Filmes
de exorcismo: realismo ou enganação?
O
escritor e cineasta William Peter Blatty ainda estava na Universidade de
Georgetown, em Washington (EUA), quando ouviu, pela primeira vez, a história de
um garoto de 14 anos que teria sido vítima de uma "possessão
demoníaca". Foi durante uma aula de literatura e filosofia escolástica
ministrada pelo padre Eugene B. Gallagher.
O caso
aconteceu com Ronald Edwin Hunkeler, na cidade de Mount Rainier, no estado
americano de Maryland, e durou 94 dias – começou no dia 15 de janeiro de 1949 e
terminou no dia 19 de abril. Ao longo de três meses, fenômenos inexplicáveis
teriam sido testemunhados no número 3.210 da Bunker Hill Road: o colchão onde o
garoto dormia se agitava durante a noite, uma pesada poltrona se movia para cá
e para lá e um frio glacial invadiu o quarto dele.
No dia
16 de março, dois padres jesuítas, William Bowdern e Raymond Bishop, por
orientação do arcebispo Joseph Ritter, foram chamados para expulsar o demônio
do corpo do garoto. "Posso garantir uma coisa: esse caso era mesmo
real", declarou Bowdern no livro William Peter Blatty on The Exorcist:
From Novel to Film, de 1974. "Não tive a menor sombra de dúvidas na época
e não tenho a menor sombra de dúvidas agora."
O tempo
passou, mas Blatty não conseguiu esquecer o que ouviu naquele dia em sala de
aula. A princípio, ele pensou em escrever um livro baseado no caso, mas foi
desaconselhado pelo arcebispo: a família não queria publicidade. O jeito foi
transformar a história numa obra de ficção.
Em vez
de Mount Rainier, em Maryland, o romance seria ambientado em Georgetown, em
Washington. No lugar de Ronald Edwin Hunkeler, de 14 anos, a protagonista seria
Regan MacNeil, de 12. Os nomes dos padres exorcistas também foram mudados: de
William Bowdern e Raymond Bishop para Lankester Merrin e Damien Karras.
Batizado
de O Exorcista, o livro foi publicado no dia 5 de maio de 1971 e logo teve os
direitos comprados pela Warner Bros. O estúdio negociou com Stanley Kubrick,
Arthur Penn e Mike Nichols, entre outros cineastas, mas todos eles, por
diferentes razões, recusaram a proposta. Por fim, fechou com William Friedkin.
No
livro O Exorcista – Segredos e Devoção (Dark Side), o crítico de cinema
britânico Mark Kermode cita algumas das idiossincrasias do diretor, como
disparar armas de fogo no set de filmagem, repetir zilhões de vezes a mesma
cena e, para extrair atuações convincentes de seus atores, chegar ao cúmulo de
esbofeteá-los no rosto. "A filmagem demorou mais tempo do que o previsto e
custou infinitamente mais do que o planejado", resume Kermode.
Com
roteiro do próprio Blatty, O Exorcista estreou no dia 26 de dezembro de 1973.
Custou 12 milhões de dólares e faturou 402 milhões de dólares.
"Foi
uma porrada", descreve o jornalista americano Peter Biskind, autor de Como
a Geração Sexo, Drogas E Rock'n'Roll Salvou Hollywood (Intrínseca). "Os
exibidores mantinham lixeiras à mão para socorrer quem não conseguia manter o
jantar no estômago."
Nascia
ali um gênero: o dos filmes de possessão. Só o original de Blatty inspirou seis
longas-metragens e uma série de TV.
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Por que filmes de exorcismo fazem sucesso?
Nesta
quinta-feira (31/07), é a vez de O Ritual, de David Midell. Depois de Max Von
Sydow, Anthony Hopkins e Russell Crowe interpretarem padres em O Exorcista
(1973), O Ritual (2011) e O Exorcista do Papa (2023), entre outros, quem veste
a batina é Al Pacino.
Mas por
que filmes de exorcismo, a julgar pela infinidade deles, fazem tanto sucesso?
"Por
um lado, há falta de conhecimento teológico. Por outro, há curiosidade mórbida
pelo ocultismo", avalia o monsenhor Rubens Miraglia Zani, doutor em
direito canônico pela Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma, e pároco da
Igreja Maronita Nossa Senhora do Líbano, em Bauru (SP). Aos 61 anos e 12 de
ministério, ele é um dos mais experientes exorcistas do Brasil.
"A
maioria dos filmes sobre possessão é fantasiosa. Comete erros teológicos
graves, apresenta uma visão distorcida do fenômeno e está mais interessada em
assustar o público do que qualquer outra coisa", afirma Zani, que é autor
de cursos sobre o tema.
Aos
aficionados pelo gênero, ele indica dois filmes que, do ponto de vista
teológico, considera os mais confiáveis: O Exorcismo de Emily Rose (2005), de
Scott Derrickson, e Nefarious (2023), de Cary Solomon e Chuck Konzelman.
No
primeiro, uma advogada é contratada para defender um padre acusado de homicídio
culposo na morte de Emily Rose (Jennifer Carpenter), vítima de um exorcismo
malsucedido. No segundo, um psiquiatra é encarregado por um juiz de avaliar a
sanidade mental de Edward Wayne Brady (Sean Patrick Flanery), um serial killer
condenado à morte.
O que
esses longas têm em comum com O Exorcista? A consultoria técnica com sacerdotes
entendidos do assunto. Durante as filmagens do clássico de 1973, William
Friedkin ouviu os reverendos John Nicola, Thomas Bermingham e William O'Malley,
todos jesuítas. No caso de O Exorcismo de Emily Rose, a consultoria técnica foi
do padre John George; no de Nefarious, do Reverendo Darrin Merlino.
O
Exorcismo de Emily Rose é baseado numa história real: a da estudante alemã Anna
Elisabeth Michel. Supostamente "possuída por demônios", morreu em
1976, aos 23 anos, depois de ser submetida a 67 sessões de exorcismo, algumas
com até quatro horas de duração, praticadas pelos padres Ernest Alt e Arnold
Renz.
O caso
foi parar nos tribunais: acusados de homicídio culposo, quando não há intenção
de matar, tanto os pais da moça quanto os responsáveis pelo exorcismo foram
condenados a seis meses de prisão. No entanto, os quatros foram soltos em
liberdade condicional.
Além de
O Exorcismo de Emily Rose, o caso de Anneliese Michel inspirou o filme Requiem
(2006), de Hans-Christian Schmid, e o livro Anneliese Michel – A Verdadeira
História de Um Caso de Possessão Demoníaca (2021), do padre José Antonio Fortea
e Lawrence LeBlanc.
Já
Nefarious, de Cary Solomon e Chuck Konzelman, é inspirado numa obra de ficção:
o livro Nefarious – O Plano Maligno (2016), de Steve Deace.
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Campo de batalha
O mais
famoso exorcista de todos os tempos é o italiano Gabriele Amorth. Estima-se
que, entre 11 de junho de 1986, quando foi nomeado exorcista pelo bispo de
Roma, o cardeal Ugo Poletti, e o dia 16 de setembro de 2016, quando morreu,
Amorth tenha realizado mais de 60 mil exorcismos. O mais curto durou dez
minutos. O mais longo, quase 30 anos. "Fico satisfeito quando um caso se
resolve em quatro ou cinco anos", costumava dizer.
Segundo
o cânon 1.172, do Código de Direito Canônico, nenhum presbítero pode fazer
exorcismos em possessos sem autorização do bispo. São eles os responsáveis por
delegar aos padres de suas dioceses o poder conferido por Jesus de expulsar
demônios. Os critérios de seleção são quatro: piedade, ciência, prudência e
integridade de vida.
"A
princípio, qualquer padre pode ser nomeado. Mas é necessário ter carisma e
formação", pondera Dom Antônio Luiz Catelan Ferreira, bispo auxiliar da
Arquidiocese do Rio e membro da Comissão Episcopal Pastoral para a Doutrina da
Fé, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). "Para aplicar o
exorcismo, é preciso ter certeza moral de que se trata de uma possessão.
Fenômenos de natureza psicológica precisam ser descartados."
Segundo
a CNBB, o país tem hoje 22.164 padres. Desses, 63 são exorcistas filiados à
Associação Internacional de Exorcistas (AIE), entidade fundada por Gabriele
Amorth e reconhecida pela Igreja Católica em 2014. "É um bom número, mas
ainda não é o suficiente para atender a demanda", comenta o padre João
Paulo Veloso, secretário geral de Língua Portuguesa da AIE e pároco da Igreja
de São Cristóvão, em Palmas (TO).
A
recomendação da Igreja é que, se possível, cada diocese tenha o seu presbítero
exorcista. É o que diz Exorcismos: Reflexões Teológicas e Orientações Pastorais
(2017), da CNBB. Atualmente, o Brasil tem 217 dioceses. "Não é obrigatório
ser associado à AIE para exercer o Ministério do Exorcismo. Mas o associado
recebe subsídios teológico-pastorais e apoio espiritual."
Em
setembro, a AIE vai promover o Congresso Internacional de Exorcistas, na
Itália, e, em novembro, um evento em Florianópolis (SC). Até o fim do ano,
estreia o documentário italiano Livrai-nos do Mal, de Giovanni Ziberna e
Valeria Baldan.
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"Livrai-nos do mal, amém!"
Os
padres João Ramiro Torres Fernandes, vigário paroquial da Paróquia Santo
Antônio de Pádua, da Diocese de Frederico Westphalen (RS), e José Francisco
Giribone Cardoso, da Catedral de São Pedro e da Paróquia Nosso Senhor do Bom
Fim, da Diocese do Rio Grande (RS), são dois dos 63 exorcistas brasileiros
inscritos na AIE.
"O
ritual de exorcismo é uma celebração onde o presbítero pede a Deus a libertação
do mal de um indivíduo", resume padre João Ramiro, exorcista há dois anos.
"Há dois tipos: os menores ou simples, e os maiores ou solenes."
Na
maioria das vezes, o ritual mostrado nos filmes é o maior ou solene, quando, de
forma imperativa e munido de sacramentais, como crucifixo, água benta e óleo
santo, o exorcista ordena ao demônio a libertação do corpo do possesso. "A
celebração não pode ser feita publicamente. Deve ser realizada em um lugar
sagrado, como capela ou igreja. Pode até ser realizada em uma sala, mas precisa
ser abençoada e só utilizada para essa finalidade", ressalva.
Se o
possuído estiver doente, o exorcismo pode ser realizado em casa. Por medida de
segurança, deve ser acomodado numa poltrona, nos casos mais leves, ou numa
cama, nos mais graves. Durante o ritual, o exorcista poderá ser ajudado por
leigos. Uns ajudarão o padre a segurar o possuído. Outros, a rezar o santo
rosário e a invocar a intercessão dos santos. Nenhum deles, porém, deve dirigir
a palavra ao endemoniado.
"A
Igreja proíbe que o ritual seja gravado ou fotografado. O objetivo é zelar pela
privacidade dos envolvidos", afirma monsenhor Zani.
O
Ritual de Exorcismos e Outras Súplicas, versão em português do Rituale romanum,
publicado por Papa Paulo 5º em 1614, estabelece alguns sintomas de possessão,
como falar línguas desconhecidas, manifestar fatos ocultos e demonstrar força
descomunal. "A aversão ao sagrado é um dos principais critérios para
discernir se estamos diante de uma possessão demoníaca ou de um transtorno
psiquiátrico", observa padre João Ramiro.
Por
essa razão, os exorcistas recomendam que, antes de procurar um padre, o
indivíduo seja consultado por um psicólogo ou psiquiatra. "Se a pessoa não
foi ao psiquiatra, não a exorcizo", costumava avisar Gabriele Amorth.
"Primeiro, quero ver o diagnóstico médico."
"Quando
digo que sou exorcista há seis anos, alguns paroquianos demonstram curiosidade;
outros sentem medo. Nessas horas, procuro explicar a eles que sou o intercessor
que pede a Deus a libertação de um mal", explica padre José Giribone.
"As pessoas precisam saber que o demônio existe e que precisamos nos
livrar dele."
Fonte:
DW Brasil

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