quinta-feira, 27 de junho de 2024

OTAN e Rússia estão à beira de uma escalada nuclear? Analistas debatem

Gastos mundiais com armas nucleares estão em alta, com aumento do potencial destrutivo de ogivas e novos sistemas de lançamento. Uso de armas dos EUA em ataque contra Sevastopol com vítimas civis eleva a possibilidade de escalada entre grandes potências.

Nesta segunda-feira (24), o governo russo acenou com a possibilidade de rever a sua doutrina de dissuasão nuclear, para adequá-la às realidades modernas impostas pelo conflito ucraniano e expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

De acordo com o porta-voz da presidência russa, Dmitry Peskov, a possibilidade de alterar o documento que estipula o processo de tomada de decisão sobre o uso de armas nucleares está em debate. O comentário foi feito após o chefe do Comitê de Defesa do parlamento russo, Andrei Kartapolov, defender uma revisão abrangente.

"O fato é que as discussões estão em andamento e a questão de alinhar a doutrina [nuclear] em geral com as realidades atuais está sendo trabalhada – o presidente [da Rússia, Vladimir] Putin falou sobre isso. Esse trabalho está em andamento, até o momento não tenho mais nada a dizer", disse Peskov aos repórteres.

A Doutrina Nuclear russa estipula os princípios básicos de sua política de dissuasão nuclear e o processo de tomada de decisão sobre um eventual uso dos arsenais russos. Defensiva por natureza, a doutrina russa restringe o uso de armas nucleares a situações "extremas", nas quais o país seria compelido a tomar essa drástica decisão.

"A Rússia se reserva o direito de usar armas nucleares em resposta ao uso de armas nucleares e outros tipos de armas de destruição em massa contra ela e/ou seus aliados, bem como em caso de agressão contra a Rússia com o uso de armas convencionais, quando a própria existência do Estado estiver em perigo", versa o documento estatal russo.

A eventual alteração na Doutrina Nuclear da Rússia pode se fazer necessária, frente à autorização dada a Kiev pelas potências nucleares EUA e Reino Unido para utilização de armamentos ocidentais contra alvos no território russo.

Neste domingo (23), um ataque contra a cidade de Sevastopol, na Crimeia, utilizando mísseis norte-americanos ATACMS, deixou pelo menos quatro mortos, incluindo duas crianças, e mais de 150 feridos. Outras quatro crianças foram transportadas para um hospital pediátrico em Moscou, e seguem em estado grave, de acordo com informações divulgadas nesta terça-feira (25).

O Ministério das Relações Exteriores da Rússia convocou a embaixadora dos EUA em Moscou, Lynne Tracy, para expressar sua indignação com o uso irresponsável de armas norte-americanas em seu território, e prometeu retaliação.

Especialistas apontam que o conflito ucraniano se encontra em momento crítico, no qual o potencial de escalada é real. Recentes dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI) revelam um aumento generalizado nos gastos internacionais com armas nucleares nos últimos anos, adicionando mais um elemento temeroso ao já complicado ambiente internacional.

Um dos estopins para a volta das armas nucleares à agenda internacional foi a decisão da administração Donald Trump, nos EUA, de antagonizar abertamente com países que consideram seus potenciais adversários geopolíticos, como Rússia e China, disse a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Danielle Ayres.

"Há uma grande clivagem, já que estamos em meio a uma disputa pela hegemonia mundial, gerada em grande parte pela ascensão da China. Em 2019, o então líder da Casa Branca, Donald Trump, aposta na divisão do mundo entre 'nós' e 'eles', e começa a preparar os EUA para esse embate", disse Ayres à Sputnik Brasil. "Os EUA têm interesse em manter essa disputa na arena militar, afinal é um setor no qual os norte-americanos têm vantagem considerável."

Segundo ela, países como a Rússia reagem a essa mudança, buscando reforçar a sua capacidade dissuasória e a sua influência internacional. A modernização dos arsenais nucleares e aumento de sua capacidade técnica são um dos instrumentos para atingir esse objetivo.

"Por outro lado, os novos dados apontam para o foco nas armas nucleares estratégicas, que têm capacidade de atingir alvos a grandes distâncias e, no caso de Rússia e EUA, provocar a destruição mútua", apontou Ayres. "Mas, o investimento em armas nucleares táticas, aquelas que podem ser usadas para destruição pontual de alvos militares, não cresceu tanto. Então vemos que há um investimento por parte das potências na sua capacidade de dissuasão."

A capacidade dissuasória é a principal função das armas nucleares, que não são construídas para serem, de fato, utilizadas no campo de batalha. Até o momento, não há possibilidade de uso limitado de armas nucleares, isto é, garantindo efeito destrutivo de pequena ou média escala.

"Em condições normais, as armas nucleares são usadas como efeito dissuasório", disse o mestre em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Pedro Mendes Martins, à Sputnik Brasil. "A única vez que elas foram usadas foi em 1945, em Hiroshima e Nagasaki, e depois nunca mais. Isso mostra que as armas nucleares foram projetadas para que os países não as utilizem."

Ogivas modernas

O aumento nos investimentos com arsenais nucleares pelas principais potências nucleares, com destaque para EUA e Rússia, se dá pela necessidade de renovação de ogivas antigas e otimização de seus custos de manutenção.

"Já existia a tendência de aumento no investimento e modernização de arsenais nucleares, por um motivo muito simples: ogivas nucleares têm prazo de validade. Muitas ogivas da época da Guerra Fria precisam ser renovadas por motivos técnicos", revelou Martins.

Segundo ele, um olhar atento aos dados públicos sobre os principais arsenais nucleares do mundo revela que "há uma redução dos arsenais nucleares de Rússia e EUA, justamente por eles estarem trocando ogivas antigas por novas, mais potentes".

"A tendência de reciclar a capacidade nuclear é de longo prazo, afinal manter uma ogiva nuclear é muito caro e demanda a mobilização de milhares de pessoas. Então a redução quantitativa do arsenal, com a manutenção ou aumento do seu poder, interessa às grandes potências", explicou Martins. "É possível reduzir o custo econômico e de manutenção, mas com uma capacidade destrutiva muito maior."

A aceleração no ritmo dessa modernização nuclear chama mais atenção dos analistas atualmente, em função do "contexto político muito mais grave em que estamos, com uma guerra interestatal na Europa e outros conflitos de alta intensidade".

·        Foco nos submarinos

A renovação dos arsenais também consolida a tendência de investir em veículos de lançamento que garantam a capacidade de retaliação nuclear, em especial os submarinos nuclearmente armados, apontou o mestre em ciências militares.

"É importante notar o aumento da relevância das armas nucleares instaladas em mísseis balísticos lançados a partir de submarinos. A presença dessas ogivas em submarinos que percorrem o planeta Terra 24 horas por dia é o que, atualmente, garante a dissuasão nuclear das grandes potências", asseverou Martins.

Outras tradicionais bases de lançamento de armas nucleares são os silos terrestres e os aviões bombardeiros estratégicos. No entanto, as infraestruturas necessárias para operar essas bases de lançamento são de larga escala e, portanto, facilmente detectáveis.

"A construção de silos para a instalação de armas nucleares atualmente é facilmente identificada por satélites. Já no caso da Crise dos Mísseis em Cuba, um avião B-52 americano foi capaz de perceber a construção de um silo", explicou Martins. "Já o lançamento por aviões bombardeiros estratégicos também tem problemas, por serem aeronaves de grande porte, as quais todos sabem aonde ficam estacionadas."

Portanto, as armas nucleares instaladas em silos e bombardeiros estratégicos são "os alvos prioritários de um primeiro ataque nuclear, e podem ficar inutilizadas em questão de minutos". Para garantir a retaliação nuclear é necessário ter uma frota de submarinos prontos para responder a uma agressão.

"A dissuasão fica garantida se o país possui submarinos nuclearmente armados, capazes de realizar um ataque retaliatório a qualquer momento", disse Martins. "Mas não é fácil nem barato manter submarinos nuclearmente armados com ogivas em alerta, operando constantemente. Por isso poucos países mantêm essa capacidade."

O especialista acredita que, apesar do perigo, Rússia e EUA ainda têm capacidade de negociar e impedir uma escalada nuclear, no contexto do conflito ucraniano. Para ele, a comunidade internacional tem base legal e política para retomar os acordos de controle de armamentos e restringir o uso desses arsenais.

Nesta terça-feira (25), a candidata ao Senado dos EUA por Nova York, Diane Sare, defendeu a retomada de negociações nucleares ente Washington e Moscou. Sare disse à Sputnik que o diálogo na esfera nuclear é necessário e consiste em uma "responsabilidade perante o mundo". Para ela, os EUA devem investir na cooperação científica com a Rússia e "deixar para trás a retórica e a prática da guerra".

¨      Aposta de Zelensky na entrada da Ucrânia na OTAN é sonho 'distante e improvável', diz analista

O futuro potencial da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) continua a ser uma perspectiva distante, não importa o quanto Vladimir Zelensky possa clamar pela adesão, sublinhou um artigo na The National Interest.

Durante a cúpula anual da OTAN em Vilnius em 2023, foi acordado um pacote de três medidas para aproximar a Ucrânia da aliança. No entanto, a OTAN evitou estender um convite oficial a Kiev. Desde então, Vladimir Zelensky tem apostado na cúpula do bloco em Washington, marcada para 9 a 11 de julho, para avançar no cronograma.

"A Ucrânia praticamente não será capaz de aderir à aliança transatlântica enquanto as hostilidades com a Rússia continuarem", escreveu o jornalista Stavros Atlamazoglou em sua análise.

A própria razão pela qual Kiev tem batido persistentemente à porta da OTAN é também o que impede a sua adesão — o Artigo 5, sublinhou o jornalista. Não importa quanto apoio os EUA e os seus aliados possam estender à Ucrânia, a aliança procurará "evitar o envolvimento imediato" nas hostilidades em curso, sublinhou ele.

Apesar do Artigo 5, ou cláusula de defesa comum, exigir que todos os países da OTAN venham em auxílio de outro membro da aliança sob ataque de um ator estatal ou não estatal, "não é uma reação automática", esclareceu. A Aliança Atlântica "teria de avaliar primeiro a situação".

"O Artigo 5 da Carta da OTAN, que determina a defesa coletiva, torna improvável a adesão da Ucrânia enquanto o conflito continuar, pois levaria a OTAN a um conflito direto com a Rússia", escreveu o autor.

O regime neonazista de Kiev pode estar de olho na próxima cúpula da OTAN, em julho, em Washington, para algum avanço nesta questão — mas isso não acontecerá. É "extremamente improvável" que a cúpula produza progressos concretos no sentido de a Ucrânia vir a se tornar o 33.º Estado-membro da aliança, concluiu Atlamazoglou.

Ele também apresentou uma série de comentários feitos por responsáveis dos EUA e da OTAN que confirmam isto.

"O presidente [norte-americano Joe Biden] acredita firmemente que a OTAN estará no futuro da Ucrânia em algum momento", disse o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, em recente coletiva de imprensa. Mas, primeiro, a Ucrânia "tem de vencer a guerra com a Rússia", acrescentou ele no dia 17 de junho.

Na verdade, o presidente dos EUA, Joe Biden, disse que "não estava preparado para a 'OTANização' da Ucrânia", em uma entrevista recente à revista Time. Paz "não significa OTAN", disse ele. Ele também reconheceu ter testemunhado "corrupção significativa" na Ucrânia em visitas ao país durante seu mandato como vice-presidente. Em vez da entrada na OTAN, Kiev terá de se contentar com "garantias de segurança".

Com efeito, uma infinidade de acadêmicos, juristas e legisladores dos EUA sublinharam em uma série de publicações que a potencial adesão da Ucrânia à aliança não lhe garantiria mais assistência do que a que desfruta hoje, mesmo que o Artigo 5 seja invocado. Salientaram que a linguagem do tratado especifica que é da responsabilidade dos Estados-membros da OTAN e das suas legislaturas decidir se e como ajudarão outros países-membros.

Em junho passado, o senador Rand Paul abordou a questão da disposição de defesa comum do Artigo 5 para sublinhar que "um ataque a um é um ataque a todos" não desencadeia automaticamente uma resposta militar dos EUA.

"A Constituição concede ao Congresso a autoridade exclusiva para determinar onde e quando enviaremos os nossos filhos e filhas para lutar. Não podemos delegar essa responsabilidade ao presidente, aos tribunais, a um organismo internacional ou aos nossos aliados", disse Paul.

O presidente russo, Vladimir Putin, reiterou que Moscou considera a continuação do estatuto de não alinhado da Ucrânia vital para pôr fim ao conflito que já dura há anos. O objetivo declarado de Kiev de aderir à aliança liderada pelos EUA foi uma das razões da Rússia para lançar a sua operação militar especial em fevereiro de 2022.

Em 14 de junho de 2024, Putin disse que a Rússia interromperia a sua operação militar especial e iniciaria negociações com a Ucrânia assim que Kiev ordenasse a saída das tropas dos territórios controlados pela Rússia e abandonasse os planos de adesão à OTAN.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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