Crises,
guerras, avanços tecnológicos: Estamos vivendo o fim do 'fim da história'?
Historiadores explicam
A
impressão de que o mundo atravessa, simultaneamente, guerras, colapsos
climáticos, revoluções tecnológicas e conflitos políticos não é apenas
sensação: é o que historiadores definem como uma aceleração da história — um
período em que múltiplos processos globais se desdobram de forma interligada,
intensa e imprevisível.
➡️Alguns dos fenômenos que ajudam a explicar a
sensação de que o mundo chegou a um ponto de virada:
• Guerras comerciais patrocinadas pelos
EUA e disputa com a China
• Tensões dentro das democracias liberais
ocidentais
• Ascensão da extrema-direita e de líderes
antissistema
• Conflitos armados em diversas regiões,
inclusive dentro da Europa
• Polarização política intensa e
globalizada
• Disputas culturais e avanço de guerras
ideológicas
• Crise climática e aumento de eventos
extremos
• Revolução da inteligência artificial e
seus impactos no mercado de trabalho
“É um
cenário de incerteza em relação ao presente e mais ainda em relação ao futuro.
Considero a sensação parecida com a vivida durante a Segunda Guerra Mundial.
Múltiplos atores aparecem no jogo internacional, e não há clareza sobre o que
será o dia de amanhã”, diz o historiador Carlos Vidigal, da Universidade de
Brasília (UnB).
Essa
percepção se fortalece pela dinâmica do mundo atual. Em um planeta globalizado,
decisões econômicas, conflitos militares, avanços tecnológicos e lutas
ideológicas se retroalimentam e reverberam simultaneamente, impactando a vida
de bilhões de pessoas.
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O fim da história?
Em
1991, após o colapso da União Soviética, o historiador americano Francis
Fukuyama formulou uma ideia que marcou época: a vitória da democracia liberal
ocidental significaria o “fim da história” — não no sentido literal, mas como o
ponto final das grandes disputas ideológicas globais.
➡️Três décadas passadas, a realidade mostra o
oposto. A queda da URSS criou novos polos de instabilidade, reacendeu disputas
de influência e produziu um mundo mais fragmentado. Hoje, a ideia de Fukuyama é
reavaliada à luz de conflitos como a invasão da Ucrânia pela Rússia, o
surgimento de potências autocratas como China e Rússia e o desgaste da
democracia liberal em vários países.
➡️Em 2022, o próprio Fukuyama voltou ao debate
com o livro "Liberalism and Its Discontents" (Liberalismo e seus
descontentes, em tradução livre), no qual faz uma revisão crítica de suas
ideias anteriores.
Inspirando-se
no ensaio de Freud "O mal-estar na civilização", o autor reconhece
que o liberalismo falhou, nas últimas décadas, em atender às expectativas de
justiça social — o que contribuiu tanto para o avanço de líderes populistas à
direita quanto para o descontentamento crescente entre setores da esquerda.
O
cientista político Murilo Medeiros afirma que as sociedades carregam cada vez
mais o "sentimento de exclusão e insatisfação" em relação às
instituições democráticas.
"Com
o descrédito das elites, a polarização ganhou terreno entre diferentes grupos
ideológicos. E tal cenário alimentado por sentimentos de exclusão e por uma
busca maior de controle popular sobre as decisões políticas", afirma
Murilo Medeiros.
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Guerras e militarização
O uso
da força voltou ao centro da política internacional. A invasão da Ucrânia pela
Rússia, os conflitos no Oriente Médio e o aumento das tensões no mar do Sul da
China refletem uma nova era de expansão militar, muitas vezes comandada por
líderes populistas com discurso nacionalista.
“Vamos
assistir a uma nova corrida por armas e tecnologias militares. A preparação
para a guerra se tornou explícita”, afirma o historiador Antônio Barbosa, da
UnB.
Em
2025, segundo a Academia de Genebra, universidade suíça, havia 110 conflitos
armados ativos no mundo — com maior incidência no Oriente Médio e na África. Um
dos episódios mais recentes foi o ataque de Israel ao Irã, em junho, sob a
justificativa de neutralizar uma ameaça nuclear.
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Blocos econômicos e disputas comerciais
Em
paralelo aos conflitos, disputas comerciais e tecnológicas também remodelam a
ordem global. Os Estados Unidos, sob a presidência de Donald Trump, têm adotado
tarifas e sanções unilaterais como estratégia de contenção ao avanço chinês e
para reafirmar sua hegemonia.
“A
globalização interconecta todos os fatores”, explica o cientista político
Joscimar Silva, também da UnB. “Um exemplo claro são os blocos econômicos, que
atuam de forma coordenada para defender interesses comuns e redesenham o
cenário geopolítico”, analisa o professor.
Ao
mesmo tempo, alianças econômicas no Sul Global se fortalecem – países em
desenvolvimento se organizam em blocos, como o Brics. Isso enfraquece cada vez
mais a posição hemegônica dos Estados Unidos e estimulam uma ordem multipolar
no mundo.
O
Brasil, por exemplo, negocia acordos com União Europeia, China e países
africanos, tentando ampliar sua margem de manobra geopolítica.
“O que
os EUA fazem é conter a ascensão da China. Mas a potência asiática já
desenvolveu tecnologias que superam as ocidentais e conquista mercados com
rapidez”, diz Antônio Barbosa.
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A força da China e a resposta russa
A China
cresceu 5,2% no segundo trimestre de 2025, mesmo em meio à guerra comercial com
os Estados Unidos. Em parceria com a Rússia, Pequim propõe um modelo
alternativo à democracia liberal ocidental.
“Putin
e Xi Jinping promovem a ideia de que regimes autocráticos garantem maior
eficiência e coesão. Essa será uma disputa ideológica central nas próximas
décadas”, avalia Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da
Universidade de São Paulo.
Putin,
por exemplo, age para restabelecer o prestígio russo com base em narrativas
históricas, expansionismo territorial e no fortalecimento da própria figura
como líder absoluto. A anexação da Crimeia, a invasão da Ucrânia e a atuação
militar em países vizinhos fazem parte desse projeto.
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Polarização, identidade e disputa cultural
No
plano interno dos países, o avanço de lideranças autoritárias, a polarização
nas redes e o crescimento de movimentos identitários reconfiguram o ambiente
político.
“Movimentos
sociais surgem buscando direitos, mas também são capturados por discursos de
guerra cultural por parte da extrema direita”, afirma Antônio Barbosa.
A
disputa gira entre uma agenda de costumes conservadora e demandas progressistas
por igualdade e diversidade — o que intensifica o clima de confronto em países
como Brasil, Argentina, Estados Unidos, Hungria e Itália.
“A
liderança populista surfa na onda do medo, da desinformação e da nostalgia de
um passado hierárquico. As redes sociais reforçam as bolhas e simplificam
debates profundos”, analisa o antropólogo Ismael Silva, da UnB.
Revolução
tecnológica e o futuro do trabalho
A
inteligência artificial (IA) e a automação impõem um novo salto civilizacional.
O Fórum Econômico Mundial estima que, até 2030, 92 milhões de empregos podem
desaparecer, mas 170 milhões de novas vagas devem surgir — exigindo maior
qualificação e reestruturação do mercado de trabalho.
Segundo
o historiador Carlos Vidigal, da UnB, o acesso desigual à tecnologia pode
ampliar abismos sociais. E a regulação da IA, se vier, terá de ser construída
em colaboração com os setores produtivos e os governos — sob risco de ampliar
ainda mais a instabilidade global.
“Esse
padrão se repete desde a Primeira Revolução Industrial. Mas agora, a
desigualdade pode se aprofundar ainda mais”, alerta Vidigal.
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Um novo ponto de inflexão
O “fim
da história” previsto por Fukuyama não se concretizou. Em vez disso, o mundo
assiste a uma nova disputa por poder, tecnologia, recursos e narrativas.
Democracias
passam por crises de identidade e autocracias se fortalecem, entre o Ocidente e
modelos alternativos, entre o passado que resiste e um futuro em redefinição.
Fonte:
g1

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