FALÁCIA DO
DISCURSO NEOLIBERAL: Protecionismo, déficits e intervenção estatal na economia dos
Estados Unidos
O
economista sul-coreano Ha-Joon Chang, no brilhante livro “Chutando a Escada”, faz uma
análise poderosa a respeito das políticas econômicas dos países hoje
desenvolvidos e a forma como construíram sua indústria. Faz ainda uma crítica
profunda à falácia do discurso neoliberal adotado por esses países,
principalmente na segunda metade do século XIX, quando barreiras tarifárias
ultra protecionistas eram estabelecidas aos importadores e políticas de livre
mercado eram impostas aos países em desenvolvimento – como se tivessem
promovido sua economia as utilizando, quando na verdade nunca o fizeram.
Esse
artigo fará uma leitura do histórico de intervenções econômicas dos presidentes
norte-americanos na economia e mostrará a incoerência e a hipocrisia entre o
discurso neoliberal adotado por eles e as práticas reais de estímulo econômico
com viés keynesiano.
Quando
acompanhamos a política econômica das administrações desde Franklin D.
Roosevelt até Joe Biden, percebemos que os Estados Unidos podem ser tudo, menos
liberais. Hayek foi um dos principais economistas da chamada “Escola Austríaca”
da economia. Essencialmente liberal e discípulo de Ludwig Von Mises, outro
emblemático economista austríaco, acreditava que o Estado deveria se abster de
tentar influenciar os rumos da economia e corrigir suas eventuais distorções,
deixando espaço para a livre iniciativa empresarial fomentar o crescimento
econômico e garantir níveis máximos de emprego no longo prazo.
Os
economistas da Escola Austríaca denunciavam o risco inflacionário que poderia
acompanhar políticas fiscais expansionistas e por esse ser um efeito colateral
inaceitável acreditavam que as recessões apresentadas pelo ciclo econômico
natural não deveriam ser enfrentadas pelo Estado. A recessão futura, empurrada
para frente pelos estímulos fiscais de momento, requereria ainda mais estímulo
econômico e energia para ser debelada. No futuro, as pressões inflacionarias
decorrentes das intervenções governamentais seriam acompanhadas de inflação e
aumento da dívida pública.
Na
obra intitulada “Keynes x Hayek”, o
jornalista Nicholas Wapshott descreve de maneira contundente a forma como o
debate entre o pensamento econômico keynesiano e hayekiano, ou seja, de
intervenção estatal em momentos de crise em oposição à não interferência na
economia, decorreu ao longo do último século e como os ensinamentos de John
Maynard Keynes foram adotados pela maioria dos países desenvolvidos para
combater crises que o livre mercado e a falta de regulação criaram.
O
raciocínio liberal pressupõe ainda que, quando os indivíduos buscam seus
próprios interesses em decisões diárias, sejam gestores de multinacionais ou
trabalhadores assalariados, todos juntos tendem indiretamente a promover o
bem-estar geral e o crescimento econômico, ou, como descreve Nicholas Wapshott,
“o bem público era o somatório dos interesses próprios individuais de todos os
indivíduos combinados”.
Hayek
e a Escola Austríaca defendiam que, no longo prazo, o mercado entraria em
equilíbrio entre a oferta de bens e serviços e a demanda por eles com os preços
livres refletindo essa tendência de equilíbrio, e que qualquer tentativa de
influenciar os preços teria resultados prejudiciais. Ou seja, quando o Estado
controla os preços sobre bens e serviços, está na verdade privando os
indivíduos de seu poder de escolha e negociação, restringindo sua colaboração
para a economia se desenvolver e distorcendo a realidade. É justamente a soma
das liberdades individuais de escolha dos cidadãos que gera o acúmulo geral de
conhecimento sobre o mercado capaz de, naturalmente, estabilizar e desenvolver
a economia.
Sabemos
que grandes corporações e empresas multinacionais sim, essas defendem com muita
determinação seus próprios interesses em decisões diárias, mas será que o
somatório das decisões dessas empresas, num ambiente sem regulação estatal,
resultaria no bem-estar social geral e no progresso econômico? Bill
Clinton, o quadragésimo segundo presidente dos Estados Unidos, atuou para
desregular o mercado financeiro e os derivativos durante sua gestão. Todos
nós sabemos o que ocorreu sete anos após ele deixar o governo. Na
prática, o mercado financeiro avançou por conta própria ao longo de quase uma
década antes de registrarmos o maior terremoto financeiro desde 1929, a
crise de 2008.
·
Efeito multiplicador
A
queda no desemprego e o aumento da demanda agregada que surgiriam a reboque dos
estímulos fiscais governamentais podem ser traduzidos pelo aumento do
contingente de trabalhadores recebendo salários, consumindo produtos e
serviços, pagando mais impostos e fazendo a roda da economia girar.
Esse
efeito dos investimentos públicos sobre o crescimento da atividade econômica
foi elaborado por Richard Kahn, principal discípulo de Keynes e explicado em
sua famosa Teoria Geral. Na breve definição dos professores da Universidade
Federal do Rio de Janeiro Maria Isabel Busato e Norberto Montani Martins, o
efeito multiplicador sobre a renda “é a razão entre uma mudança no produto e
uma mudança exógena do gasto ou do tributo”.
Para
os professores, “o debate sobre multiplicadores fiscais se torna relevante,
pois a ele está associado um desenho de política fiscal que leve em
consideração os diferentes impactos que as rubricas do orçamento público podem
ter no crescimento econômico, tendo como objetivo estabilizar ou impulsionar a
demanda agregada e suavizar as flutuações econômicas”.
A
Teoria Geral não seria assimilada pela maioria dos demais economistas e líderes
governamentais se não fosse o conceito de efeito multiplicador. Embora não
adotado abertamente por nenhum dos políticos considerados neoliberais, é
difícil encontrar um que não admita que o expansionismo fiscal interfere
positivamente no crescimento econômico.
·
Não tão liberais assim
Ha-Joon
Chang descreve a construção do setor industrial norte-americano no século XIX
apresentando evidência claras de protecionismo e de construção de barreiras à
entrada de produtos estrangeiros. Segundo Paul Bairoch, citado por ele, em
“Economics and World History: Myths and Paradoxes”, as barreiras tarifárias nos
Estados Unidos visando à proteção de sua indústria nascente chegavam a 45% em
1820 e foram de até 48% em 1931 e só a partir de 1950, com uma indústria já
desenvolvida e as forças geopolíticas e econômicas consolidadas, começam a
diminuir.
A
partir do período mencionado pelo economista sul-coreano, o histórico de ações
voltadas ao intervencionismo estatal na economia americana é muitas vezes
superior ao histórico de não intervenção ou mesmo de desregulação. Logo, o
senso comum de que os Estados Unidos seriam um mercado liberal, forjado na
livre iniciativa de seus empreendedores, é inverídica.
Nos
anos 1930, por exemplo, o país aprova a Lei Smoot-Hawley que visa proteger a
indústria nacional da concorrência internacional frente aos impactos da crise
de 1929. Como lembra o professor brasileiro André Nassif, “os países não
hesitavam em recorrer a políticas protecionistas generalizadas e
desvalorizações competitivas de suas moedas, com o intuito de transferir seus
problemas internos de desemprego aos demais países”. Ao protecionismo que
surgiu em decorrência da quebra da bolsa, medidas protecionistas por todos os
lados acompanharam, num modelo de proteção que ficou conhecido como
“beggar-thy-neighbor”, ou “empobreça seu vizinho”.
Ainda
na década de 1930, Roosevelt aprova o programa de investimentos públicos
chamado de New Deal. O novo presidente estava tão desesperado por soluções que
Keynes se viu num ambiente propício para recomendar algumas ações. Entre elas
recomendava que “alternativamente, a autoridade pública deve ser chamada para
criar ingressos adicionais através de gasto público”.
Na
década de 1940, Roosevelt apresenta uma segunda carta de direitos no Estado da
União de 1944 garantindo ao cidadão americano “o direito à proteção adequada
contra os medos econômicos da velhice, doença, do acidente e do desemprego”,
reforçando os ideais de intervenção pública na economia através de
expansionismo fiscal. No mesmo período, em um bem-vindo alinhamento ideológico
entre presidência e parlamentares, o congresso americano apresenta o projeto de
lei do “pleno emprego”, reforçando a ideia de que o governo deveria “fornecer o
volume de investimentos e gastos federais que possam ser necessários para
assegurar o pleno emprego”.
Nos
anos durante a Segunda Guerra Mundial e após ela, vemos uma determinação
inabalável do Estado norte-americano na manutenção do aquecimento econômico por
políticas fiscais expansionistas. Como veremos mais a frente, a máquina pública
não estava direcionada apenas ao setor bélico e de segurança, e sim a setores
estratégicos da indústria, principalmente questões envolvendo inovação,
tecnologia e produtividade.
·
Bretton-Woods
Entender
o momento econômico mundial na década de 1940, sobretudo a predominância
norte-americana em questões tanto geopolíticas quanto comerciais, requer que se
entenda a forma como esse novo sistema econômico internacional foi
criado.
O
acordo de Bretton-Woods foi o resultado de uma negociação envolvendo delegados
de dezenas de países que debateram, ao longo de 1944, a criação das bases para
o desenvolvimento de um novo sistema econômico internacional. O foco original
seria estabilizar as pressões econômico-comerciais que resultaram da segunda
grande guerra e fomentar o crescimento econômico no mundo.
O
economista grego Yanis Varoufakis, afirma na obra prima “O Minotauro Global”,
que Keynes abordou com os demais assessores a ideia da criação de um mecanismo
de compensação às nações deficitárias através de ajuda financeira vinda das
economias superavitárias, como uma forma de redução da desigualdade e aumento
da cooperação entre os países. A visão progressista de Keynes foi preterida no
encontro em diversos momentos. Tentou ainda sugerir que a utilização do dólar
como moeda de troca internacional desequilibraria novamente a balança de poder
no mundo após a guerra.
Foi
vencido em seus argumentos e o dólar, ligado ao valor do ouro, seria
estabelecido como moeda de troca internacional. Varoufakis aborda essa questão
fazendo uma análise interessante sobre a criação de mecanismos de reciclagem de
excedentes comerciais na Europa e Ásia, trabalhando em função da economia
americana.
Para
o economista grego, os déficits orçamentário e comercial americanos poderiam
ser sanados pela combinação envolvendo a reciclagem de excedentes comerciais e
o fluxo de dólares que retornava para os Estados Unidos camuflados de
investimentos.
Em
outras palavras, é fácil ter déficits sucessivos e abundantes quando você é
capaz de socializar o risco com o restante do mundo e quando outras nações
arcam com a necessária entrada de capital para um novo ciclo de expansionismo
fiscal se iniciar.
·
De Eisenhower a Nixon
Embora
em 1946, com o fim vitorioso da guerra e o crescimento exponencial dos gastos
públicos, tenha ocorrido a suavização da lei do pleno emprego e um leve
abandono das ideias keynesianas, poucos seriam corajosos para acreditar que o
mercado do país não dependeria mais de intervenções estatais e políticas
fiscais favoráveis. Após Bretton-Woods e o sistema de reciclagem de excedentes,
a sociedade americana dependeria ainda mais dos déficits
orçamentários.
Em
1947, Truman discursa no Estado da União sobre a necessidade de ampliação dos
gastos públicos para a construção da infraestrutura do país a fim de contornar
mais uma crise. Novamente, uma interferência keynesiana.
Após
a gestão de Truman, assume a presidência o General Dwight D. Eisenhower. Seus
principais assessores econômicos eram oriundos da Sociedade de Mont Pèlerin, da
Escola Austríaca, liderada por Ludwig Von Mises e Friedrich Von Hayek, um Think
Thank liberal criado por Hayek para fazer frente ao crescimento do
pensamento keynesiano. Porém, mesmo esses assessores percebiam que a indústria
não poderia ficar sem a sustentação do orçamento público.
Com
esse raciocínio, defendiam que, em caso de uma crise que pusesse em risco a
supremacia industrial dos Estados Unidos, alguma intervenção precisaria estar
presente. Por isso, em 1954, Eisenhower corta impostos na ordem de US$ 7
bilhões em favor da retomada do crescimento.
A
administração Eisenhower apostava no que se chamou de “keynesianismo
empresarial”, uma forma de fazer o governo atuar na economia e ao mesmo tempo
informar que continuava pró-mercado – verborragia típica da confusão de
conceitos que permeou e continua permeando a política norte americana e que foi
exportada para todo o planeta.
Em
1956, o governo inicia a construção de uma ampla rede de rodovias, no mais
absoluto sentido keynesiano de investimento para ampliação da demanda agregada.
Para agradar aos conservadores e confundir ainda mais suas percepções sobre os
rumos da economia e o orçamento, Eisenhower trabalhou seu discurso para afirmar
que os investimentos em rodovia eram necessários para a segurança do país,
dando nome ao programa de “rodovias de defesa nacional”.
Em
1957, a Guerra-Fria escala e os gastos com “defesa” são ampliados. Eisenhower
termina sua presidência tendo investido mais recursos públicos na “indústria
bélica” americana do que Roosevelt durante toda a Segunda Guerra Mundial. Até
aqui, a ideia de um orçamento público equilibrado é mera conversa para países
em desenvolvimento não usarem as mesmas escadas que os desenvolvidos utilizaram
para subir ao patamar em que estão atualmente, como escreveu belissimamente
Ha-Joon Chang. Principalmente quando você é capaz de convencer o mundo a
financiar seus déficits.
Porém,
como atitude emblemática da incoerência entre o discurso em defesa do livre
mercado e as verdadeiras atitudes, Eisenhower declarou querer reduzir os gastos
públicos até o último centavo em seu último ano de presidência e equilibrar o
orçamento para salvar seu nome entre os conservadores. E de fato trabalhou
incansavelmente até seu último momento na Casa Branca para reequilibrar o
orçamento.
Fez
um trabalho tão bem-feito nesse sentido que junto a um superávit de US$ 269
milhões, conseguiu que Richard Nixon perdesse as eleições para John
Kennedy.
Com
Kennedy na presidência, os Estados Unidos talvez tenham visto pela primeira vez
um presidente que apresentava coerência entre o discurso e a ação
orçamentária. Tanto que sua plataforma econômica foi escrita com a
participação de um dos grandes seguidores de Keynes, Kenneth Galbraith.
A
orientação keynesiana de Kennedy não se escondeu ao longo de sua presidência,
assim como não se esconderam as ações pela garantia das liberdades civis e a
inclusão de cidadãos alijados da política americana à vida no país. Também foi
um presidente que atuou para cortar impostos e aquecer a economia em momentos
importantes.
Após
seu assassinato, Lyndon Johnson continuou orientado pela política econômica
keynesiana prescrita por Kennedy, ampliando as políticas de bem-estar social,
como o Medicare para cidadãos acima dos 65 anos.
Para
Wapshott, com Kennedy e Lyndon Johnson, “a produtividade cresceu, o salário
líquido real dobrou em comparação com os anos Eisenhower e o desemprego baixou
de 4,5% em 1965 para a média de 3,9% nos quatro anos subsequentes”.
Em
1969, Richard Nixon chega enfim à Casa Branca prometendo o tão sonhado
equilíbrio orçamentário e uma orientação hayekiana da economia. Assim como
Eisenhower, ele nomeia no Conselho de Consultores Econômicos da presidência
assessores conservadores.
·
A confusão da Era
Nixon
Os
cortes de gastos promovidos por Nixon levam a uma pequena recessão e o
presidente não demora muito a mudar de opinião sobre se precisaria intervir ou
não na condução da economia. Como relaciona sua primeira derrota para Kennedy
ao desempenho econômico e ao nível de emprego deixado por Eisenhower, agora
tenta acelerar o ritmo de gastos públicos para reaquecer uma economia que
entrara em recessão. Afoito e impressionado pelo fantasma da baixa
popularidade, pediu aos assessores que desenvolvessem um orçamento que gerasse
o tão sonhado emprego. Mais keynesianismo levantou protestos tanto de
republicanos quanto de democratas.
·
Choque do Petróleo de
1973
Em
1973, irritada com a postura norte-americana na guerra do Yom Kippur, a OPEP
reduz a oferta de petróleo e aumenta deliberadamente os preços, afetando a
economia mundial e principalmente a estadunidense. O primeiro choque do
petróleo causa um efeito até então nunca visto na economia norte-americana, uma
persistente estagnação com aumento do nível dos preços.
A
estagflação, até então um fenômeno econômico desconhecido para os economistas
do país, causa o aumento das críticas ao orçamento deficitário e pedidos por
mais austeridade fiscal e responsabilidade com os impostos. Porém, o susto
durou pouco tempo e, em 1975, Gerard Ford tenta combater a estagflação, sem
sucesso, com um novo programa de redução de impostos. No ano seguinte, é a vez
de Jimmy Carter aprovar uma nova lei do pleno emprego, garantindo que o governo
deveria atuar para quem quisesse trabalhar estivesse de fato empregado.
·
Novo Choque do
Petróleo e Paul Volcker
Em
1979, a drástica mudança de posicionamento geopolítico do Irã motiva a OPEP a
provocar um novo choque do petróleo. Na tentativa de combater a inflação, Paul
Volcker, presidente do Federal Reserve eleva abruptamente e em escala nunca
vista os juros nos Estados Unidos.
A
recessão provocada por dois choques do petróleo e pelo chamado “choque volcker”
provoca não apenas desemprego e redução dos investimentos no mundo, mas
recessões históricas nos países com dívidas atreladas ao dólar. Países em
desenvolvimento, sobretudo na América Latina, viram suas dívidas com credores
estrangeiros explodirem culminando no período de pior crescimento de seus
produtos internos brutos na década entre 1980 e 1990 e a chamada “década
perdida” da América Latina ganha o selo de qualidade do Federal Reserve
americano.
Esse
período emblemático da história da economia latino-americana conta ainda com a
saída da maioria dos países de regimes políticos ditatoriais, o abandono de
práticas econômicas desenvolvimentistas e a entrada do Fundo Monetário
Internacional e sua propaganda das medidas do Consenso de Washington, segundo a
qual os países poderiam crescer mantendo políticas de austeridade
fiscal.
Importante
frisar que, mesmo após sucessivos déficits nos orçamentos americanos e a adoção
na maior parte do século XX de políticas de protecionismo internacional e
expansionismo fiscal nos Estados Unidos, a recomendação de organismos
internacionais de que seria benéfico aos países em desenvolvimento cortar
gastos para atrair investimentos e crescer a partir disso foi amplamente aceita
por economistas e intelectuais latinos.
Na
confusão causada pela política monetária de Volcker, os Estados Unidos elegem
Ronald Reagan como presidente. Sua política externa coincidiu com a última
década da existência da União Soviética e, embora o clima geopolítico fosse de
absoluta dominância americana, os gastos com “defesa” permaneciam elevados.
André Nassif chama a atenção para um aspecto desse intensivo investimento na
segurança nacional, “o programa armamentista de Reagan, ao mesmo tempo que
promove uma revolução tecnológica na indústria fornecedora de artefatos bélicos
para a defesa militar americana, opera, na prática, como uma política
industrial não declarada, com estímulos e investimentos maciços no complexo
eletrônico, aeroespacial e das telecomunicações”.
Observando
os setores com mais investimentos citados por Nassif é possível imaginar o
efeito que os gastos públicos não causaram na cadeia produtiva do país, na
empregabilidade e na liderança na produtividade do trabalho e na produção de
tecnologia e como influenciaram a dominância de seus produtos no comércio
internacional. É também em função dos investimentos em “defesa” que os Estados
Unidos assumem a liderança de inovação no mundo.
·
O Estado empreendedor
A
economista italiana Mariana Mazzucato escreve em “O Estado Empreendedor” a
respeito da percepção que o mundo tem dos Estados Unidos como nação que
conseguiu alcançar um elevado padrão de riqueza através da liderança do setor
privado. E demonstra lucidamente qual foi o verdadeiro caminho percorrido pelo
país na construção da economia que vemos hoje.
Nas
palavras dela, “o que se descobre é que, além de ser uma sociedade
empreendedora, um lugar onde é culturalmente natural criar e expandir um
negócio, os Estados Unidos são também um lugar onde o Estado desempenha um
papel empreendedor, fazendo investimentos em áreas radicalmente
novas”.
Para
a economista, foi primordial que o Estado estivesse assumindo o risco em
determinadas etapas do processo de inovação da indústria americana porque a
iniciativa privada não o assumiu. Ela avança sobre o tema envolvendo o risco
dos investimentos em inovação tratando justamente de investimentos na área de
segurança nacional americana, que foram hora camuflados hora aproveitados pela
indústria para fins comerciais e de disputa internacional.
·
De Reagan a Trump
Os
gastos públicos acelerados de Reagan fizeram Herbert Stein apontar a
incoerência entre discurso e prática, em 1985, afirmando que a revolução
conservadora seria o sonho de republicanos que não estão no governo, mas não o
foco daqueles que estão.
Acreditando
que a redução dos impostos estimularia novos investimentos privados e ajudaria
no aquecimento da economia, Reagan promoveu uma redução importante das tarifas.
E funcionou. Novamente, o desemprego caiu e o crescimento econômico chegou. Com
a economia avançando, os liberais cantaram vitória afirmando que as
desregulações promovidas por sua administração eram responsáveis por liberar o
mercado de amarras do governo e estimular a economia.
Afirmavam
que um governo menor estaria ligado ao sucesso econômico de Reagan. O que não
falaram foi que os gastos públicos, principalmente ligados à “defesa nacional”
saltaram de US$ 267 bilhões para US$ 393 bilhões em 1988 e que o déficit
público subiu para assustadores US$2,8 trilhões.
Porém,
não é o que vemos na propaganda, sobretudo na década de 1980 com o surgimento
do Consenso de Washington, que propagandeava às nações em desenvolvimento que o
equilíbrio orçamentário e as políticas fiscais contracionistas, além do livre
comércio de bens, eram o caminho para o desenvolvimento econômico.
A
verborragia do livre mercado foi disseminada entre 1980 e 1990 nos Estados
Unidos concomitantemente ao impulsionamento de gastos públicos e déficits
orçamentários crescentes. Isso diz muito sobre o modelo de dominação comercial
e político americano no sentido de chutar a escada, como diria Ha-Joo
Chang.
Em
1989, George Bush pai assume a presidência. Enquanto concorria contra Michael
Dukakis nas eleições de 1988, verbalizou inúmeras vezes sobre os benefícios do
“small government”. Assusta que alguns candidatos republicanos nos Estados
Unidos, mesmo após sessenta anos de gastos públicos volumosos e déficits
orçamentários históricos numa política econômica claramente intervencionista,
falem abertamente sobre o papel diminuto que o governo terá em sua
administração.
Porém,
sob Bush, o governo não foi tão “small” quanto a propaganda dizia que seria.
Assustado com a aproximação de uma recessão e a perda de arrecadação, apresenta
a Lei de Reconciliação Orçamentária, aumentando impostos em alguns setores e
simulando cortes de gastos em algumas áreas.
A
impopularidade de Bush favorece o candidato democrata Bill Clinton, que assume
a presidência em 1993 com uma campanha baseada no equilíbrio orçamentário e na
construção de superávits primários.
Em
raros anos de coerência entre o discurso e a administração, os Estados Unidos
viam realmente um presidente empenhado no controle do orçamento, tanto que
entrega três superávits fiscais anuais seguidos durante sua gestão. Com a verba
acumulada pela economia, consegue diminuir razoavelmente a dívida pública
americana. Embora tenha sido keynesiano em alguns momentos, não podemos afirmar
que a doutrina foi plenamente adotada em seu governo.
Porém,
tomou medidas gravemente liberais e, em 1999, atuou para desregular o sistema
bancário, os fundos de investimento e os derivativos. Em resumo, talvez o
momento mais equilibrado do orçamento americano aliado a um dos pilares do
liberalismo, a desregulação, tenha contribuído para uma das piores tragédias
econômicas que o mundo já produziu, a crise do subprime em 2008. Muito se
especula sobre as causas do terremoto no sistema de crédito, mas ninguém tem
dúvida quanto à responsabilidade do mercado atuando num sistema sem
regulação.
Clinton
entregou a Casa Branca, um orçamento equilibrado e superávits fiscais
sucessivos a George W. Bush, em 2001. Este assume um orçamento superavitário
com bastante recurso em caixa e inaugura sua presidência com uma
irresponsabilidade clássica. Com maioria nas duas casas, aprova uma redução de
impostos no valor US$ 1,35 trilhão tentando aquecer a economia e manter sua
popularidade.
Bush
definitivamente não deu sorte. Ainda em 2001 a bolha da internet estourou e o
maior ataque terrorista da história do país paralisou a economia americana.
Nesse cenário de caos, os assessores econômicos pisam no acelerador fiscal
junto com o presidente e os gastos públicos são impulsionados no ritmo da
exploração da matéria pela mídia.
Com
carta branca para gastar como quisesse, Bush não pensou duas vezes em abandonar
o livre mercado para abraçar Keynes em sua essência. Mais gastos destinados à
“defesa” foram aprovados. Em 2002 os superávits promovidos por Clinton eram
lembrados quase como um devaneio no imaginário dos analistas
econômicos.
No
último ano de Bush, os Estados Unidos percebem que a linha de pensamento
hayekiana, de que o livre mercado autoregulado e sem interferência
governamental levaria ao crescimento econômico, não funciona. A falta de
regulação no mercado financeiro, liberado por Clinton sete anos antes, cobra
seu preço mais alto com a crise de 2008. Nesse momento, lembra Wapshott que
todos os assessores econômicos que uma vez haviam externado o desejo dos
Estados Unidos adotarem políticas de desregulação reconhecem o equívoco da
falta de regras para determinados setores.
Nesse
momento podemos lembrar do raciocínio liberal hayekiano de que a livre
iniciativa individual perseguindo seus próprios interesses geraria o
desenvolvimento. Vimos como a livre iniciativa do sistema bancário americano
ajudou o mundo.
Yanis
Varoufakis aponta esse momento da história como um potencial ponto de inflexão
a respeito de como o mundo se comportará nas próximas décadas. A predominância
norte-americana pode ter sido perdida para a China e demais nações em
desenvolvimento justamente pela prática liberal promovida por Bill
Clinton.
A
reboque da crise, a mídia reacende o discurso keynesiano e Bush aproveita o
momento para fazer o que fez durante toda sua administração, aumentar os gastos
públicos a fim de conseguir algum crescimento econômico e salvar sua combalida
popularidade.
Em
2009, Barack Obama assume pela primeira vez e imediatamente sanciona um
superpacote de estímulo à economia no valor de US$ 787 bilhões. O objetivo
declarado era promover a criação de 3,6 milhões de empregos. Mais afastado das
propostas liberais e mais perto de Keynes, impossível. No final de 2009,
aprovou um novo pacote de estímulo. O déficit orçamentário nesse ano foi de US$
1,4 trilhões.
Em
2020, Trump assume e anuncia um pacote impressionantemente grande de US$ 2
trilhões para enfrentar os efeitos da crise de Covid-19. Biden, em 2021,
anunciou um pacote de estímulo econômico muito parecido, de US$ 1,9 trilhões. O
somatório de sucessivas medidas de estímulo econômico ao longo do último
século, desde o século XIX com o protecionismo apontado por Ha-Joon Chang, até
os déficits apresentados por Nicholas Wapshott e a crítica contundente de André
Nassif e Mariana Mazzucato não deixam dúvidas a respeito da natureza da
economia norte-americana e o fato dela estar tão afastada do livre mercado, do
pensamento de Hayek e de Mises, quanto poderia. Também ajudam a construir um
contraponto importante ao discurso de que os Estados Unidos são uma nação forjada
pelo empreendedorismo e pelo investimento da iniciativa privada em
inovação.
Os
Estados Unidos são um país construído sim com ajuda da sociedade, dos
imigrantes e dos empreendedores, mas com muita participação do Estado e do
orçamento federal e mais alinhamento prático com a visão econômica de Keynes do
que com iniciativas governamentais de promoção do livre
mercado.
A
confusão política atual assimilada pelo senso comum a respeito do alinhamento
americano com a política neoliberal pode ser fruto tanto da propaganda exercida
por FMI, Banco Mundial e pelo próprio governo dos Estados Unidos quanto à
emergência de medidas de liberalização econômica nos países em desenvolvimento
na década de 1980 quanto pela miscelânia de discursos equivocados que parte da
liderança política mundial dissemina atualmente pelas redes sociais, cientes ou
não dos fatos históricos da América e que em grande parte servem ao reforço da
polarização entre aqueles que são pró-mercado e os que defendem maior
participação do Estado, mas que em nada contribuem para o crescimento da
reflexão econômica.
Fonte:
Por Rafael Cabral Maia, no Le Monde
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