7 coisas
que Divertida Mente 2 revela sobre o cérebro e as emoções, segundo
especialistas
A
animação Divertida Mente 2, da Disney/Pixar, era um dos lançamentos mais
aguardados do cinema em 2024 — não à toa, superou o filme Duna 2 e se tornou a
maior bilheteria do ano até o momento, com menos de duas semanas em cartaz.
Boa
parte do enredo se passa na cabeça de Riley, uma menina que enfrenta todos os
desafios da transição para a adolescência — o Divertida Mente 1, de 2015,
acompanha a personagem durante a infância.
Mas
as estrelas principais da história são as emoções. No primeiro filme,
conhecemos Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojo. Na parte dois, a turma ganha
os reforços de Ansiedade, Inveja, Vergonha e Tédio.
A
partir da interação desses personagens, Riley reage, cria memórias e forma
traços de personalidade.
Mas
o que há de ciência por trás da animação? O roteiro contou com a consultoria de
pesquisadores, que usaram alguns conceitos de psicologia e psiquiatria para
elaborar a trama.
1.
As emoções ficam complexas (e diversas) conforme crescemos
A
psiquiatra Gibsi Rocha, professora da Escola de Medicina da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), destaca que os roteiros de
Divertida Mente têm como uma de suas bases as pesquisas do psicólogo americano
Paul Ekman.
"Ele
foi pioneiro no estudo das emoções e das expressões faciais ou corporais",
resume a médica.
"Segundo
os trabalhos de Ekman, as emoções que aparecem nas animações são universais e
estão em todas as culturas do mundo", complementa ela.
A
forma como essas emoções se manifestam conforme crescemos também é retratada
com certa fidelidade nas duas animações.
Ou
seja: na infância, emoções mais básicas, como alegria, tristeza, medo, nojo e
raiva, são de fato as mais preponderantes. Elas aparecem logo após os reflexos
iniciais do bebê, quando ele começa a interagir com o ambiente.
Nessa
etapa, a criança pequena já sorri ao se interessar por algo ou chora ao sentir
tristeza e medo.
Porém,
conforme crescemos e entramos na adolescência, outras emoções ficam
preponderantes — assim como acontece na cabeça de Riley, onde ansiedade, tédio,
inveja e vergonha dão as caras quando o "botão da puberdade" é
acionado.
A
psicóloga Marjorie Wanderley, especialista em saúde da criança e do adolescente
do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, pondera que esse grupo de emoções
mais profundas já aparece na infância.
"Podemos
pensar, por exemplo, na vergonha, algo muito comum entre crianças. Mas de fato
essas emoções não são tão complexas e ganham mais protagonismo a partir da
transição para a adolescência", diz a especialista.
2.
As emoções tornam as memórias inesquecíveis
As
animações também retratam cada memória de Riley como uma bola de vidro — a cor
da esfera define a emoção relacionada àquele episódio.
Por
exemplo: a lembrança da primeira vez que ela andou de patins no gelo possui
tons amarelos, relacionados à alegria.
As
especialistas consultadas pela BBC News Brasil explicam que a emoção vinculada
a cada episódio que vivemos torna determinadas experiências praticamente
inesquecíveis.
"Os
processos de aprendizado são facilitados pelas emoções", diz Wanderley.
"É
por isso que os professores de cursinho pré-vestibular criam tantas músicas e
paródias para ensinar certos conteúdos. As melodias estão relacionadas com as
emoções e isso nos ajuda a memorizar as informações", complementa ela.
Certamente
cada pessoa tem memórias inesquecíveis — e elas estão diretamente relacionadas
ao sentimento experimentado naquele momento. E isso inclui coisas boas (o
primeiro beijo, uma nota boa na prova, uma oferta de emprego, uma festa…) e
ruins (um assalto, uma doença, um acidente…).
Ainda
no primeiro filme, conforme Riley cresce, as tais bolas de memórias ganham
múltiplas cores. Ou seja, uma recordação que era amarela (de alegria) fica
amarela-azul (de alegria com tristeza) ou roxa-verde (de medo com nojo).
"É
o caso de uma lembrança que temos de nossos avós. Ela pode ser alegre no
início, mas, quando eles morrem, se torna agridoce, com um misto de felicidade
e tristeza", cita Wanderley.
Isso
mostra mais uma vez como nossos sentimentos se aprofundam e ganham complexidade
conforme envelhecemos.
"Com
o passar do tempo, o que a gente viveu de fato não importa tanto. O mais
relevante, em termos de memória, é o significado que damos para aquele
momento", observa a psicóloga.
"Por
isso, é muito comum que duas pessoas que viveram exatamente a mesma coisa
tenham lembranças completamente diferentes, segundo as emoções que cada uma
sentiu."
3.
Não existe emoção boa ou ruim
Uma
das principais mensagens de Divertida Mente está relacionada à noção de que
todas as emoções são importantes para nossa vida — mesmo aquelas que
consideramos ruins, como tristeza, medo, nojo, raiva…
"Um
pouco de tristeza é fundamental para a gente ter a clareza de encarar a
realidade e os desafios da vida", constata Rocha, que se especializou em
Psiquiatria da Infância e da Adolescência no Hospital Monte Sinai, em Nova
York, nos EUA.
A
raiva permite reagirmos às injustiças que nos cercam. O medo nos faz evitar
situações perigosas e potencialmente fatais. Já o nojo impede o contato com um
alimento estragado, que poderia causar uma infecção grave.
E
esse mesmo racional se aplica às novas emoções, que são apresentadas na parte
dois da animação: leves pitadas de ansiedade, por exemplo, nos permitem
antecipar diferentes cenários e estar prontos para lidar com eles de forma
satisfatória.
"A
ansiedade sobre dar uma aula ou uma entrevista, por exemplo, faz com que eu me
prepare para essas situações e fique melhor na hora de realizar essas
atividades", conta Rocha.
"Todas
as emoções são importantes para a construção de nossa identidade",
complementa ela.
O
problema, explicam as especialistas, é quando essas emoções saem do equilíbrio
— e uma delas acaba tomando o centro de controle do cérebro.
"Até
alegria exagerada faz mal. Essa, aliás, é uma crítica do filme à pressão que
vivemos hoje para estarmos felizes o tempo todo", reflete Rocha.
Já
a tristeza em demasia desemboca em depressão. O medo excessivo paralisa. O nojo
impede novas experiências. E assim por diante.
Um
cenário desses é retratado em Divertida Mente 2, quando a Ansiedade toma para
si toda a responsabilidade e deixa as demais emoções em segundo plano.
O
que parecia benéfico num primeiro momento para Riley evolui para algo sufocante
e prejudicial, como é possível acompanhar na trama.
4.
Esquecer é algo positivo
No
desenho, muitas das esferas de memória perdem as cores com o passar do tempo —
e são descartadas numa espécie de "lixão cerebral".
Algo
similar acontece na nossa própria cabeça e, segundo especialistas, deve ser
encarado mais como uma dádiva do que como uma maldição.
"Esquecer
é algo salutar para nossa sobrevivência", diz Wanderley.
"Nós
temos esse desejo de não perder nada do que vivemos, mas o descarte de algumas
memórias faz parte do processo de aprendizado."
"A
gente só consegue criar novas memórias porque recicla lembranças que não são
tão úteis assim", complementa ela.
A
psicóloga também destaca como a animação mostra a importância do sono nesse
processo de organização das recordações: é apenas quando Riley vai para a cama
e "apaga" que as esferas são organizadas adequadamente.
Isso
também acontece no nosso cérebro durante o sono — sem a presença de bonequinhos
fofos e amigáveis (infelizmente).
Na
vida real, esse processo é mediado por pulsos elétricos, neurotransmissores e
outros elementos que fazem a comunicação entre os neurônios e as demais células
do sistema nervoso central.
5.
As bases de nossa personalidade mudam
No
desenho, o centro de controle do cérebro onde as emoções trabalham é conectado
com uma série de bases, ou ilhas. Elas representam aquilo que influencia a
personalidade de Riley.
Uma
dessas estruturas trata da família. Outra, das amizades. Uma terceira, da
prática de esportes (ou de hockey, mais especificamente). E assim por diante.
Na
segunda animação, é possível observar uma mudança importante nessas bases: o
campo que representa a família diminui de tamanho, enquanto o das amizades fica
maior.
Isso
é algo que acontece com todo mundo na passagem da infância para a adolescência.
"Nesse
período, há uma mudança de prioridades. Os amigos passam a ser algo muito
importante para nossa base de personalidade", explica Wanderley.
"Esse
processo de distanciamento dos pais, geralmente cercado de revolta e rebeldia,
é extremamente natural e saudável."
A
psicóloga aponta que, até certo estágio da vida, filhos e pais funcionam como
uma unidade harmônica, quase numa simbiose.
"Mas
chega uma hora que não dá para continuar assim. O adolescente precisa descobrir
quem ele é, qual a sua individualidade e identidade. E isso envolve um processo
em que ele estabelece que é diferente daqueles que o criaram", diz ela.
Obviamente,
esse momento costuma ser bem doloroso para os pais.
No
final da adolescência e começo da vida adulta, a tendência é que essas cisões
se amenizem — e os filhos busquem uma nova aproximação com a família.
6.
As convicções/crenças têm diferentes origens emocionais
Uma
novidade no enredo de Divertida Mente 2 é o surgimento de uma espécie de
subsolo do centro de comando do cérebro.
Ali,
há um lago, onde as emoções jogam as esferas com memórias mais relevantes.
Dessa interação, surge uma corda que, ao ser tocada, diz uma frase.
Uma
lembrança alegre de Riley com a família gera um fio que repete: "Eu sou
uma boa pessoa."
Outro,
relacionado a um ponto marcado numa partida de hockey, garante: "Eu sou
uma ótima jogadora."
Wanderley
entende que, dentro da terapia cognitivo-comportamental, uma das linhas de
pesquisa da psicologia, essas cordas podem ser interpretadas pelo conceito de
"crenças".
"Essas
crenças ou convicções são formadas desde a infância e retratam o modo como nos
relacionamos com o mundo", conta a especialista.
"Elas
podem ser muito rígidas ou flexíveis. No começo do segundo filme, é possível
ver que Riley tinha crenças positivas sobre si mesma, pois ela teve uma criação
muito amorosa."
"Por
isso, ela se considerava uma pessoa legal, que merecia ser feliz",
complementa a especialista.
Isso
muda um pouco quando chega a adolescência. A ascensão de Ansiedade, Inveja,
Tédio e Vergonha bagunça esse cenário.
Riley
passa a lidar com inseguranças, se afasta das amigas de infância e questiona
suas capacidades.
"Nesse
momento, ela desenvolve convicções que chamamos na terapia
cognitivo-comportamental de 'se - então'", pontua Wanderley.
Na
animação, Riley cria pressupostos do tipo: "Se eu não entrar no time de hockey,
então minha vida acabou."
"Nós
fazemos esse tipo de conexão o tempo todo e as tomamos como verdades absolutas.
Muitas vezes, elas só são questionadas por um terceiro, como um
terapeuta", diz a psicóloga.
"Ou
seja, grande parte do sofrimento pode estar relacionado a coisas que uma pessoa
acredita, mas não são necessariamente verdades", reflete ela.
7.
As crenças formam o ‘senso de ser’ — e é importante desenvolver uma
flexibilidade cognitiva
Em
Divertida Mente 2, os tais fios que representam as crenças/convicções se juntam
e formam uma espécie de escultura.
"Na
visão da terapia cognitivo-comportamental, esse objeto representa o 'senso de
ser'", explica Wanderley.
Em
outras palavras, é como se as memórias cheias de emoções formassem nossas
crenças e convicções — que, por sua vez, interagem para criar uma espécie de
identidade própria, ou como nos enxergamos diante do resto do mundo.
Um
dos pioneiros no desenvolvimento desse conceito foi o psicólogo
alemão-americano Erik Erikson (1902-1994).
No
início da animação, Riley possui uma escultura harmônica e bela, de tons
suaves, que reforça aqueles sentimentos positivos de ser feliz e amada.
Porém,
com o avançar da trama — e a chegada da puberdade, com ansiedade e companhia
limitada — a tal peça ganha formas duras e tortuosas, com cores fortes, que
representam inseguranças, aflições e temores.
"A
depender de como essas crises se desenrolam, o indivíduo sofrerá",
constata Rocha.
"Esse
senso de ser pode ser rígido e inflexível, o que causa agonia", concorda
Wanderley.
"Mas
vemos que essa estrutura pode se tornar maleável e mudar de cor e forma de
acordo com a situação."
"Essa
flexibilidade cognitiva, algo que buscamos constantemente na psicoterapia,
acontece quando nós conseguimos adequar nossas crenças segundo o que estamos
vivendo."
"Desse
modo, nos questionamos o tempo todo e damos espaço para outras emoções
atuarem", conclui a psicóloga.
Fonte:
BBC News Brasil
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