terça-feira, 25 de junho de 2024

Rudá Ricci: A Era dos Governos Chochos

Uma grave regressão política marca os municípios brasileiros. Com investimento público em queda e dependentes de emendas parlamentares, gestões sem viço sepultaram inovações dos anos 1980 e 90 e rendem-se cada vez mais ao fisiologismo e aos partidos-carteis

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Se o final do século XX foi de enorme inovação na gestão municipal, as duas primeiras décadas do século XXI foram de inércia.

O processo de descentralização de serviços públicos que ocorreu logo após a promulgação da Constituição de 1988 obrigou ao ajuste de posicionamento do papel dos municípios brasileiros.

Eles foram os grandes beneficiários do processo, de onde surgiu o que alguns autores denominam de “federalismo municipal”. É deste período a emergência do FPM, o Fundo de Participação dos Municípios, formado por recursos arrecadados pelo Imposto de Renda (IR) e pelo Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). No final do período militar, o FPM era formado por 10% das arrecadações do IR e do IPI. Após a promulgação da Constituição de 1988, a parcela das arrecadações direcionadas ao fundo elevou-se para 22,5%. Pouco mais de 60% dos municípios brasileiros passaram a depender deste repasse.

Aqui se encontra um dos impasses para a liderança municipal em investimentos. A arrecadação própria com impostos, taxas e contribuições de melhoria avançou 7,6% reais de janeiro a outubro de 2023 contra igual período de 2022. A alta foi menor nas maiores cidades. Contudo, os recursos do FPM caíram 0,9% em 2023 e os de ICMS, dos Estados, baixaram 5,7%. O aumento de investimentos municipais se deu nos últimos anos em função de transferências de emendas parlamentares e operações de crédito.

O investimento público atingiu 2,61% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2023, o segundo ano seguido de alta, mas em um patamar ainda insuficiente para tirar o Brasil do quadro de estagnação iniciada em 2016. No período, o gasto dos governos com investimentos oscilou entre 1,94% e 2,63% do PIB. Em 2010, chegou a 4,72% do PIB.

Nos governos federais de FHC e Lula 1 e 2, a União concentrou fortemente os recursos públicos para investimentos. Seu percentual chegou a ultrapassar 70% do total. No caso das gestões Lula, o acordo com empresários para manter o índice de contratações e que teve como contrapartida a não cobrança do IPI afetou diretamente os recursos repassados pelo FPM. Foi a porta de entrada para nacionalização de programas sociais e de infraestrutura.

Neste momento, os deputados federais passaram a ser o meio de chegada dos prefeitos aos ministérios e autarquias federais que irrigavam o país com programas e mais programas, como “Minha Casa, Minha Vida”, “Segundo Tempo”, patrulhas mecanizadas, estações de tratamento de esgoto, praças da juventude e tantos outros. Foi o período de ascensão do baixo clero ao topo da República e queda do papel real de liderança dos partidos políticos. O baixo clero proliferou em todos os partidos com a fome clientelista que o caracteriza, criando uma bancada própria. O Centrão é formado pelo baixo clero e o nome diz pouco sobre seu ideário real.

Mas, o dinheiro concentrado não foi o único vilão. Se nos anos 1980 e 1990 tivemos tantas inovações municipais como o orçamento participativo e as reformas educacionais de ponta, articulando estudos da neurologia e psicologia com mudanças curriculares, enturmações, avaliações diagnósticas, tempo e espaços escolares, o século XXI é o de governos locais focados em metas estatísticas e gestão por programas.

Em outras palavras, os governos municipais se desumanizaram já que perderam as biografias de seu horizonte substituídas por números e deixaram de governar por demandas sociais.

Assim, governos municipais se tornaram autóctones, autorreferentes. Quem conhece de perto as gestões locais sabe que o perfil dos funcionários mudou muito a partir de então. Servidores criativos e ousados foram rareando e surgiu o servidor que sabe preencher formulários e cadastros em plataformas federais e estaduais. Cargos comissionados passaram a ter o perfil de “cicerones” do contato com deputados e técnicos estratégicos em ministérios e secretarias estaduais. A inércia brotou em cada secretaria municipal e o cidadão sumiu da sua vista.

A falta de ousadia e a ação mecânica e programada deu lugar às cabeças de planilha. Gestões sem viço, recuadas e previsíveis criaram um terreno infértil.

No campo político, a dependência em relação aos parlamentos foi crescendo de maneira exponencial. Em relação às Câmaras Municipais, fez-se o milagre da multiplicação dos pães. Após as eleições, em questão de semanas, um parlamento oposicionista se torna amigo do prefeito desde criancinha. O milagre envolve indicação de membros para o novo governo, liberação de recursos para reformas de casas de eleitores e outras vantagens.

Mas, é na relação com deputados, estaduais e federais, que o impacto maior ocorre. A dependência política faz das gestões municipais uma espécie de peça numa engrenagem que Richard Katz e Peter Mair denominaram de “partidos-cartéis”. Nesta situação, os partidos e governos não dependem mais dos eleitores após as eleições. Dependem de fundos públicos, nomeações e fundos partidários. Criam um círculo de fidelidades e troca de favores que o cidadão desconhece e não participa. Emendas parlamentares, negociações para acesso aos fundos eleitorais e outros recursos para investimentos transformam prefeitos em cabos eleitorais de deputados.

E, assim, chegamos à Era dos Governos Chochos. O município, que mudou de estatuto na estrutura federativa desde a Constituição de 1988, voltou ao seu canto de ente menor da nossa República. Se tornou presa de um novo ciclo de clientelismo. E ajudou a retirar o cidadão das fotos nas paredes das secretarias.

 

¨      OS PRINCIPAIS DESAFIOS PARA OS MUNICÍPIOS BRASILEIROS

Os Municípios brasileiros enfrentarão grandes desafios a partir de 2024.

Em primeiro lugar, a eleição municipal: ela vai exigir esforços e enfrentamento de limitações orçamentárias de final de governo diante das regras vigentes que proíbem o desequilíbrio nas contas públicas e a transferência de déficits e obrigações de despesas para as futuras gestões. A violação implica em sanções das Leis de Responsabilidade Fiscal, de Improbidade Administrativa e da Legislação Eleitoral.

Os limites afetam o aumento de despesas com pessoal, contratação de operações de crédito e de novas obrigações de despesas, devendo tais restrições serem conjugadas com a conclusão de obras, investimentos e empenhamentos programados, não podendo haver novidades sem rubrica e suficiência de caixa após o primeiro quadrimestre do ano (vide especialmente os art. 21, 38 e 42 da Lei Complementar n. 101/2000)[1].

Ao mesmo tempo, há enorme disputa sobre a regulamentação da recém-aprovada Emenda Constitucional n. 132/2023 (Reforma da Tributação do Consumo) pois, além da supressão de autonomia legislativa e administrativa dos entes federados (transferida para um órgão nacional inusitado – o Comitê Federativo), o novo imposto nacional partilhado entre Estados e Municípios poderá implicar em perdas de receitas para diversas cidades brasileiras no médio e longo prazo.

Há ainda dúvidas sobre a utilidade de disposições inseridas pela EC 132/2023 na ordem constitucional vigente, como a possibilidade de alteração da base de cálculo do IPTU por Decreto (art. 156, §1º, III — questiona-se se há limites à delegação ao executivo pela lei local) e se a progressividade fiscal é aplicável ao ITBI, além do ITCMD (art. 155, §6º, III).

A pressão sobre as contas públicas municipais advém, principalmente, da progressão dos gastos com serviços públicos de competência de outras esferas da Federação. Para além das despesas com o ensino médio (com o uso de equipamentos públicos municipais e até o pagamento de gratificações em reforço à remuneração de professores, inclusive contratação de temporários em cursos pré-ENEM, etc) e serviços de saúde de média e alta complexidade (que acabam sendo assumidos pela rede municipal no âmbito do SUS – Sistema Único de Saúde), há substancial aumento dos gastos com segurança pública.

As despesas com polícia de ordem pública local já vinham sendo incrementadas há alguns anos, desde as melhorias com iluminação pública (hoje financiada pela COSIP) até o custeio de veículos, uniformes, reformas de delegacias e instalações das polícias militares e corpos de bombeiros locais. Parte desses recursos vinha da cobrança de “taxas de polícia” municipais, recentemente declaradas inconstitucionais pelo STF. Entretanto, nos últimos anos houve uma demanda maior pela atuação manifesta das Guardas Municipais, não mais apenas como protetoras do patrimônio público material, mas também da paz local, desdobrando-se para o patrulhamento ostensivo, preventivo e repressivo de crimes – missão cometida pela Constituição às Polícias Militares.

Apesar de limites impostos pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (v.g. REsp 1.977.119) para que agentes das Guardas Municipais realizem revistas pessoais diante de potenciais flagrantes de crimes, fato é que o STF (ADPF 995) já reconheceu que as GMs integram o Sistema Único de Segurança Pública (SUPSP) e, em todas das capitais (salvo no Rio de Janeiro) elas já utilizam armas de fogo na sua atividade diária.

Não por outro motivo, o Governo Federal previu no recente Decreto n. 11.841/2023  a integração crescente das Guardas Municipais às Forças de Segurança Pública. Segundo o então Ministro da Justiça, agora Ministro do STF, Flávio Dino: "é uma demanda de gestores de todo o país para reforço da segurança em cidades e estados. A atuação das guardas municipais é um importante instrumento nesse sentido, já que são formadas por cidadãos próximos às comunidades, que conhecem o cotidiano local e poderão prestar serviços importantes".

Diante de tantas demandas que ultrapassam em muito as competências administrativas dos Municípios, a única boa notícia recente foi a imposição de uma trava ou condicionalidade, para o incremento de despesas com serviços locais em razão de leis federais – como as que impuseram pisos nacionais por categorias de profissionais, aplicáveis a servidores, funcionários ou empregados trabalhadores dos serviços públicos.

Neste mesmo sentido, preceitua o §7º do art. 167, introduzido pela Emenda Constitucional n. 128/2022[2]. Dessa forma, As despesas só se tornarão obrigatórias para Estados, DF e Municípios se houver recursos suficientemente transferidos pelo orçamento federal. Nessa linha, também decidiu o STF, ao julgar a ADI 7222, acerca da aplicação do piso nacional do pessoal de enfermagem.

Seja como for, fato é que a marcha das despesas municipais continua em direção à sua progressiva majoração.

Por tais motivos, é preciso pensar soluções inovadoras, criativas e eficientes para a recuperação de arrecadação e de receitas alternativas e novas visando a garantir a capacidade financeira dos entes municipais brasileiros.

 

Fonte: Outras Palavras/Linkedin

 

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