Tarifaço
dos EUA: o truque do alívio seletivo que ameaça o Brasil
O recuo
parcial de Trump sobre o tarifaço parece vitória, mas esconde uma armadilha: os
EUA aliviam a pressão onde o custo político interno é alto e mantêm o garrote
exatamente nos setores que poderiam impulsionar a reindustrialização e a
soberania tecnológica do Brasil. Este artigo revela, com dados inéditos, como o
alívio seletivo funciona como engenharia de dependência e parte de um plano
maior de coerção na disputa geopolítica pelo Caribe e pela Venezuela.
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O momento que precisa ser compreendido com mais clareza
Nas
últimas semanas, a percepção geral no debate público foi de que a tensão entre
Brasil e Estados Unidos teria diminuído. O governo americano retirou a
sobretaxa de 40% sobre vários produtos agrícolas brasileiros, o agronegócio
reagiu com alívio, e parte da cobertura tratou o gesto como sinal de distensão.
A narrativa é simples: houve diálogo, houve recuo, a situação “melhorou”. Mas,
quando observamos o conjunto das medidas adotadas desde abril, a realidade
revela um arranjo mais complexo. O tarifaço não foi um episódio isolado. Ele
começou com uma tarifa-base de 10% sobre praticamente todas as importações e
evoluiu para sobretaxas de 50% aplicadas de forma concentrada à pauta
brasileira. Esse conjunto de medidas foi sustentado pelo argumento de “emergência
nacional”, o que permitiu aos Estados Unidos usar tarifas como instrumento de
pressão política direta. As justificativas se alinharam a críticas ao
julgamento de Bolsonaro, ao papel do STF e às regras brasileiras de regulação
das plataformas digitais. Tarifas e política interna brasileira passaram a
caminhar na mesma frase.Do lado brasileiro, a resposta foi calibrada. O governo
aprovou uma Lei de Reciprocidade para ter meios legais de responder na mesma
escala, mas Lula declarou que não pretende acionar retaliações de imediato. A
razão é evidente: retaliações amplas poderiam impactar cadeias produtivas,
empregos e setores industriais fortemente integrados ao mercado americano. Ao
mesmo tempo, não retaliar mantém o país exposto a uma ferramenta de pressão que
segue ativa. O governo tenta, portanto, equilibrar proteção econômica com
defesa de soberania, sem agravar tensões num momento sensível.
Esse
cenário econômico ocorre em paralelo a movimentos geopolíticos relevantes. Os
Estados Unidos reforçaram sua presença militar no Caribe, ampliaram
monitoramento de rotas energéticas e endureceram a retórica sobre a Venezuela.
O Brasil, por sua vez, tem defendido soluções diplomáticas e a não intervenção,
buscando evitar que a crise venezuelana seja pretexto para uma escalada
regional. Quando colocamos comércio e geopolítica no mesmo quadro, percebe-se
que as tarifas funcionam como parte de uma estratégia mais ampla de pressão —
uma combinação de medidas econômicas, políticas e militares que se sobrepõem no
mesmo momento histórico. É nesse ambiente que o recuo parcial de Washington
precisa ser lido. A retirada das sobretaxas sobre parte do agro reduz pressões
internas nos EUA, ameniza efeitos sobre inflação de alimentos e acalma setores
brasileiros influentes. Porém, o núcleo mais pesado das tarifas permanece
exatamente onde o Brasil precisa ampliar competitividade: metalurgia, máquinas,
químicos, bens intermediários e segmentos industriais de maior sofisticação.
São áreas em que a substituição de mercados não é simples e onde a perda de
competitividade tem efeitos duradouros. O que temos hoje, portanto, não é o fim
do tarifaço, mas a transformação dele. Uma reprogramação silenciosa que mantém
a pressão sobre os segmentos estratégicos da economia brasileira, ao mesmo
tempo que suaviza o impacto político imediato sobre o agronegócio e sobre a
inflação americana. É um novo desenho, mais sutil, porém mais eficiente,
adotado justamente no momento em que o Brasil tenta combinar desenvolvimento
econômico, estabilidade interna e uma postura independente diante da
intensificação das tensões no entorno da Venezuela. Esse é o ponto de partida
para o artigo: compreender o que mudou, o que permaneceu e por que o alívio
seletivo não encerra o problema — apenas inaugura uma nova fase dele.
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O tarifaço não acabou — ele mudou de forma
A
leitura mais direta das últimas semanas sugere que a crise teria sido atenuada
graças ao gesto de Washington em retirar a sobretaxa sobre dezenas de produtos
agrícolas brasileiros. Esse movimento gerou a impressão de que o tarifaço
estava sendo desmontado. Mas, ao olhar a estrutura completa das medidas ainda
em vigor, o que vemos é uma mudança de configuração — não o fim do instrumento.
O tarifaço foi redesenhado para se tornar mais eficiente: o peso saiu da
prateleira visível, onde o impacto político seria imediato, e permaneceu
concentrado nos segmentos com maior relevância industrial. O alívio para o agro
tem efeito claro — reduz tensão interna, melhora o clima político e ameniza
custos para o consumidor americano — mas o coração do problema segue ativo. Os
setores que permanecem sob sobretaxas são justamente aqueles em que o Brasil
depende de estabilidade para avançar em produtividade e desenvolvimento
tecnológico. Essa distinção entre o que foi retirado e o que permanece é
fundamental. Na parte agrícola, o Brasil tem alternativas de diversificação de
mercados, ciclos de produção mais flexíveis e cadeias já consolidadas
globalmente. Mas na parte industrial, a substituição de mercado é lenta,
complexa e depende de investimentos que só se justificam no longo prazo. Ao
manter a pressão justamente nesse ponto, os Estados Unidos preservam uma
ferramenta que afeta a reindustrialização brasileira e cria incerteza
permanente para empresas que operam em cadeias internacionais. Outra
característica desse novo formato é que ele permite a Washington alterar o
ritmo da pressão sem provocar rupturas abruptas. A retirada parcial das tarifas
reduz o desgaste imediato e dá ao governo americano espaço para combinar novos
estímulos e punições conforme suas prioridades políticas. O resultado é um
tarifaço mais discreto, porém mais adaptável, capaz de responder a movimentos
do Brasil sem disparar alertas na opinião pública dos EUA. O efeito prático
desse redesenho é claro: o instrumento de coerção continua presente, mas agora
opera com menor ruído e maior precisão. O gesto de alívio não desmonta o
mecanismo; apenas o torna mais ordenado, mais seletivo e mais ajustado às áreas
onde o impacto estratégico sobre o Brasil é mais profundo. E é justamente essa
mudança silenciosa que exige uma leitura mais cuidadosa — porque o conflito não
diminuiu, apenas se reorganizou.
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O alívio seletivo: como Washington redesenhou a dependência brasileira
O recuo
dos Estados Unidos sobre parte do tarifaço foi apresentado como gesto de
distensão, mas o desenho da lista de produtos liberados revela algo mais
preciso: o alívio não foi amplo, nem aleatório. Ele foi cirúrgico. Washington
retirou a sobretaxa onde o impacto político interno seria mais alto —
alimentos, café, carne, frutas, sucos — e manteve a pressão exatamente nos
setores que estruturam a capacidade de desenvolvimento industrial brasileiro.
Ao observar essa divisão, fica evidente que o alívio seletivo funciona como uma
forma de reorganizar a dependência. A agricultura brasileira tem vasta rede de
compradores, ampla presença global e margens de substituição relativamente
rápidas: se um mercado aperta, outro absorve. Já os setores industriais, especialmente
os intensivos em metalurgia, químicos, máquinas, componentes e bens
intermediários, dependem de previsibilidade de longo prazo, contratos estáveis
e escalas de produção que não se reconfiguram da noite para o dia. São essas
cadeias que foram mantidas sob sobretaxa — justamente as que definem a
capacidade de um país de gerar valor, tecnologia e autonomia produtiva.
Essa
assimetria não é acidental. Ao aliviar o agro, os EUA reduzem pressões
internas, evitam aumento da inflação alimentar e diminuem o desgaste político
de tarifas amplas. Mas, ao preservar o peso sobre os setores industriais,
mantêm um ponto de estrangulamento estratégico. É uma forma discreta de travar
investimentos, desestimular inovação e limitar a competitividade brasileira em
segmentos de maior valor agregado. O resultado é um efeito de reprimarização
indireta: o Brasil tem acesso facilitado para vender o que vale menos e
enfrenta obstáculos crescentes para consolidar o que vale mais. Além disso, o
alívio seletivo produz outro efeito relevante: reorganiza a política doméstica
brasileira. Ao beneficiar setores com forte peso econômico e eleitoral, como
carne e café, o gesto reduz tensões internas e diminui a pressão para uma
resposta imediata da parte do governo. Ao mesmo tempo, deixa as cadeias
industriais — que sustentam empregos mais qualificados e maior conteúdo
tecnológico — expostas a um ambiente de incerteza. A mensagem implícita é
clara: o equilíbrio entre conforto político e autonomia produtiva continua em
disputa. Em outras palavras, o alívio não desmonta o tarifaço. Ele apenas
redefine suas prioridades. O que foi retirado reduz ruído. O que permaneceu
concentra impacto. E, nessa combinação, os Estados Unidos criam uma forma de
pressão menos visível, mas muito mais alinhada à sua lógica estratégica:
desestimular qualquer movimento brasileiro de fortalecimento industrial
enquanto mantêm as portas abertas para aquilo que não ameaça suas cadeias de
valor. É a dependência atualizada para o século XXI — não mais imposta por
grandes pacotes, mas moldada por pequenos ajustes que alteram, silenciosamente,
o futuro produtivo de um país.
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O algoritmo do cerco: economia, regulação digital e política interna no mesmo
tabuleiro
Quando
analisadas separadamente, as medidas recentes dos Estados Unidos — tarifas,
recuos parciais, pressões sobre plataformas digitais e críticas ao sistema de
justiça brasileiro — parecem pertencer a campos distintos. Mas, quando
colocadas lado a lado, formam uma arquitetura coerente. Não se trata apenas de
comércio. Tampouco é apenas disputa regulatória. É um modelo de pressão que
combina economia, informação e política numa mesma engrenagem. O tarifaço opera
como eixo econômico desse mecanismo. Ele cria volatilidade calculada: ora
aperta, ora alivia, sempre deixando claro que a normalidade depende de escolhas
que o Brasil faça em áreas sensíveis para Washington. Ao mesmo tempo, o debate
sobre regulação de plataformas digitais, que no Brasil avança em direção à
responsabilização de empresas por conteúdo ilegal, é usado pelos Estados Unidos
como argumento político. Pontos de atrito — moderação, remoção de discurso
extremista, combate a redes coordenadas — são reinterpretados como ameaça à
liberdade de expressão e aos interesses das big techs americanas. A crítica
pública ao Brasil, nesse caso, não aparece isolada: ela reforça a ideia de que
parte das tensões comerciais decorre de disputas regulatórias. Há ainda o
componente político interno. Quando dirigentes americanos questionam decisões
da justiça brasileira ou insinuam perseguição a figuras da extrema-direita,
isso não ocorre no vácuo. Esse discurso se articula com a lógica das tarifas,
ampliando sua função de pressão: o recuo só avança onde existe conveniência
política, enquanto a possibilidade de endurecimento permanece como sombra sobre
decisões domésticas brasileiras. Assim, comércio e política são usados
simultaneamente para criar um ambiente de incerteza que favorece a capacidade
de barganha dos Estados Unidos. O resultado é um algoritmo simples na forma e
sofisticado no efeito: decisões econômicas pressionam a política; decisões
políticas influenciam o comércio; tensões regulatórias aparecem como
justificativa para manter a volatilidade. Tudo opera de forma conectada, como
camadas distintas de uma mesma estratégia. Para o Brasil, isso significa lidar
com uma pressão multidimensional: a economia sente o impacto das tarifas; as
instituições enfrentam questionamentos externos; e o ambiente regulatório se
transforma em terreno de disputa geopolítica. É um cerco silencioso, feito de
pequenas peças que, somadas, moldam a margem real de ação do país.
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Caribe, Venezuela e o cerco de rotas: o tabuleiro oculto
O
tarifaço não pode ser compreendido sem olhar para o entorno regional. Nos
últimos meses, os Estados Unidos intensificaram sua presença militar no Caribe,
ampliaram monitoramento de rotas marítimas e elevaram o tom sobre a Venezuela.
Esse movimento não é paralelo ao conflito comercial — ele é parte do mesmo
tabuleiro. Quando um país controla rotas, portos e cadeias de energia na sua
periferia estratégica, ele amplia a capacidade de condicionar o comportamento
de seus vizinhos por meios indiretos. Tarifas e projeção militar, nesse caso,
são instrumentos que se reforçam mutuamente. A Venezuela ocupa posição central
nessa equação. Além de suas reservas de petróleo e gás, o país é corredor
logístico para toda a fachada norte da América do Sul. Uma pressão militar
ampliada ou um bloqueio parcial no Caribe altera fluxos comerciais, encarece o
transporte, aumenta o risco de seguros e afeta rotas por onde circulam cargas
brasileiras. Quando Washington intensifica operações navais e sinaliza
disposição para endurecer sua postura, cria um ambiente em que qualquer país da
região — inclusive o Brasil — precisa levar em conta não apenas a tarifa
aplicada à sua mercadoria, mas também a rota por onde essa mercadoria será
escoada. É nesse contexto que a diplomacia brasileira se move com cautela. O
governo tem reiterado que rejeita qualquer aventura militar na Venezuela e que
defende soluções políticas e negociadas. Essa posição não é apenas ideológica;
ela é estratégica. Uma escalada militar na fronteira norte alteraria cadeias
logísticas, aumentaria custos de exportação e ampliaria o poder de barganha dos
Estados Unidos sobre toda a região. O Brasil busca evitar esse cenário porque
sabe que a pressão comercial não pode ser isolada da pressão territorial e
energética. Ao mesmo tempo, o gesto americano de aliviar parte das tarifas logo
após conversas diretas com Brasília mostra que o comércio faz parte da
negociação mais ampla sobre o Caribe e a Venezuela. Ao retirar sobretaxas sobre
alimentos, Washington reduz desgaste interno, melhora a percepção diplomática e
abre espaço para cobrar, de forma implícita, maior alinhamento em temas
regionais. O recuo sobre o agro, nesse sentido, não é apenas econômico: ele
também libera o terreno para que os Estados Unidos exerçam influência política
num momento de tensão crescente. O que se desenha, portanto, é um ambiente em
que tarifas, logística, diplomacia e movimentação militar se entrelaçam. A
pressão comercial ganha profundidade quando combinada à incerteza regional; a
presença militar ganha alcance quando reforçada por instrumentos econômicos. O
Caribe e a Venezuela funcionam como extensão do tarifaço — não porque
substituam o comércio, mas porque ampliam seu impacto. E isso exige do Brasil
uma leitura que vá além do preço da tarifa: é preciso entender a arquitetura
territorial que condiciona por onde, quando e a que custo o país consegue
circular sua própria produção.
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O dilema de Lula: respirar sem ceder
No
centro desse tabuleiro está um governo que precisa, ao mesmo tempo, proteger
empregos, conter pressões inflacionárias, preservar margem de manobra
diplomática e defender a soberania institucional do país. O dilema é concreto:
qualquer reação impulsiva ao tarifaço pode desencadear retaliações em cadeia,
afetar exportações sensíveis e gerar instabilidade interna; qualquer
passividade excessiva abre espaço para que a pressão econômica se consolide
como ferramenta permanente de disciplinamento. Entre esses dois extremos, o
Brasil vem tentando construir uma linha de atuação que combine firmeza e
prudência. A aprovação da Lei de Reciprocidade deixou claro que o país não
aceita, em tese, a lógica da punição unilateral. Ao criar um instrumento
jurídico que permite responder na mesma escala, o Brasil envia um recado: tem
meios para contra-atacar se for necessário. Ao mesmo tempo, o fato de Lula
adiar o uso pleno dessa lei indica outra dimensão do cálculo. O governo sabe
que uma guerra de tarifas em larga escala prejudicaria justamente os setores
que mais precisam de previsibilidade, além de oferecer munição para quem aposta
no caos econômico como ferramenta de desgaste político. Esse equilíbrio aparece
também na forma como o Brasil tem se posicionado em relação à Venezuela e ao
Caribe. A recusa a apoiar aventuras militares e a insistência em saídas
negociadas não significam alinhamento automático a qualquer governo, mas uma
tentativa de evitar que a região seja arrastada para uma dinâmica de conflito
que ampliaria a capacidade de pressão dos Estados Unidos sobre toda a América
do Sul. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro mantém canais abertos com
Washington e insiste na via diplomática para reduzir tensões comerciais,
evitando transformar o conflito em ruptura. Há, ainda, uma dimensão interna
desse dilema. O alívio seletivo sobre o agro ajuda a neutralizar parte das
pressões de um setor historicamente influente, mas deixa em segundo plano as
cadeias industriais que continuam expostas às sobretaxas. O governo precisa falar
com esses dois mundos ao mesmo tempo: tranquilizar produtores que viram uma
melhora imediata no acesso ao mercado americano e, ao mesmo tempo, sinalizar
para a indústria que a agenda de reindustrialização continua sendo prioridade,
mesmo em ambiente adverso. Fazer isso sem transformar o tarifaço em disputa
partidária de curto prazo é parte da dificuldade. No fundo, o dilema de Lula
não é entre reagir ou aceitar; é entre reagir de um modo que fortaleça a
posição estrutural do Brasil ou de um modo que apenas produza barulho. Por isso
a resposta tem sido gradual, cuidadosa e, muitas vezes, incompreendida por quem
espera gestos dramáticos. Em vez de um choque frontal, o governo tenta
construir, passo a passo, condições para reduzir a vulnerabilidade de longo
prazo — diversificando parceiros, reforçando a integração regional,
impulsionando políticas industriais e defendendo, no plano internacional,
limites para o uso arbitrário de tarifas e sanções. É uma escolha de tempo
longo num cenário em que quase tudo empurra para o improviso.
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Por que o debate público ainda não captou o tabuleiro completo
A maior
dificuldade para entender o tarifaço — e seus desdobramentos no Caribe, na
regulação digital e na política brasileira — não está na falta de informação,
mas na maneira como ela é organizada. A imprensa cobre tarifas como economia.
Movimentação militar como defesa. Disputas regulatórias como tecnologia.
Choques diplomáticos como política externa. Cada tema aparece isolado, como se
pertencesse a caixas estanques. E, quando as peças são tratadas separadamente,
o desenho estratégico por trás delas se perde. O tarifaço, por exemplo, foi
amplamente noticiado como uma decisão comercial agressiva que depois teria sido
parcialmente corrigida. A retirada das sobretaxas sobre parte do agro reforçou
essa impressão. Mas a permanência das tarifas sobre setores industriais — e o
momento em que isso ocorre — raramente é conectada ao debate sobre
reindustrialização e política de desenvolvimento no Brasil. De forma
semelhante, as pressões sobre o STF e as críticas à regulação das plataformas
digitais costumam ser apresentadas como episódios políticos independentes,
embora reforcem a mesma lógica de condicionamento externo. O mesmo vale para o
Caribe e a Venezuela. A intensificação da presença militar norte-americana
aparece nas manchetes, mas quase nunca é articulada com o impacto que isso tem
sobre rotas comerciais, cadeias energéticas e capacidade de barganha dos
Estados Unidos na região. Assim, cada elemento do tabuleiro é visível, mas a
relação entre eles permanece difusa. Falta a costura — e é justamente essa costura
que define o sentido do conflito. Esse tipo de fragmentação não é casual. É uma
característica do debate contemporâneo, acelerado, segmentado e dominado por
ciclos curtos de atenção. Ela faz com que instrumentos de pressão sutis — como
o alívio seletivo das tarifas — pareçam gestos generosos, quando na verdade
fazem parte de uma estratégia maior. E também faz com que sinais de coerção
geopolítica se diluam em meio a disputas narrativas rápidas, dificultando a
compreensão de como economia, segurança e política estão entrelaçadas. Quando
observamos o quadro em conjunto, o conflito deixa de parecer uma série de
eventos desconexos e passa a se revelar como uma arquitetura integrada. O
tarifaço é uma peça. A regulação digital é outra. A pressão sobre instituições
brasileiras, outra. A movimentação no Caribe, outra. Cada uma opera em seu
campo específico, mas todas apontam para a mesma direção: ampliar a capacidade
de influência dos Estados Unidos num momento em que o Brasil busca fortalecer
sua autonomia produtiva e sua voz regional. Reconhecer essa dinâmica não é
adotar um tom alarmista, nem supor intenções ocultas em cada gesto diplomático.
É, simplesmente, considerar o quadro inteiro. Porque, quando o conflito é
multidimensional, a análise também precisa ser. E compreender essa totalidade é
o passo necessário para saber onde estão os riscos — e onde estão as escolhas
reais — para o país.
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O risco estrutural: como o Brasil pode perder o século XXI sem perceber
Quando
olhamos o tarifaço apenas pelo impacto imediato — custos, porcentagens, reação
do agro, oscilações no comércio — a disputa parece administrável. Mas o efeito
profundo das sobretaxas, sobretudo nas cadeias industriais, aponta para um
problema maior: o risco de o Brasil entrar nas próximas décadas com sua
autonomia produtiva comprometida. O país já convive com uma industrialização
tardia, marcada por vulnerabilidades estruturais; quando tarifas calibradas
atingem justamente os setores de maior valor agregado, esses pontos fracos
deixam de ser desafios internos e passam a ser condicionados por decisões
externas. Essa pressão funciona como um desincentivo quase invisível. Projetos
industriais que dependem de previsibilidade de exportação, acordos de longo
prazo e escala tecnológica ficam mais difíceis de justificar quando o maior
mercado do hemisfério pode, a qualquer momento, impor uma sobretaxa de 50% a um
componente essencial. Empresas que analisam investimentos de longo prazo levam
isso em conta. Polos industriais, já afetados por competição global, ficam
ainda mais vulneráveis quando convivem com instabilidade tarifária. Assim, o
tarifaço não apenas afeta o presente; ele contamina o futuro. Há também o risco
da reprimarização permanente. O alívio seletivo reforça o caminho mais fácil —
exportar comida, café e proteína — ao mesmo tempo em que dificulta o movimento
mais estratégico — consolidar cadeias industriais complexas. Esse padrão se
reforça com o tempo: setores primários ganham estabilidade; setores industriais
perdem tração. E, conforme a estrutura produtiva se acomoda nessa divisão, o
país se torna mais dependente dos mercados que compram o que vale menos e menos
capaz de competir nos setores que determinam a soberania tecnológica no século
XXI. Do ponto de vista geopolítico, essa fragilidade econômica amplia a
vulnerabilidade em outras frentes. Um país com menor capacidade industrial
depende mais de tecnologia estrangeira, tem menor poder de barganha em
negociações internacionais e enfrenta mais dificuldades para impor limites a
pressões externas. Em contextos de tensão regional, como o que envolve o Caribe
e a Venezuela, essa vulnerabilidade se torna ainda mais sensível: quem controla
logística, energia e tecnologia controla também o ritmo da economia e a margem
de manobra política de seus parceiros. Nada disso significa que o Brasil esteja
condenado a um futuro de dependência. Mas significa que, sem uma leitura clara
da arquitetura do tarifaço e de seus efeitos prolongados, o país corre o risco
de negociar apenas o curto prazo, enquanto perde a disputa estrutural. O século
XXI está sendo moldado agora — nas decisões comerciais, regulatórias e
diplomáticas que parecem pequenas, mas acumulam força estratégica com o tempo.
E é justamente por isso que tomar consciência desse cenário é fundamental: a
janela de autonomia não se fecha num gesto dramático, mas em movimentos
graduais que, quando percebidos tarde demais, deixam pouco espaço para
reversão.
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O caminho da autonomia: o que o Brasil pode fazer agora
Se o
tarifaço mudou de forma e se tornou um instrumento mais silencioso de pressão,
a resposta brasileira também precisa operar em múltiplas frentes. Não se trata
de buscar uma solução imediata, nem de transformar a disputa comercial em
confronto diplomático. O desafio real é construir, passo a passo, um conjunto
de proteções estruturais que reduzam a vulnerabilidade externa e ampliem a
capacidade do país de decidir seu próprio caminho, mesmo diante de pressões de
curto prazo. O primeiro eixo é produtivo. A reindustrialização não pode
depender exclusivamente do humor de parceiros externos, nem de ciclos de
commodities. Para avançar, precisa de instrumentos internos robustos:
financiamento público de longo prazo, estímulo à inovação, fortalecimento das
cadeias de fornecedores e políticas que protejam setores estratégicos enquanto
ganham escala e competitividade. Cada ponto de previsibilidade que o país cria
internamente diminui o efeito das tarifas externas. Cada elo industrial
fortalecido reduz a capacidade de arbitragem de quem usa comércio como
mecanismo de coerção. O segundo eixo é regional. A América do Sul só terá peso
real se agir de forma coordenada diante de disputas comerciais e pressões
geopolíticas. Isso vale para tarifas, mas vale principalmente para logística.
Rotas alternativas, integração de portos, acordos alfandegários mais eficientes
e investimentos conjuntos em infraestrutura reduzem a dependência de corredores
controlados por potências externas. A estabilidade no entorno, especialmente na
Venezuela e no Caribe, também é parte disso: um ambiente de menor tensão
diminui a capacidade de qualquer país externo usar o território como ponto de
pressão indireta.O terceiro eixo é tecnológico e informacional. A soberania do
século XXI depende de desenvolver e controlar infraestrutura digital, dados,
comunicação e ferramentas críticas de produção tecnológica. Países com
autonomia nessa área conseguem negociar melhor, resistir a pressões
regulatórias externas e evitar que seus próprios marcos legais sejam usados
como justificativa para medidas comerciais adversas. No caso brasileiro, isso
significa avançar simultaneamente em regulamentação democrática das
plataformas, fortalecimento da indústria de tecnologia nacional e investimentos
em pesquisa científica e inovação. Por fim, há o eixo diplomático. A resposta
mais eficaz ao tarifaço não é sempre a mais barulhenta, mas a mais consistente.
O Brasil precisa continuar dialogando, acionando mecanismos multilaterais
quando necessário, e construindo consensos internacionais que limitem o uso
arbitrário de tarifas e sanções como ferramentas políticas. Reforçar o peso do
país em blocos como Mercosul, BRICS e G20 aumenta sua capacidade de influenciar
normas globais. E manter clareza sobre seus princípios — defesa da paz, da
legalidade internacional e da autonomia de cada nação — dá solidez à sua
posição.
A soma
desses movimentos não elimina a pressão externa, mas muda o terreno onde ela
opera. Em vez de reagir apenas aos ciclos curtos de volatilidade, o Brasil
passa a reorganizar sua estrutura de poder para o longo prazo. Essa é a
verdadeira disputa. Não se trata apenas de tarifas ou listas de produtos, mas
de como um país se prepara para enfrentar um século em que comércio, tecnologia
e geopolítica estão cada vez mais entrelaçados. A autonomia não nasce de um
gesto isolado; nasce de uma estratégia que reconhece o cenário, compreende a
lógica do conflito e constrói, peça por peça, as condições para atravessá-lo
com segurança.
Fonte:
Por Reynaldo José Aragon Gonçalves, em
Brasil 247



