Rudá
Ricci: A Era dos Governos Chochos
Uma
grave regressão política marca os municípios brasileiros. Com investimento
público em queda e dependentes de emendas parlamentares, gestões sem viço
sepultaram inovações dos anos 1980 e 90 e rendem-se cada vez mais ao
fisiologismo e aos partidos-carteis
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Se
o final do século XX foi de enorme inovação na gestão municipal, as duas
primeiras décadas do século XXI foram de inércia.
O
processo de descentralização de serviços públicos que ocorreu logo após a
promulgação da Constituição de 1988 obrigou ao ajuste de posicionamento do
papel dos municípios brasileiros.
Eles
foram os grandes beneficiários do processo, de onde surgiu o que alguns autores
denominam de “federalismo municipal”. É deste período a emergência do FPM, o
Fundo de Participação dos Municípios, formado por recursos arrecadados pelo
Imposto de Renda (IR) e pelo Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). No
final do período militar, o FPM era formado por 10% das arrecadações do IR e do
IPI. Após a promulgação da Constituição de 1988, a parcela das arrecadações
direcionadas ao fundo elevou-se para 22,5%. Pouco mais de 60% dos municípios
brasileiros passaram a depender deste repasse.
Aqui
se encontra um dos impasses para a liderança municipal em investimentos. A
arrecadação própria com impostos, taxas e contribuições de melhoria avançou
7,6% reais de janeiro a outubro de 2023 contra igual período de 2022. A alta
foi menor nas maiores cidades. Contudo, os recursos do FPM caíram 0,9% em 2023
e os de ICMS, dos Estados, baixaram 5,7%. O aumento de investimentos municipais
se deu nos últimos anos em função de transferências de emendas parlamentares e
operações de crédito.
O
investimento público atingiu 2,61% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2023, o
segundo ano seguido de alta, mas em um patamar ainda insuficiente para tirar o
Brasil do quadro de estagnação iniciada em 2016. No período, o gasto dos
governos com investimentos oscilou entre 1,94% e 2,63% do PIB. Em 2010, chegou
a 4,72% do PIB.
Nos
governos federais de FHC e Lula 1 e 2, a União concentrou fortemente os
recursos públicos para investimentos. Seu percentual chegou a ultrapassar 70%
do total. No caso das gestões Lula, o acordo com empresários para manter o
índice de contratações e que teve como contrapartida a não cobrança do IPI
afetou diretamente os recursos repassados pelo FPM. Foi a porta de entrada para
nacionalização de programas sociais e de infraestrutura.
Neste
momento, os deputados federais passaram a ser o meio de chegada dos prefeitos
aos ministérios e autarquias federais que irrigavam o país com programas e mais
programas, como “Minha Casa, Minha Vida”, “Segundo Tempo”, patrulhas
mecanizadas, estações de tratamento de esgoto, praças da juventude e tantos
outros. Foi o período de ascensão do baixo clero ao topo da República e queda
do papel real de liderança dos partidos políticos. O baixo clero proliferou em
todos os partidos com a fome clientelista que o caracteriza, criando uma
bancada própria. O Centrão é formado pelo baixo clero e o nome diz pouco sobre
seu ideário real.
Mas,
o dinheiro concentrado não foi o único vilão. Se nos anos 1980 e 1990 tivemos
tantas inovações municipais como o orçamento participativo e as reformas
educacionais de ponta, articulando estudos da neurologia e psicologia com
mudanças curriculares, enturmações, avaliações diagnósticas, tempo e espaços
escolares, o século XXI é o de governos locais focados em metas estatísticas e
gestão por programas.
Em
outras palavras, os governos municipais se desumanizaram já que perderam as
biografias de seu horizonte substituídas por números e deixaram de governar por
demandas sociais.
Assim,
governos municipais se tornaram autóctones, autorreferentes. Quem conhece de
perto as gestões locais sabe que o perfil dos funcionários mudou muito a partir
de então. Servidores criativos e ousados foram rareando e surgiu o servidor que
sabe preencher formulários e cadastros em plataformas federais e estaduais.
Cargos comissionados passaram a ter o perfil de “cicerones” do contato com
deputados e técnicos estratégicos em ministérios e secretarias estaduais. A
inércia brotou em cada secretaria municipal e o cidadão sumiu da sua vista.
A
falta de ousadia e a ação mecânica e programada deu lugar às cabeças de
planilha. Gestões sem viço, recuadas e previsíveis criaram um terreno infértil.
No
campo político, a dependência em relação aos parlamentos foi crescendo de
maneira exponencial. Em relação às Câmaras Municipais, fez-se o milagre da
multiplicação dos pães. Após as eleições, em questão de semanas, um parlamento
oposicionista se torna amigo do prefeito desde criancinha. O milagre envolve
indicação de membros para o novo governo, liberação de recursos para reformas
de casas de eleitores e outras vantagens.
Mas,
é na relação com deputados, estaduais e federais, que o impacto maior ocorre. A
dependência política faz das gestões municipais uma espécie de peça numa
engrenagem que Richard Katz e Peter Mair denominaram de “partidos-cartéis”.
Nesta situação, os partidos e governos não dependem mais dos eleitores após as
eleições. Dependem de fundos públicos, nomeações e fundos partidários. Criam um
círculo de fidelidades e troca de favores que o cidadão desconhece e não
participa. Emendas parlamentares, negociações para acesso aos fundos eleitorais
e outros recursos para investimentos transformam prefeitos em cabos eleitorais
de deputados.
E,
assim, chegamos à Era dos Governos Chochos. O município, que mudou de estatuto
na estrutura federativa desde a Constituição de 1988, voltou ao seu canto de
ente menor da nossa República. Se tornou presa de um novo ciclo de
clientelismo. E ajudou a retirar o cidadão das fotos nas paredes das
secretarias.
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OS PRINCIPAIS DESAFIOS
PARA OS MUNICÍPIOS BRASILEIROS
Os
Municípios brasileiros enfrentarão grandes desafios a partir de 2024.
Em
primeiro lugar, a eleição municipal: ela vai exigir esforços e enfrentamento de
limitações orçamentárias de final de governo diante das regras vigentes que
proíbem o desequilíbrio nas contas públicas e a transferência de déficits e
obrigações de despesas para as futuras gestões. A violação implica em sanções
das Leis de Responsabilidade Fiscal, de Improbidade Administrativa e da
Legislação Eleitoral.
Os
limites afetam o aumento de despesas com pessoal, contratação de operações de
crédito e de novas obrigações de despesas, devendo tais restrições serem
conjugadas com a conclusão de obras, investimentos e empenhamentos programados,
não podendo haver novidades sem rubrica e suficiência de caixa após o primeiro
quadrimestre do ano (vide especialmente os art. 21, 38 e 42 da Lei Complementar
n. 101/2000)[1].
Ao
mesmo tempo, há enorme disputa sobre a regulamentação da recém-aprovada Emenda
Constitucional n. 132/2023 (Reforma da Tributação do Consumo) pois, além da
supressão de autonomia legislativa e administrativa dos entes federados
(transferida para um órgão nacional inusitado – o Comitê Federativo), o novo
imposto nacional partilhado entre Estados e Municípios poderá implicar em
perdas de receitas para diversas cidades brasileiras no médio e longo prazo.
Há
ainda dúvidas sobre a utilidade de disposições inseridas pela EC 132/2023 na
ordem constitucional vigente, como a possibilidade de alteração da base de
cálculo do IPTU por Decreto (art. 156, §1º, III — questiona-se se há limites à
delegação ao executivo pela lei local) e se a progressividade fiscal é
aplicável ao ITBI, além do ITCMD (art. 155, §6º, III).
A
pressão sobre as contas públicas municipais advém, principalmente, da
progressão dos gastos com serviços públicos de competência de outras esferas da
Federação. Para além das despesas com o ensino médio (com o uso de equipamentos
públicos municipais e até o pagamento de gratificações em reforço à remuneração
de professores, inclusive contratação de temporários em cursos pré-ENEM, etc) e
serviços de saúde de média e alta complexidade (que acabam sendo assumidos pela
rede municipal no âmbito do SUS – Sistema Único de Saúde), há substancial
aumento dos gastos com segurança pública.
As
despesas com polícia de ordem pública local já vinham sendo incrementadas há
alguns anos, desde as melhorias com iluminação pública (hoje financiada pela
COSIP) até o custeio de veículos, uniformes, reformas de delegacias e
instalações das polícias militares e corpos de bombeiros locais. Parte desses
recursos vinha da cobrança de “taxas de polícia” municipais, recentemente
declaradas inconstitucionais pelo STF. Entretanto, nos últimos anos houve uma
demanda maior pela atuação manifesta das Guardas Municipais, não mais apenas
como protetoras do patrimônio público material, mas também da paz local,
desdobrando-se para o patrulhamento ostensivo, preventivo e repressivo de
crimes – missão cometida pela Constituição às Polícias Militares.
Apesar
de limites impostos pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (v.g.
REsp 1.977.119) para que agentes das Guardas Municipais realizem revistas
pessoais diante de potenciais flagrantes de crimes, fato é que o STF (ADPF 995)
já reconheceu que as GMs integram o Sistema Único de Segurança Pública (SUPSP)
e, em todas das capitais (salvo no Rio de Janeiro) elas já utilizam armas de
fogo na sua atividade diária.
Não
por outro motivo, o Governo Federal previu no recente Decreto n.
11.841/2023 a integração crescente das Guardas Municipais às Forças de
Segurança Pública. Segundo o então Ministro da Justiça, agora Ministro do STF,
Flávio Dino: "é uma demanda de gestores de todo o país para reforço da
segurança em cidades e estados. A atuação das guardas municipais é um
importante instrumento nesse sentido, já que são formadas por cidadãos próximos
às comunidades, que conhecem o cotidiano local e poderão prestar serviços
importantes".
Diante
de tantas demandas que ultrapassam em muito as competências administrativas dos
Municípios, a única boa notícia recente foi a imposição de uma trava ou
condicionalidade, para o incremento de despesas com serviços locais em razão de
leis federais – como as que impuseram pisos nacionais por categorias de
profissionais, aplicáveis a servidores, funcionários ou empregados
trabalhadores dos serviços públicos.
Neste
mesmo sentido, preceitua o §7º do art. 167, introduzido pela Emenda
Constitucional n. 128/2022[2]. Dessa forma, As despesas só se tornarão
obrigatórias para Estados, DF e Municípios se houver recursos suficientemente
transferidos pelo orçamento federal. Nessa linha, também decidiu o STF, ao
julgar a ADI 7222, acerca da aplicação do piso nacional do pessoal de
enfermagem.
Seja
como for, fato é que a marcha das despesas municipais continua em direção à sua
progressiva majoração.
Por
tais motivos, é preciso pensar soluções inovadoras, criativas e eficientes para
a recuperação de arrecadação e de receitas alternativas e novas visando a
garantir a capacidade financeira dos entes municipais brasileiros.
Fonte:
Outras Palavras/Linkedin
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