Por
que ainda sabemos tão pouco sobre o esperma?
A cada
batimento cardíaco, um homem pode produzir cerca de 1 mil espermatozoides. E,
durante o intercurso sexual, mais de 50 milhões desses intrépidos nadadores
saem em busca de fertilizar um óvulo.
Apenas
alguns deles chegam ao seu destino, até que um único espermatozoide penetra o
óvulo, ganhando a corrida.
Mas
grande parte dessa jornada épica ainda é um mistério para a ciência – incluindo
seus próprios exploradores microscópicos.
"Como
um espermatozoide nada? Como ele encontra o óvulo? Como ele o fertiliza?",
pergunta a professora de Biologia Reprodutiva e Endocrinologia do Diabetes
Sarah Martins da Silva, da Universidade de Dundee, no Reino Unido.
A
pesquisadora britânica foi incluída na edição de 2019 da lista de 100 mulheres
inspiradoras e influentes, preparada anualmente pela BBC.
Quase
350 anos depois da descoberta do espermatozoide, muitas questões são
surpreendentemente debatidas até hoje.
Usando
métodos recentemente desenvolvidos, os cientistas acompanham os espermatozoides
durante sua migração, desde a gênese nos testículos até a fertilização do
óvulo, no corpo da mulher.
Os
resultados trazem novas e revolucionárias descobertas. Elas incluem como os
espermatozoides realmente nadam até as surpreendentes mudanças que eles sofrem
quando chegam ao corpo feminino.
"Os
espermatozoides são 'muito, muito diferentes' de todas as outras células da
Terra", explica Martins da Silva.
"Eles
não lidam com a energia da mesma forma. Eles não têm o mesmo tipo de
metabolismo celular e os mecanismos que esperaríamos encontrar em todas as
outras células."
Devido
à imensa variedade de funções exigida dos espermatozoides, eles consomem mais
energia do que as outras células. Eles precisam ser flexíveis e capazes de
reagir aos sinais do ambiente e à variação da necessidade de energia durante a
ejaculação e ao longo da sua jornada pelo trato reprodutor feminino, até a
fertilização.
Os
espermatozoides também são as únicas células humanas que conseguem sobreviver
fora do corpo, destaca a professora. "Por este motivo, eles são
extraordinariamente especializados."
Mas ela
ressalta que seu tamanho minúsculo dificulta muito o seu estudo. "Sabemos
muito sobre a reprodução, mas a quantidade de coisas que não entendemos é
imensa."
Existe
uma questão fundamental que permanece sem resposta após quase 350 anos de
pesquisas: o que, exatamente, são os espermatozoides?
"O
esperma é incrivelmente bem equipado", afirma o professor de Fisiologia
Reprodutiva e do Desenvolvimento Adam Watkins, da Universidade de Nottingham,
no Reino Unido.
"Normalmente,
nós pensamos no espermatozoide como um saco de DNA com uma cauda. Mas começamos
a perceber que ele é uma célula muito complexa. Ele contém muitas [outras]
informações genéticas."
A
ciência do esperma começou em 1677, quando o microbiólogo holandês Anton van
Leeuwenhoek (1632-1723) observou, em um dos seus 500 microscópios caseiros, o
que ele chamou de "animais do sêmen".
Leeuwenhoek
concluiu em 1683 que o óvulo não continha a miniatura do ser humano, como ele
acreditava até então. Para ele, o homem viria "de um animálculo na semente
masculina".
Em
1685, ele havia concluído que cada espermatozoide conteria uma pessoa completa
em miniatura, com sua própria "alma vivente".
Quase
200 anos depois, em 1869, o médico e biólogo suíço Johannes Friedrich Miescher
(1844-1895) estudava glóbulos brancos do sangue humano coletados do pus
depositado em bandagens hospitalares sujas, quando descobriu o que ele chamou
de "nucleína" no interior do núcleo celular.
Este
termo foi alterado posteriormente para "ácido nucleico" e acabou se
chamando "ácido desoxirribonucleico" – o DNA.
Para
ampliar seus estudos do DNA, Miescher recorreu ao esperma como fonte.
O
esperma de salmão, especificamente, se mostrou "uma fonte excelente e mais
agradável de material nuclear", devido aos seus núcleos particularmente
grandes.
Miescher
trabalhava sob temperaturas congelantes. Ele mantinha as janelas do seu
laboratório abertas, para evitar a deterioração do esperma de salmão.
Em
1874, ele identificou um componente básico do espermatozoide, que chamou de
"protamina". Este foi o primeiro vislumbre das proteínas que compõem
os espermatozoides.
Mas foi
preciso esperar mais 150 anos para que os cientistas identificassem todas as
proteínas da sua composição.
Desde
então, nossa compreensão do esperma se desenvolveu a passos largos. Mas muita
coisa ainda permanece um mistério, segundo Watkins.
Ele
explica que, à medida que os cientistas começaram a entender melhor o
desenvolvimento embriônico inicial, eles perceberam que os espermatozoides não
transmitem apenas os cromossomos do pai, mas também informações epigenéticas –
um grupo adicional de informações que afeta como e quando os genes devem ser
utilizados.
"Elas
podem realmente influenciar o desenvolvimento do embrião e, potencialmente, a
trajetória de vida dos descendentes gerados por aqueles espermatozoides",
afirma Watkins.
• O princípio
Os
espermatozoides começam a se formar a partir da puberdade. Eles são produzidos
em pequenos reservatórios localizados no interior dos testículos, chamados
túbulos seminíferos.
"Se
você olhar dentro dos testículos, onde os espermatozoides são produzidos, eles
começam simplesmente como uma célula redonda que se parece muito com outra
qualquer", explica Watkins.
"Eles,
então, passam por essa mudança radical e se transformam em uma cabeça com uma
cauda. Nenhuma outra célula do corpo altera sua estrutura e sua forma, de forma
tão única."
O
espermatozoide atinge a maturidade no corpo masculino em cerca de nove semanas.
As células não ejaculadas eventualmente morrem e são reabsorvidas pelo corpo,
mas as que tiverem sorte são ejaculadas – e, ali, começa a aventura.
Após a
ejaculação, cada uma daquelas células minúsculas deve se impulsionar para
frente, enfrentando seus 50 milhões de concorrentes. Para isso, elas usam seus
apêndices em forma de cauda para nadar em busca do óvulo.
Você
talvez já tenha visto muitos vídeos de espermatozoides nadando como girinos.
Mas, na verdade, os cientistas só agora começam a entender como eles nadam na
verdade.
Até
pouco tempo atrás, os cientistas acreditavam que a cauda do espermatozoide (ou
flagelo) se movesse lateralmente, como a de um girino.
Mas, em
2023, pesquisadores da Universidade de Bristol, no Reino Unido, concluíram que
as caudas dos espermatozoides seguem o mesmo modelo de formação de padrões
descoberto pelo matemático e criptoanalista da Segunda Guerra Mundial Alan
Turing (1912-1954).
Em
1952, Turing percebeu que as reações químicas podem criar padrões.
Ele
propôs que duas substâncias biológicas que se movessem e reagissem entre si
poderiam ser usadas para explicar algumas das mais curiosas formações de
padrões biológicos da natureza.
Elas
incluem as formações encontradas nas impressões digitais, penas, folhas e
ondulações da areia. Esta técnica ficou conhecida como teoria de
"reação-difusão".
Usando
microscópios 3D, os pesquisadores de Bristol descobriram que a cauda do
espermatozoide (ou flagelo) serpenteia, gerando ondas que viajam através dela
para movê-la para frente.
Esta é
uma descoberta importante, pois compreender como o espermatozoide se move pode
ajudar os cientistas a entender a fertilidade masculina.
É assim
que os espermatozoides começam a se mover. Eles viajam através do colo do
útero, dali para o útero até os ovidutos – os tubos percorridos pelos óvulos
para atingir o útero. Nas mulheres humanas, estes tubos são conhecidos como
trompas de Falópio.
Mas,
aqui, existe outra lacuna no nosso conhecimento. Os cientistas não sabem
exatamente como os espermatozoides encontram seu caminho até o óvulo.
Poucos
espermatozoides saudáveis seguem o caminho correto. Muitos deles seguem por
outro trajeto no labirinto que é o corpo feminino e nunca chegam nem perto da
linha do gol.
Os
cientistas acham que aqueles que, de fato, encontram o caminho até as trompas
de Falópio podem ser orientados por sinais químicos emitidos pelo óvulo.
Uma
teoria recente afirma que o espermatozoide pode usar receptores de sabor para
"provar" o seu caminho até a fecundação.
Mas o
desafio não acaba quando o espermatozoide encontra o óvulo.
A
célula feminina é rodeada por uma tripla camada de proteção: a corona radiata,
que é um conjunto de células; a zona pellucida, uma almofada em forma de
geleia, feita de proteína; e, por fim, a membrana de plasma do óvulo.
Os
espermatozoides precisam abrir caminho para atravessar todas essas camadas.
Para isso, eles empregam substâncias contidas no seu acrossomo, uma estrutura
em forma de gorro sobre a cabeça do espermatozoide, que contém enzimas que
digerem o revestimento celular do óvulo.
Mas o
que ativa a liberação dessas enzimas permanece um mistério.
Em
seguida, o espermatozoide usa um espinho na sua "cabeça" para tentar
abrir caminho até o óvulo. Ele também se debate com a cauda para forçar a
entrada.
E, se
um espermatozoide finalmente fizer contato com a membrana do óvulo, ele é
tragado e pode completar a fertilização.
As
células humanas são diploides, ou seja, elas contêm dois conjuntos completos de
cromossomos, do pai e da mãe. E, se mais de um espermatozoide se fundisse com o
óvulo, surgiria uma condição chamada poliespermia.
Esta
condição causaria o desenvolvimento de células não diploides, com número
incorreto de cromossomos – uma condição letal para um embrião em
desenvolvimento.
Para
evitar que isso aconteça, logo após o contato de um espermatozoide, o óvulo
emprega rapidamente dois mecanismos.
Em
primeiro lugar, sua membrana de plasma se despolariza rapidamente. Ou seja, ela
cria uma barreira elétrica que outros espermatozoides não conseguem atravessar.
Mas
isso dura apenas um curto período e a polarização logo volta ao normal. É aqui
que entra a reação cortical.
Uma
súbita liberação de cálcio faz com que a zona pellucida (o "revestimento
extracelular" do óvulo) se endureça, criando uma barreira impenetrável.
Por
isso, dos milhões de espermatozoides que se lançam na jornada, apenas um (no
máximo) consegue completar seu trabalho, quando sua jornada épica culmina na
sua fusão com o óvulo.
Atualmente,
os pesquisadores ainda tentam descobrir a identidade e o papel das proteínas da
superfície celular que podem ser responsáveis pelo reconhecimento, união e
fusão entre o espermatozoide e o óvulo.
Diversas
proteínas foram identificadas em peixes e camundongos nos últimos anos como
sendo fundamentais para este processo, mas muitas das moléculas envolvidas
ainda são desconhecidas.
Por
enquanto, o que leva o espermatozoide e o óvulo a se reconhecerem e como eles
se fundem ainda são mistérios que aguardam solução.
• O 'viés sexual' da ciência
Os
pesquisadores esperam trazer novos esclarecimentos sobre o esperma estudando
outras espécies, segundo o professor de Biologia Scott Pitnick, da Universidade
de Syracuse, no Estado americano de Nova York.
Os
espermatozoides humanos são microscópicos. Ou seja, não podemos vê-los a olho
nu.
Mas
algumas espécies de moscas-das-frutas produzem espermatozoides 20 vezes maiores
que o comprimento do seu próprio corpo. Seria como se um homem produzisse
espermatozoides com quase 40 metros de comprimento.
Pitnick
altera a cabeça dos espermatozoides da mosca-das-frutas para fazê-los brilhar.
Com isso, ele pode assistir à sua viagem através do trato reprodutivo de moscas
fêmeas dissecadas.
Seu
estudo revela novos detalhes sobre a fertilização em nível molecular.
"Por
que os machos de algumas espécies produzem poucos e gigantescos
espermatozoides?", pergunta Pitnick. "A resposta é porque as fêmeas
possuem tratos reprodutivos evoluídos para favorecê-los."
Ele
admite que esta, "na verdade, não é bem uma resposta", já que ela
simplesmente redireciona a questão.
Por que
as fêmeas evoluíram desta forma? "Ainda não entendemos isso",
responde o professor.
Mas
esta descoberta ensina que o esperma existente no corpo do macho é apenas a
metade da história.
"Existe
historicamente um imenso viés sexual na ciência", destaca Pitnick.
"Existe
este viés obsceno dos homens que se concentram nas características masculinas.
Mas o que dirige o sistema é a evolução feminina – e os machos simplesmente
tentam acompanhá-la."
Pitnick
afirma que o espermatozoide é o tipo de célula mais diverso e em evolução mais
rápida que existe no planeta.
O
motivo que levou o esperma a atingir esta evolução tão dramática é um mistério
que confunde os biólogos há mais de um século.
"Ocorre
que o trato reprodutor feminino é um ambiente incrível, em rápida
evolução", prossegue o professor, "e não sabemos muito sobre o que o espermatozoide
faz dentro da fêmea."
"Este
é o grande mundo escondido. Acho que o trato reprodutor feminino é a maior
fronteira não explorada da especiação [o processo de formação de novas
espécies], teoria e seleção sexual."
Pitnick
sugere que o espermatozoide de cauda longa da mosca-das-frutas pode ser
considerado um ornamento, como a galhada do cervo ou a cauda do pavão.
Os
ornamentos são uma "espécie de arma na evolução", segundo ele. Mais
do que uma simples defesa contra os predadores, ornamentos como chifres e
galhadas têm duas funções.
"Muitas
dessas armas estão relacionadas ao sexo e, normalmente, à competição entre os
machos", explica o professor.
"O
longo flagelo do espermatozoide [da mosca-das-frutas] realmente atende aos
critérios que definem um ornamento. Achamos que o trato feminino tenha
características que orientem a fertilização em favor de alguns fenótipos de
espermatozoides, em detrimento de outros."
Nós
detemos muito conhecimento sobre a seleção sexual antes do acasalamento,
segundo Pitnick.
"Podem
ser as galinhas do campo dançando sobre a grama ou uma ave-do-paraíso que se
exibe na floresta tropical. É o movimento, é a cor, são os cheiros?"
O
processamento dessa percepção sensorial leva os parceiros a decidirem se irão
ou não se acasalar, afirma Pitnick.
Mas o
professor destaca que a seleção sexual que ocorre dentro da fêmea após o
acasalamento – e como ela dirige a evolução do esperma – permanece, em grande
parte, um mistério.
"Ainda
entendemos muito pouco sobre a genética dos ornamentos e preferências",
segundo ele.
Para
entender completamente o esperma, precisamos pensar em todo o ciclo de vida do
espermatozoide. E o corpo feminino, segundo Pitnick, tem enorme participação no
seu desenvolvimento.
"Os
espermatozoides não amadurecem quando terminam seu desenvolvimento nos
testículos", explica ele. "Eles não param de se desenvolver."
Interações
complexas e fundamentais ocorrem entre o esperma e o trato reprodutor feminino,
afirma o professor.
"Agora,
estamos dedicando muito tempo a estudar o que chamamos de modificações
pós-ejaculatórias dos espermatozoides em todo o reino animal."
• A infertilidade humana
Enquanto
os cientistas desvendam os variados processos enfrentados pelos espermatozoides
até atingirem a fertilização, outras pesquisas vêm trazendo reais preocupações
sobre o estado atual do esperma humano.
Os
homens produzem cerca de um trilhão de espermatozoides ao longo da vida. Por
isso, seria difícil imaginar a existência de problemas.
Mas
pesquisas indicam que a contagem de espermatozoides – o número de
espermatozoides em uma amostra de sêmen – está despencando em todo o mundo. E
este declínio parece estar se acelerando.
É
importante observar que muitas pessoas em todo o planeta, agora, têm menos
filhos do que gostariam por outros motivos, como os custos proibitivos da
paternidade, como destacou um recente relatório do Fundo de População das
Nações Unidas.
Mas um
relatório publicado em 2023 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que
um a cada seis adultos do planeta sofre de infertilidade. E a infertilidade
masculina representa cerca de metade dos casos.
Acredita-se
que fatores como a poluição, o fumo, álcool, má alimentação, falta de
exercícios e o estresse prejudiquem a fertilidade masculina. Mas, para a
maioria dos homens com problemas, o motivo permanece sem explicação.
"Com
todos estes fatores em movimento, existem muitos pontos que podem dar
errado", afirma a pesquisadora em pós-doutorado em Saúde Fetal e Materna
Hannah Morgan, da Universidade de Manchester, no Reino Unido.
"Pode
ser um mecanismo: ele não nada muito bem e, por isso, não consegue chegar ao
óvulo. Ou pode ser algo mais complexo no interior da cabeça, ou em outras
partes do espermatozoide."
"Ele
é tão especializado, de tantas formas diferentes, que muitas pequenas coisas
podem dar errado", explica Morgan.
Uma
forma de verificar se um homem pode ser infértil é observar o interior do
espermatozoide, segundo ela.
"Qual
é a aparência do DNA? Como ele é formado? Qual é a sua fragmentação?"
"Se
abrirmos o espermatozoide, existem muitos pontos que poderíamos observar",
afirma a pesquisadora. "Mas o que é uma boa ou má avaliação? Realmente,
não sabemos."
Morgan
acredita que, se desvendarmos os mistérios do esperma e seu funcionamento,
talvez possamos começar também a entender a infertilidade masculina.
Fonte:
BBC Future

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