Francisco
Teixeira: ‘O mito do Estado mínimo’
François
Quesnay e Adam Smith foram, antes de tudo, pensadores revolucionários. Foram
capazes de apreender, conceitualmente, a racionalidade da sociabilidade
capitalista em gestação, isto é, ainda não plenamente desenvolvida em sua
existência histórica. São filhos de uma época marcada pela presença
manifesta de um mundo feudal, ainda que em acentuado processo de desintegração.
Por isso, apostaram que a sociedade nascente se concretizaria. Uma aposta com
resultados previstos como certos, antecipados por uma teoria construída, para
ensinar, aos dirigentes da coisa pública, como administrar, com sucesso, a nova
ordem nascente.
Cabia,
pois, aos estadistas traduzirem as leis que regem a nova ordem nascente; e,
assim, criarem as condições sociais e institucionais para o pleno
desenvolvimento da sociedade emergente. Tudo indica que era assim mesmo que
pensava Quesnay, quando defendia que, para assegurar “a maior prosperidade
possível da sociedade, [era] preciso […] que a autoridade soberana, sempre
esclarecida pela evidência, [instituísse] as melhores leis e as [fizesse]
observar com exatidão”.
As
leis que regem a nova ordem seriam leis naturais; tão verdadeiras quanto o
princípio da gravitação. Não podem, portanto, ser violadas. Cabe ao estadista
observá-las com exatidão, traduzi-las e fazer valer a sua racionalidade. Por
isso, adverte Quesnay, essas leis “podem ser violadas apenas em sentido
figurado, pois na verdade são perpétuas e inalteráveis (…). Os homens podem
ignorá-las, na formulação das leis positivas, não impunemente: sem as observar,
a sociedade jamais poderá atingir o máximo de bem-estar. Pior do que isso:
afastando-se em demasia da ordem natural, a sociedade acabará provavelmente
entrando em decadência e decomposição”.
Daí,
como apropriadamente assim Kuntz traduz o pensamento de Quesnay, dele infere
que “é a ordem econômica, bem entendida, que dita as condições em que a razão
de Estado ganha sentido prático. A lógica do estadista, para ser eficaz, deve
ser a lógica do economista”.
Também
era assim mesmo que pensava Adam Smith. Para ele, a economia é governada por
uma ordem natural, que não pode ser ignorada, sob pena de retardar o curso
normal do desenvolvimento, uma vez que cada indivíduo sabe melhor do que
ninguém como empregar seu capital. Livre para tomar suas decisões por conta
própria, “todo indivíduo”, diz Smith, é capaz de descobrir “a aplicação mais
vantajosa de todo capital que possui”. Embora cada um tenha em vista unicamente
o seu próprio interesse, ele é levado “a preferir aquela aplicação que acarreta
as maiores vantagens para a sociedade”.
Disto
ninguém sabe nem sequer desconfia. Não imagina que, ao procurar realizar seus
interesses particulares, acaba, sem querer, promovendo o bem-estar geral da
sociedade. Ao visar unicamente o lucro, que pode auferir da aplicação de seu
capital numa dada atividade, o indivíduo “é levado como que por mão invisível a
promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções (…). Ao perseguir
seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da
sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo.
Nunca ouvi dizer que tenham realizado grandes coisas para o país aqueles que
simulam exercer o comércio visando ao bem público. Efetivamente, é um artifício
não muito comum entre os comerciantes, e não são necessárias muitas palavras
para dissuadi-los disso”.
Por
isso, o melhor que o Estado pode fazer é não se imiscuir na economia. Afinal,
para o autor de A riqueza das nações, “não há regulamento comercial
que possa aumentar a quantidade de mão-de-obra em qualquer sociedade além
daquilo que o capital tem condições de manter. Poderá apenas desviar parte
desse capital para uma direção para a qual, de outra forma, não teria sido
canalizada; outrossim, de maneira alguma há certeza de que essa direção
artificial possa trazer mais vantagens à sociedade do que aquela que tomaria
caso as coisas caminhassem espontaneamente”.
Contra
a ideia de um Estado interventor, que participe da produção da riqueza, Smith
contrapõe a eficácia do mercado, como instância capaz de alocar com eficiência
os recursos das sociedades. Isso porque, diz ele, “cada indivíduo, na situação
local em que se encontra, tem muito melhores condições do que qualquer
estadista ou legislador de julgar por si mesmo qual o tipo de atividade
nacional no qual pode empregar seu capital, e cujo produto tenha probabilidade
de alcançar o valor máximo. O estadista que tentasse orientar pessoas
particulares sobre como devem empregar seu capital não somente se
sobrecarregaria com uma preocupação altamente desnecessária, mas também
assumiria uma autoridade que seguramente não pode ser confiada nem a uma pessoa
individual nem mesmo a alguma assembleia ou conselho, e que em lugar algum
seria tão perigosa como nas mãos de uma pessoa com insensatez e presunção
suficientes para imaginar-se capaz de exercer tal autoridade”.
Tudo
isso não significa que o melhor que o Estado pode fazer é não fazer nada. Muito
pelo contrário, sua intervenção é fundamental para criar as condições sociais e
institucionais para o desenvolvimento da livre concorrência; para assegurar,
portanto, que a ordem natural possa impor suas leis de regulação da economia.
Dentre
as mais importantes funções do Estado está aquela que garante a livre
negociação da compra e venda da força de trabalho.
Quanto
a isso Smith não deixa dúvidas, quando pergunta “Quais são os salários comuns
ou normais do trabalho?”, para responder que “Isso depende do contrato
normalmente feito entre as duas partes, cujos interesses, aliás, de forma
alguma são os mesmos. Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os
patrões pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se entre si
para levantar os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para
baixá-los”. Nessa contenda, acrescenta Smith, “Não é difícil prever qual das
duas partes, normalmente, leva vantagem na disputa e no poder de forçar a outra
a concordar com as suas próprias cláusulas. Os patrões, por serem menos
numerosos, podem associar-se com maior facilidade; além disso, a lei autoriza
ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para os trabalhadores ela proíbe. Não
há leis do Parlamento que proíbam os patrões de combinar uma redução dos
salários; muitas são, porém, as leis do Parlamento que proíbem associações para
aumentar os salários”. Mesmo que se admita que os trabalhadores entrem em
greve, mesmo assim, sempre estarão em desvantagem numa negociação com seus
empregadores. “Em todas essas disputas”, diz Smith, “o empresário tem
capacidade para aguentar por muito mais tempo. Um proprietário rural, um
agricultor ou um comerciante, mesmo sem empregar um trabalhador sequer,
conseguiriam geralmente viver um ano ou dois com o patrimônio que já puderam
acumular. Ao contrário, muitos trabalhadores não conseguiriam subsistir uma
semana, poucos conseguiriam subsistir um mês e dificilmente algum conseguiria
subsistir um ano, sem emprego. A longo prazo, o trabalhador pode ser tão
necessário ao seu patrão, quanto este o é para o trabalhador; porém esta
necessidade não é tão imediata”.
Tudo
que interfere nas leis do mercado é pernicioso para a economia. Por quê?
Porque, responde Smith, quando o Estado outorga um monopólio “a um indivíduo ou
a uma companhia de comércio, tem o mesmo efeito que um segredo comercial ou
industrial. Os monopolistas, por manterem o mercado sempre em falta, por nunca
suprirem plenamente a demanda efetiva, vendem suas mercadorias muito acima do
preço natural delas, auferindo ganhos — quer consistam em salários ou em lucros
— muito acima de sua taxa natural”.
Smith
vai mais longe em sua crítica contra qualquer tipo de ingerência artificial,
que interfira no livre jogo das forças de mercado. É radicalmente contra
o que ele entende por “privilégios exclusivos detidos por corporações”. Para
ele, os “estatutos de aprendizagem e todas as leis que limitam, em ocupações
específicas, a concorrência a um número inferior ao dos que de outra forma
concorreriam, têm a mesma tendência, embora em grau menor. Constituem uma
espécie de monopólios ampliados, podendo frequentemente, durante gerações
sucessivas, e em categorias inteiras de ocupações, manter o preço de mercado de
mercadorias específicas acima de seu preço natural, e manter algo acima de sua
taxa natural tanto os salários do trabalho como os lucros do capital empregados
nessas mercadorias. Tais elevações do preço de mercado podem perdurar enquanto
durar os regulamentos que lhes deram origem”.
Ricardo
não pensa diferente. Sua luta em defesa da determinação dos salários pelo livre
jogo das forças de mercado, fez dele um intransigente defensor da derrubada da
lei dos pobres, as assim chamadas poor laws. Para ele, a tendência
das leis dos pobres está em total oposição com os objetivos postulados por seus
defensores. Não é, diz ele, “como pretendem benevolentemente os legisladores,
melhorar a situação dos pobres, mas piorar a situação tanto dos pobres quanto
dos ricos. Em vez de enriquecerem os pobres, elas destinam-se a empobrecer os
ricos; e enquanto vigorarem as leis atuais, pela ordem natural das coisas, o
fundo de manutenção dos pobres crescerá progressivamente, até absorver todo o
rendimento líquido do país, ou, ao menos, tudo quanto o Estado nos deixe depois
de satisfazer suas permanentes demandas de fundos para gastos públicos”.
Apoiado
em Malthus, Ricardo entende que “a tendência perniciosa dessas leis já não é um
mistério, e todo amigo dos pobres deveria desejar ardentemente sua abolição”.
Pois, não tinha dúvida de que “o conforto e o bem-estar dos pobres não podem
ser permanentemente assegurados sem algum interesse da parte deles ou algum
esforço de parte do legislativo, para regular o aumento de seu número e para
tornar menos frequente entre eles os casamentos prematuros e imprevidentes. A
vigência do sistema das leis dos pobres tem sido diretamente contrária a isso.
Essas leis tornaram toda contenção supérflua e deram estímulo à imprudência,
oferecendo-lhe parte dos salários que deveriam caber à prudência e à
perseverança”.
Por
isso, Ricardo não tem nenhum constrangimento em defender uma política realista,
segundo a qual “nenhuma tentativa de emenda das leis dos pobres merece a menor
atenção, se não tiver por objetivo final a abolição dessas leis. Aquele que
mostrar como esse objetivo pode ser atingido com maior segurança e com menor
violência será o melhor amigo dos pobres e da causa da humanidade. Não é
alterando de uma forma ou de outra o modo de obtenção do fundo para o sustento
dos pobres, que se pode mitigar o mal. Não só não seria uma melhoria, como
constituiria um agravamento do mal que desejamos eliminar, se o montante do
fundo se elevasse ou fosse arrecadado — como foi proposto ultimamente — como
uma contribuição de todo o país. O atual modo de arrecadação e de aplicação tem
servido para mitigar seus efeitos perniciosos”.
Certa
como a lei da gravidade, a ação das leis dos pobres tenderia a agravar cada vez
mais a situação dos pobres. “Tão verdadeiro quanto o princípio da gravitação”,
diz Ricardo, “é a tendência de tais leis para transformar a riqueza e o poder
em miséria e em fraqueza, para afastar os esforços do trabalho de todo o
objetivo que não seja o de prover a mera subsistência, para confundir qualquer
distinção quanto às faculdades intelectuais, para ocupar a mente de modo
contínuo em atender às necessidades do corpo, até que finalmente todas as
classes sejam atingidas pela praga da pobreza universal. Felizmente essas leis
têm vigorado num período de crescente prosperidade, durante o qual os fundos
para sustento do trabalho têm aumentado regularmente, estimulando, de modo
natural, o aumento da população. No entanto, se o nosso progresso se tornasse
mais lento, e se atingíssemos um estado estacionário, do qual acredito estarmos
ainda muito distantes, então a natureza perniciosa dessas leis se tornaria mais
evidente e alarmante. Então, sua revogação seria impedida por muitas
dificuldades adicionais.
Valendo-se
da analogia do princípio gravitacional, Ricardo mostra que o mundo do trabalho
seria bem melhor se todas as barreiras, impostas pelas leis dos pobres, fossem
derrubadas. Só assim, a compra e a venda da força de trabalho poderiam ocorrer
livremente, ou seja, de acordo com o livre jogo das forças de mercado. Tudo que
o Estado teria de fazer seria tão somente retirar as pedras do caminho, isto é,
as leis dos pobres, para trabalhadores e capitalistas pudessem negociar
livremente o valor dos salários. Sem essa intervenção providencial do Estado, a
livre concorrência não se realizaria. Tal como pressupõe o princípio da mão
invisível, que exige o fim de toda e qualquer interferência na dinâmica da
economia. Esse princípio impõe, portanto, a necessidade de livre negociação
entre trabalhadores e capitalistas, liberdade de comércio internacional, fim
das regulações estatais que interferem na tomada de decisão de investimento dos
agentes econômicos etc. O Estado deve, portanto, remover todos os obstáculos
que perturbem o curso normal das leis, que regulam o desempenho da economia. Um
Estado, assim, é um Estado cuja racionalidade é a tradução da legalidade
natural que rege a criação da riqueza social.
Sem
a presença diligente do Estado, o princípio da mão invisível não teria sentido.
Na ausência de uma atuação efetiva do Estado, para instituir leis positivas
capazes de traduzir fielmente as leis naturais, pelas quais se rege a economia,
o princípio da mão invisível perderia sua força ordenadora das ações dos
indivíduos, que, juntos, ao perseguirem seus interesses particulares, acabam
por realizar, involuntariamente, o interesse geral da sociedade.
Mas
isso ainda não diz tudo. Sem o braço forte do Estado, permanentemente
“levantado para castigar a injustiça”, isto é, para punir os desprovidos de
meios para realizar seu trabalho, e que, por isso, invadem a propriedade
alheia; sem a proteção, portanto, de um Estado todo poderoso, os agentes
econômicos não se sentiriam seguros para investir seu capital naquelas
atividades que julgam mais vantajosas. Ainda que os homens possam viver em
sociedade, sem contar com a presença do Estado, como assim admite Smith, ele,
no entanto, confessa que isso não passa de uma quimera. Pois tem com o certo
que a “avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e
o amor à tranquilidade atual e ao prazer, da parte dos pobres”, levam estes a
invadir a propriedade alheia, “adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez
de muitas gerações “. Por isso, conclui o autor de A Riqueza das Nações,
somente “sob a proteção do magistrado civil, o proprietário (…) pode dormir à
noite com segurança”. Afinal, acrescenta ele, os proprietários estão a todo
momento cercados “de inimigos desconhecidos, os quais, embora nunca o tenham
[provocado], jamais consegue apaziguar, e de cuja injustiça somente o braço
forte do magistrado civil pode proteger, braço este continuamente levantado
para castigar a injustiça. É, pois, a aquisição de propriedade valiosa e
extensa que necessariamente exige o estabelecimento de um governo civil”.
Aqui,
Smith segue literalmente a concepção lockeana de Estado. Para o autor de o Segundo
Tratado do Governo, a principal função do Estado é a de proteger a
propriedade privada. Para justificar a defesa do Estado da propriedade privada,
Locke divide a sociedade em duas classes: proprietários e não proprietários.
Estes últimos, ele separa em duas classes de servos: uma composta de homens
livres, que aceitam viver da venda de sua força de trabalho em troca de um
salário; a outra formada por escravos, que ele considera prisioneiros de
guerra, e que, por isso, diz ele, “estão sujeitos, por direito de natureza, ao
domínio absoluto e ao poder arbitrário dos senhores”. Tendo tais homens,
continua ele, “perdido a vida e com ela a liberdade, bem como as propriedades,
e não sendo capazes de qualquer posse no estado de escravidão, não se podem
considerar como fazendo parte da sociedade civil, cujo fim principal é a
preservação da propriedade”.
Uma
ideia mais precisa do poder do Estado, Locke a apresenta no capítulo em que ele
expõe o que chama de “Da extensão do poder Legislativo”, capítulo XI. Aí ele
declara, em alto e bom som, que o poder Legislativo “é o poder supremo da
comunidade”, porque dele depende instituir as leis positivas, traduzidas de
acordo com as leis naturais. Dentre elas, a principal lei da natureza é aquela
que dita que a propriedade é um direito natural, portanto, sagrado, uma vez que
a propriedade é fruto do trabalho pessoal. Esse direito não pode ser violado;
pelo contrário, ele deve ser o marco a partir do qual Locke traça os limites de
até onde pode ir a legislação do poder maior da sociedade.
Em
primeiro lugar, o Legislativo não pode ser “exercido de maneira absolutamente
arbitrária sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas”. Mesmo porque, diz
Locke, “ninguém pode transferir para outra pessoa mais poder do que ele mesmo
possui; e ninguém tem um poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre
qualquer outro para destruir sua própria vida ou privar um terceiro de sua vida
ou de sua propriedade”. Por isso, o poder supremo da sociedade é “um poder que
não tem outra finalidade senão a preservação [da propriedade], e por isso nunca
tem o direito de destruir, escravizar ou, intencionalmente, empobrecer os
súditos”. Afinal, conclui ele, “as obrigações da lei da natureza não se
extinguem na sociedade”, elas “impõe-se como uma lei eterna a todos os homens,
aos legisladores como a todos os outros. As regras às quais eles submetem as
ações dos outros homens devem, assim como suas próprias ações e as ações dos
outros homens, estar de acordo com a lei da natureza, isto é, com a vontade de
Deus, da qual ela é declaração; como a lei fundamental da natureza é a
preservação dos homens, não há sanção humana que se mostre válida ou aceitável
contra ela”.
Em
segundo lugar, o poder legislativo ou o poder supremo “não pode arrogar para si
um poder de governar por decretos arbitrários improvisados, mas está na
obrigação de dispensar a justiça e decidir os direitos do súdito através de
leis permanentes já promulgadas”. Aqui, Locke chama Hooker, para esclarecer,
numa nota de pé de página, número 19, que “as leis humanas são medidas em
relação aos homens cujas ações devem dirigir”, pois, continua sua citação de
Hooker, as leis positivas devem se medir pela “lei de Deus e a lei de natureza;
de sorte que devem fazer leis humanas de acordo com as leis gerais da natureza
e sem contradição a qualquer lei positiva da Escritura; de outro modo seriam
mal-feitas”.
Em
terceiro lugar, “o poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer parte
de sua propriedade sem seu próprio consentimento. Como a preservação da
propriedade é o objetivo do governo, e a razão por que o homem entrou em
sociedade, ela necessariamente supõe e requer que as pessoas devem ter
propriedade, senão isto faria supor que a perderam ao entrar em sociedade,
aquilo que era seu objetivo que as fez se unirem em sociedade, ou seja, um
absurdo grosseiro demais que ninguém ousaria sustentar”.
Eis
aí os limites do poder supremo da sociedade, suas obrigações e encargos que lhe
foram conferidos “pela sociedade e pela lei de Deus e da natureza”. Tais
limites mostram que o poder soberano, isto é, o poder político, como
acertadamente entende Norberto Bobbio, deve estar a serviço do poder econômico.
Afinal, o Estado existe para proteger os direitos dos proprietários. Por isso,
diz Bobbio, “o poder supremo nada pode fazer para privar um cidadão de sua
propriedade. Pode-se dizer que, para Locke, a propriedade é sagrada e
inviolável, como consta no Art. 17 da Declaração de 1789 (…). Para dar uma
prova irrefutável desse limite absoluto do poder civil ante o do proprietário,
Locke chega a dizer que até mesmo no exército, onde a disciplina é mais severa,
o comandante deve impor a seus soldados o sacrifício da própria vida, mas não
pode tirar-lhes um só centavo do bolso sem cometer um abuso de poder”.
Smith
não discordaria em nada com a ideia de que o Estado deve estar a serviço da
economia, cuja legalidade de suas leis é a legalidade da racionalidade do
capital. De fato, como visto antes, para o autor de A riqueza das
nações, as leis do parlamento são criadas para proteger os proprietários
contra o poder de associação dos trabalhadores. Criadas, portanto, para
proteger os donos de propriedades – adquiridas com o suor do próprio rosto, ao
longo de seguidas gerações -, sem o que a providência auspiciosa da mão
invisível não poderá harmonizar os interesses particulares, com a realização do
bem-estar geral da sociedade.
O
Estado deve, pois, afastar todos os obstáculos que se interponham no caminho da
mão invisível do mercado.
O
braço forte do Estado se estende até alcançar as relações comerciais entre
metrópole e colônias. Afinal, para Smith, o mercado colonial era tão vantajoso
para a Inglaterra, quanto para as suas colônias. Para estas últimas porque, diz
ele, nelas “há pouca mão de obra para as manufaturas necessárias e nenhuma para
as manufaturas supérfluas. Quanto à maior parte dos manufaturados, tanto dos
necessários quanto dos que são mais de luxo, as colónias verificam ser mais
barato comprá-los de outros países do que fabricá-los elas mesmas. É sobretudo
estimulando os manufaturados da Europa que o comércio colonial encoraja
indiretamente a agricultura”.
Além
das vantagens econômicas obtidas pelas colônias, estas ainda se beneficiariam
da administração promovida pela metrópole. Smith presumia que as colônias não
seriam capazes de um dia ser “administradas de modo a recolher dos seus
componentes uma renda pública suficiente, não somente para manter em qualquer
período seu próprio governo civil e militar, mas também para pagar sua cota
adequada dos gastos do governo geral do Império Britânico”.
Além
disso, diz Smith, “não se pode supor que as Assembleias das colônias fossem
capazes de julgar sobre o que é necessário para a defesa e o apoio do Império
em sua totalidade, não lhes compete cuidar dessa defesa e desse apoio (…).
Somente a Assembleia que inspeciona e superintende os negócios de todo o
Império pode julgar sobre o que é necessário para a defesa e o apoio de todo o
Império e em que proporção cada parte deve contribuir para isso”.
Smith
não deixa dúvidas: sua doutrina liberal não exclui uma política colonialista.
Com efeito, sua teoria das “vantagens comparativas” reconhece uma divisão
internacional do trabalho, que condena os países coloniais periféricos à
condição subalterna de eternos vendedores de matérias-primas e de outros
produtos primários aos países europeus, em troca de mercadorias manufaturados.
É uma proposta de comércio internacional extremamente danosa às regiões da
periferia capitalista, na medida em que lhes reserva uma condição de
dependência em relação aos países centrais, em particular à Inglaterra, que, na
época, desfrutava a posição de potência mundial.
Ricardo
não está longe do que pensa Smith. Para ele, o comércio internacional era
extremamente importante para proporcionar o progresso e o desenvolvimento dos
parceiros comerciais. Com a condição de que fosse observada a lei das vantagens
comparativas, que dita que cada país deve se especializar na produção daqueles
bens em que são mais competitivos. Nesta direção, ele demonstrou que seria mais
vantajoso para Portugal produzir vinho e importar tecidos da Inglaterra. Ambos
sairiam ganhando, pois, se Portugal resolvesse produzir seus tecidos, por
exemplo, teria que abrir mão de parte da produção de vinho, e, assim, pagar um
alto custo para poder produzir tecidos. Bem melhor seria, portanto, diz
Ricardo, se Portugal e Inglaterra pudessem gozar de liberdade, para se
dedicarem à produção daqueles bens, que lhes trouxessem maiores vantagens
competitivas.
Seria
ingenuidade imaginar que as economias periféricas decidiriam espontaneamente
ocupar uma condição subalterna no comercio internacional. Prova disso, Ricardo
teve de enfrentar, quando se viu obrigado a entrar no debate pela derrubar
das Corn Laws, leis dos cereais. Contra essas leis, que proibia a
importação de produtos agrícolas, Ricardo defendeu a importação de cereais,
para regular e baixar os preços internos dos alimentos e, assim, aliviar a
pressão sobre a queda da taxa de lucros da economia.
Um
resumo do conjunto da exposição da teoria da Economia Política Clássica, até
aqui desenvolvida, autoriza que se chegue à seguinte conclusão: a filosofia de
que o liberalismo defende a ideia de um Estado mínimo, isto é, a ideia de que a
melhor coisa que o Estado deve fazer é não fazer nada não encontra fundamento
nem sequer na concepção de mundo dos fundadores do liberalismo clássico.
Fonte:
A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário