responsabilidade das empresas pelo desenvolvimento não se restringe a contribuir com o progresso, na medida em que progresso desassociado de proteção aos direitos humanos, à sustentabilidade e à democracia não resulta em desenvolvimento.  Difícil, mas não impossível.  A bem da verdade, imprescindível e urgente.

 

•           Inteligência Artificial e desinformação: fragilidades e riscos. Por Guilherme Carvalho

Os mais apocalípticos acreditam que a Inteligência Artificial substituirá seres humanos em muitas tarefas. Uma vertente mais integrada vê os sistemas de IA como potencialidades para aprimorar e otimizar as atividades a partir da integração entre seres humanos e computadores. Eu tendo a ver este movimento como algo parecido com o que ocorreu com o Metaverso. Muitos disseram que estávamos diante de uma revolução. Hoje, pouca gente se interessa pelo assunto.

A história da humanidade mostra que o avanço científico e tecnológico não é feito de grandes saltos. O desenvolvimento de uma nova tecnologia é resultante de pequenos passos (alguns à frente outros para trás). A IA, uma tecnologia iniciada nos anos 1940, só se tornou popular agora, graças a uma série de fatores que incluem aspectos culturais e sociais. Mas há fortes evidências de que ainda não estamos preparados para o uso deste recurso.

Em um contexto marcado pelo caos da oferta excessiva e indiscriminada de conteúdos, cresce a necessidade de tratamento adequado das informações. Os geradores de textos como ChatGPT, Bard e Bing, são pouco claros, quando não dispersivos, sobre as fontes de informação consultadas. Em praticamente todos os casos, também se percebe a ausência de princípios éticos básicos como o reconhecimento da autoria sobre um determinado texto, já que estes sistemas não citam ou não parafraseiam os trechos cujas informações foram publicadas por outras pessoas, como faz o jornalismo profissional.

Os pesquisadores João Canavilhas e Bárbara Biolchi, da Universidade da Beira do Interior (Portugal), apontam em artigo publicado recentemente na revista Mídia & Cotidiano a transparência na origem dos dados como um dos maiores problemas da IA na geração automática de conteúdos.

Um dos valores primordiais do jornalismo está na verificabilidade das informações publicadas em uma notícia. Ou seja, é a evidência de que um jornalista conversou com determinada fonte de informação, consultou determinados documentos, esteve em determinados locais, que dão alguma garantia para o público de que aquilo que está sendo publicado tem veracidade. Claro, o jornalismo, uma atividade humana, não é infalível e carrega suas fragilidades.

•           3 níveis de fragilidade

O problema dos dados é o principal problema dos geradores de linguagem natural e é o que torna estes sistemas falhos e, em muitos casos, reprodutores ou produtores de informações falsas. A fragilidade precisa ser compreendida em três níveis principais: primeiro, sobre a base de dados utilizada; segundo, sobre a adulteração de dados por humanos; e terceiro, sobre a adulteração de dados programada.

A primeira fragilidade se dá no nível da geração de conteúdos a partir de informações falsas, uma vez que a geração de textos por IA considera os conteúdos disponibilizados na rede como fonte de informação. O ambiente virtual, sem grande regulação, tende a ser pouco restritivo e, portanto, suscetível a gerar bases de informações falsas que são utilizadas pelos geradores artificiais. E não adianta dizer que os dados são coletados de bases científicas. No período da pandemia não foram poucos os casos de artigos publicados em revistas científicas desqualificadas.

A NewsGuard, organização estadunidense dedicada a fornecer ferramentas de inteligência artificial para combate à desinformação, atestou o problema. Em 2023, eles identificaram 49 sites com conteúdos gerados por IA, sendo que muitos continham informações falsas. Nestes casos, o problema está na incapacidade dos sistemas diferenciarem o que é verdadeiro ou o que é falso na ambiente digital.

Um segundo nível que pode, inclusive, se associar ao primeiro, diz respeito ao uso de IA para produção aprimorada de conteúdos falsos como vídeos, áudios e imagens, a partir do que se chama comumente de deepfake.

Aplicativos como TikTok e editores de dublagem automática, como Lovo, Maestra, Speechify, dentre vários outros, oferecem recursos fáceis de usar e acessíveis pelo celular para o público. Os chamados “prosumers” inundam as redes com vídeos e áudios muito realistas e capazes de confundir até os mais críticos. O uso deste recurso para inserir falas ou imagens que nunca existiram é mais comum com pessoas influentes como atores e políticos. Um destes casos ocorreu com o presidente dos Estados Unidos Joe Biden, que teve sua fala adulterada em um vídeo sobre a invasão do Capitólio, em 2022, e que viralizou nas redes.

Por fim, em um nível mais complexo e ainda pouco conhecido, se dá a programação e uso de algoritmos para que a IA gere conteúdos capazes de inventar ou distorcer informações. Neste mesmo grupo, também são perceptíveis os casos chamados de “alucinação”, em que a programação dos algoritmos utilizados pela IA não está muito bem aprimorada, provocando a geração de textos fora da realidade.

No ano passado o jornal The New Tork Times testou o ChatGPT, Bard e Bing, fazendo uma série de perguntas para os sistemas. Ao ler os textos produzidos pelos geradores, os jornalistas perceberam uma série de inconsistências. Erros em datas, nomes e fatos foram observados nos resultados. As empresas responsáveis por estes sistemas têm se manifestando sobre as “alucinações”, informando que trabalham para reduzir os erros e indicam que a tendência é uma redução dos problemas, uma vez que se trata de sistemas dotados de machine learning, algo como máquinas que aprendem. Este recurso permitiria que os assistentes virtuais aprimorassem as construções de textos, na medida em que os bancos de dados forem ampliados e quanto mais forem requisitados pelos usuários.

Em todos os casos, o problema recai sobre um ambiente não regulado. Nos últimos anos, a proliferação de fake news, teorias conspiratórias e negacionismo transformou um problema segmentado em um problema generalizado. Sem regras claras e a serviço de big techs, a tecnologia de inteligência artificial tende a ser também pouco criteriosa, contribuindo, a exemplo do que aconteceu com as redes sociais, não para ser um espaço de democratização e geração de conhecimento, mas para a polarização extremada de pensamento e proliferação de desinformação. Neste ritmo, será questão de tempo para que se perceba que os sistemas de geradores de linguagem natural não são tão confiáveis.

 

Fonte: Por Gabriella Fregni e Flávio de Leão Bastos Pereira, no Le Monde/Observatório da Imprensa

 

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