Festa Junina:
a origem da celebração pagã que virou religiosa e 'caipira' no Brasil
Para
um brasileiro, pode ser difícil entender como as estações do ano são capazes de
influenciar o imaginário e a própria organização da sociedade.
Mas
em países de clima temperado ou frio, onde primavera, verão, outono e inverno
são mais demarcados, é contagiante a alegria com que o verão é celebrado,
depois de meses de dias curtos, temperaturas frequentemente negativas e poucas
possibilidades de interação social.
É
por isso que desde os tempos mais antigos, as primeiras civilizações europeias
já tinham festas específicas para celebrar tanto a chegada da primavera — a
volta da vida desabrochando — quanto o solstício de verão — o ápice do sol, o
dia mais longo do ano.
E,
segundo pesquisadores, são esses dois tipos de celebração, depois abraçados
pelo catolicismo, que explicam a origem das festas juninas, que no Brasil
acabariam sendo reinventadas com um sotaque próprio.
"As
origens são mesmo as antigas festas pagãs das antigas civilizações, ligadas aos
ciclos da natureza, às estações do ano. Sociedades antigas realizavam grandes
festividades, com durações longas, até de um mês, sobretudo nos períodos de
plantio e de colheita", contextualiza o pesquisador de culturas populares
Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da Universidade de São Paulo e consultor da
cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
"A
primavera era bastante comemorada, como o reingresso da vida mais dinâmica, o
rebrotar da natureza e das atividades depois do período do inverno, sempre de
muita dificuldade, luta pela sobrevivência e recolhimento", comenta ele.
Se
nessa época do ano o que se via era a explosão da natureza, a vida social
espelhava isso. "Os grupos humanos realizavam grandes festividades
dedicadas à própria natureza, muitas vezes rendendo homenagens aos antigos
deuses relacionados à natureza, à vida animal, à vida vegetal de um modo geral.
Eram festas comunitárias com muita alegria, muita alimentação e reunião de
pessoas em grande número: foi o que deu origem às festas juninas que a gente
conhece no Brasil e em outras partes do mundo."
Autora
do livro Festas Juninas: Origens, Tradições e História, a socióloga Lucia
Helena Vitalli Rangel, professora na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), explica que a origem das festas juninas está nos "rituais
de fertilidade agrícola" de diversos povos — da Europa, do Oriente Médio e
do norte da África.
"Os
[mitológicos] casais férteis Afrodite e Adonis, Tamuz e Izta, Isis e Osíris
eram homenageados nesses rituais, pois representavam a reprodução humana, numa
época de evocação da colheita", afirma.
"Eram
rituais para que a colheita fosse farta e para abençoar o próximo período
agrícola. Era período de congraçamento, de partilha e estabelecimento de
alianças entre as comunidades. Eram rituais de fartura e abundância em todos os
sentidos, no âmbito alimentar e na relação entre as famílias: casamentos,
batizados e compadrio."
"No
hemisfério norte o solstício de verão era o auge do período ritual e do
trabalho agrícola coroado pela colheita", acrescenta a socióloga.
Vale
ressaltar o óbvio, para que não fique um certo estranhamento ao leitor menos
atento: no hemisfério norte, origem de tais celebrações, as estações do ano são
invertidas em relação ao hemisfério sul, onde está o Brasil.
• Apropriação cristã
Mas
onde então entram os santos nessa história? Na festa junina contemporânea,
estão presentes algumas das figuras mais populares do catolicismo — e isso
acabou impregnado de tal forma na celebração que a religiosidade se misturou ao
folclore e às tradições populares, transcendendo os ritos normatizados pela
Igreja Católica.
O
primeiro dos santos juninos é Antônio (? - 1231), frade franciscano de origem
portuguesa que ficou conhecido pelo que fez na Itália no início do século 13.
Com fama de milagreiro, foi canonizado pela Igreja onze meses depois de sua
morte — trata-se de um recorde até hoje não superado na história do
catolicismo.
No
imaginário popular, Antônio se tornou o bonachão santo das coisas perdidas,
sobretudo nos países europeus, e o casamenteiro, principalmente em Portugal e
no Brasil. Simpatias, promessas e orações específicas marcam a devoção a ele. E
sua presença nos festejos juninos geralmente está ligada a essas tradições — a
Igreja fixou o 13 de junho, data da morte dele, como dia consagrado ao santo.
Em
24 de junho, o catolicismo celebra o nascimento de João Batista (2 a.C - 28
d.C.). É o santo máximo das comemorações juninas — há versões que apontam que
originalmente eram "festas joaninas" e não festas juninas; e,
sobretudo no nordeste brasileiro, a Festa de São João é um evento de dimensões
impressionantes.
Personagem
de historicidade controversa, João Batista é apontado como primo de Jesus
Cristo e aquele que o batizou.
Em
seu livro 'O Ramo de Ouro', o antropólogo escocês James Frazer (1854-1941) diz
que ocorreu um processo histórico "de acomodação", deslocando para a
figura de São João Batista a comemoração do solstício de verão.
Por
fim, o mês de junho ainda tem a data do martírio de São Pedro (? - 67 d.C) e
São Paulo (5 d.C. - 67 d.C.), dois dos pioneiros do cristianismo. Pedro foi um
dos 12 apóstolos de Jesus e acabou depois considerado o primeiro papa do
catolicismo.
Paulo
de Tarso, por sua vez, é reputado como um dos mais influentes teólogos da
história. Parte significativa dos textos que compõem o Novo Testamento da
Bíblia é atribuída à sua pena. É dele, portanto, a autoria de parcela
considerável da ressignificação de Jesus Cristo após sua morte na cruz — em
outras palavras, é possível dizer que Paulo é responsável pela transformação de
Jesus em um mito.
Uma
observação necessária: apesar de a Igreja celebrar em conjunto a memória do
martírio de Pedro e de Paulo, por tradição este último nem sempre é associado
aos festejos juninos.
À
medida que o catolicismo foi se transformando em religião do status quo,
sobretudo a partir da cristianização do Império Romano, no ano de 380 d.C.,
diversos rituais tratados como pagãos acabaram sendo abraçados e apropriados
pela Igreja. "A Igreja Católica não pôde desmanchar essas práticas",
reconhece Rangel.
Com
os rituais de primavera e verão, não foi diferente. "Várias dessas
festividades foram adaptadas", conclui Ikeda. "Aos poucos passaram a
ser tratadas como festas em honra aos santos juninos."
"Mas
é importante notar que mesmo dentro do ciclo cristão, esses santos estão
ligados tematicamente com aquelas mesmas ideias, os mesmos princípios das
festividades [dessa época do ano] das antigas civilizações", pontua o
pesquisador.
Santo
Antônio, por exemplo, é o casamenteiro — em uma leitura lato sensu, poderia ser
encarado como o santo da família, da unidade familiar, da reprodução humana.
"São João também está ligado, sobretudo nos interiores do Brasil, a essa
questão dos relacionamentos afetivos. Tradicionalmente, faz-se muito casamento
no Dia de São João", diz Ikeda.
"Ele
também traz a característica da fartura [que remete aos períodos de plantio e
de colheita, em oposição aos rigorosos invernos], dos alimentos, das bebidas,
aquilo que chamamos na antropologia de repasto ritual ou repasto
cerimonial", afirma o pesquisador.
De
modo geral, na leitura proposta por ele, todos os santos juninos estão ligados
aos ciclos da natureza — fogo, água, fertilidade, abundância. Está aí São Pedro
e a ideia de que ele é quem controla o tempo. "Vejo uma relação entre eles
e os antigos rituais, uma relação ainda presente. Embora a gente não perceba
mais, eles têm essa ligação com os elementos fundamentais da existência
humana", comenta.
Nas
festas populares essas forças da natureza se fazem representadas, muito além da
mesa farta. Os mastros juninos que são erguidos representam a potência dos
troncos, das árvores que resistem ao inverno. A fogueira é a luz: ilumina,
aquece, afugenta animais ferozes, assa os alimentos.
Na
releitura contemporânea, portanto, as festas juninas "guardam as
reminiscências das ancestrais aglomerações festivas", conforme frisa
Ikeda.
• Tradição brasileira
Paçoca,
pamonha, pipoca, bolo de fubá, canjica, curau, pé de moleque, maçã do amor.
Vinho quente e quentão. Brincadeiras de pular fogueira e dançar a quadrilha.
Chapéu de palha, camisa xadrez, calça com remendos. Bombinhas e rojões, fogos
de artifício. Bandeirinhas coloridas penduradas em varais de barbante.
No
Brasil, as festas juninas foram reinventadas e se tornaram uma exaltação das
raízes caipiras. E muito além da religiosidade, tornou-se tradição, folclore.
Como se o ciclo se fechasse: o que nasceu como ritual gregário, de celebração
social, e depois foi apropriado por uma religião dominante, acabou na cultura
popular sendo devolvido ao sentido original — ou seja, a festa pela alegria de
festejar.
Não
à toa, a folclorista Laura Della Mônica registrou em seu livro Os Três Santos
do Mês de Junho que "respeitar as festas e orações dedicadas a cada um dos
três santos do mês de junho, segundo a tradição, é obrigação e dever de todos
nós, pelo menos culturalmente". O "todos nós" é o brasileiro.
Porque mesmo nascida no Velho Mundo, as festas juninas assumiram uma identidade
própria em território nacional.
"A
colonização da América colocou novamente a questão [da apropriação cultural]
para os jesuítas e todos os religiosos que se instalaram no continente
sul-americano", pontua a socióloga Rangel.
"No
caso do Brasil, houve uma coincidência do calendário. No inverno seco, o
solstício de inverno marca o período dos trabalhos agrícolas mais importantes.
Do mesmo modo que, para os povos do hemisfério norte é o período de rituais de
fertilidade, [a festa por aqui também vem] com as mesmas características,
congrega as famílias na evocação da abundância."
As
tradições regionais guardam suas especificidades, como era de se esperar em um
país de dimensões continentais. "Sempre foram festas e rituais
populares", salienta Rangel.
"No
Brasil temos expressões regionais muito fortes: o São João nordestino, o Boi
Bumbá da região norte, o Boi de Mamão no sul, Cavalhadas no centro-oeste e as
festas do Divino Espírito Santo e muitas regiões, particularmente no estado de
São Paulo."
A
pesquisadora comenta que "conforme os padres vão chegando nas paróquias,
começam a interferir nas comemorações". É quando vem o sincretismo: a
festa popular também é festa católica, a quermesse organizada pela igreja
também tem os rituais populares.
"Até
hoje as paróquias, as igrejas, realizam festas juninas. Só não estão realizando
neste período em função da pandemia de covid. Mesmo que as maiores festas
estejam predominantemente tendo somente o caráter festivo, mais comercial, de
exploração pelo ganho financeiro, as igrejas continuam fazendo comemorações aos
santos juninos", pontua Ikeda.
"Embora
muitas pessoas não católicas também participem das festas, embora predomine uma
visão genérica que as festas juninas não guardam mais relação com a
religiosidade, há ainda um relacionamento das igrejas com esses santos
juninos."
Para
ele, a evolução da festividade consiste no fato de que "toda aglomeração
possibilita o incentivo ao comércio". "E a alimentação está neste
centro, na busca mesmo do repasto cerimonial e festividades, danças e músicas
que sempre estiveram ligados aos antigos rituais."
Ikeda
lembra que a as festas populares têm uma importância antropológica por serem
"práticas gregárias que ciclicamente comemoram a própria constituição, a
própria existência das comunidades enquanto coletividade, a reunião de grupos
humanos que preservam uma história comum".
"No
caso da feste junina, esse vestir-se de caipira, simbolicamente, é um
instrumento de importância até emocional e psicológico para as pessoas se
sentirem com a identidade ligada ao passado, aos pais e avós que praticavam
aquilo, comemorando de forma parecida", analisa o pesquisador.
"Assim,
a prática possibilita a guarda de uma continuidade ao longo do tempo."
• Suspensão sanitária
Nunca
é demais enfatizar: com a pandemia de covid-19 ainda fora de controle, seria
uma péssima ideia realizar qualquer tipo de festa neste período — se quer
comemorar, faça em casa somente com seu núcleo familiar.
Então,
2021 será o segundo ano consecutivo em que o Brasil não terá, ao menos de modo
ostensivo, a tradição das festividades com bandeirinhas coloridas. Doutora em
História das Ciências da Saúde e autora do livro A Gripe Espanhola na Bahia, a
historiadora Christiane Maria Cruz de Souza afirma que esse cancelamento não
ocorreu nem na epidemia de 100 anos atrás.
Isto
porque a gripe chegou ao Brasil bem depois dos festejos de 1918. E, no ano
seguinte, a epidemia estava controlada. "A gripe espanhola não teve
nenhuma interferência no São João. Os primeiros registros da doença apareceram
em setembro de 1918 e a doença foi se extinguindo aos poucos. Em Salvador, ele
não avançou para o ano de 1919. Houve alguns surtos, em lugares mais remotos,
até 1920, mas sem caráter epidêmico."
É
de se supor, inclusive, que as festividades de 1919 tenham sido ainda mais
animadas. "Passada a epidemia de gripe espanhola, tudo o que as pessoas
queriam eram esquecê-la", afirma Souza.
Em
20 de junho de 1919, entretanto, surgiram os primeiros registros indicando uma
epidemia de varíola na capital da Bahia.
"Começaram
a aparecer um caso aqui, outro ali, mas ainda sem a força suficiente para
poucos dias depois interditar os festejos de São João", nota a
pesquisadora.
"As
autoridades sanitárias demoraram muito para reconhecer que ocorria uma epidemia
terrível de varíola. Autoridades públicas só costumam reconhecer a existência
de uma epidemia quando se torna inevitável devido ao acúmulo de adoecimentos e
mortes, quando o número de doentes e mortos ultrapassa a normalidade esperada
para os casos da doença. Isso demora um tempo."
Rangel
ressalta, inclusive, que até a primeira metade do século 20, as festas juninas
eram muito menores, restritas a familiares e pequenos grupos comunitários.
Muito menos do que os eventos de hoje em dia. "Eram festas de arraial, de
quintais, de quermesses", diz.
"Elas
só se transformaram em grandes espetáculos na segunda metade do século 20, na
esteira da espetacularização do carnaval."
Fonte:
BBC News Brasil
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