O
PIX, a China e os direitos humanos
Um
grupo de intelectuais da China e da América Latina reuniu-se num encontro para
debater direitos humanos numa perspectiva do Sul Global. A Segunda Mesa Redonda
China-América Latina e Caribe sobre Direitos Humanos – a primeira aconteceu no
ano passado, no Rio de Janeiro –, com a presença de pesquisadores de 20
diferentes países, da Argentina ao México, ocorreu em São Paulo, na sexta-feira
(25). O assunto é urgente, tanto na
China, que ganhou destaque na área ao tornar públicos vários projetos de IA
generativa recentemente, quanto na América Latina, cuja produção de dados está
sob vigilância incontrolável de governos e grandes players tecnológicos,
sobretudo ocidentais, numa espécie de colonialismo digital. Vários dos
acadêmicos presentes discutiram questões legais, entre outras razões porque o
governo chinês tem tratado como uma de suas metas o fortalecimento do Estado de
Direito e a defesa de questões como o direito à privacidade e os direitos
autorais. Mas, entre pesquisas e preocupações de longo prazo, um tema urgente
apareceu na discussão: o ataque dos Estados Unidos ao PIX brasileiro.
O
economista Andres David Arauz Galarza, ex-candidato à
Presidência do Equador e pesquisador da Clacso (Conselho Latino-Americano de
Ciências Sociais), discutiu justamente o direito à privacidade diante da
vigilância financeira hegemônica – e como dados de pessoas físicas podem ser
usados, sobretudo pelos Estados Unidos, para definir políticas globais e também
específicas. E aí entra uma das explicações para o ataque de Donald Trump ao PIX
brasileiro. Desde o Ato Patriótico, instituído após os ataques contra as Torres
Gêmeas em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos têm acesso a informações
sobre todas as transações financeiras feitas através de bandeiras como Visa e
MasterCard – ou seja, há mais de duas décadas, a cada compra que fazemos na
farmácia da esquina ou num site australiano, informamos também o Estado
norte-americano sobre o que fazemos e pensamos.
Por
qualquer entrada, seja um número de identificação de um documento, como
passaporte, RG, CPF, ou o próprio número do cartão de crédito, é possível
levantar não só a movimentação financeira, como também rastrear trajetos
físicos de quem usa essas bandeiras para além dos próprios gastos.
Porém,
mais do que isso, num mundo em que a capacidade de análise de dados se torna
gigantesca, por conta dos mecanismos de processamento e inteligência
artificial, as possibilidades de planejamento para as guerras comerciais se
multiplicam, com a utilização de dados em massa. É aí que entra o PIX. Por usar
uma tecnologia própria, o PIX brasileiro deixou de
fornecer,
pelo menos tão facilmente, dados estratégicos para os Estados Unidos. Além
disso, mostrou a possibilidade de que outros países do mundo possam fazer o
mesmo. O PIX ameaça os Estados Unidos justamente porque fere de morte a ideia
de que o Sul Global não é capaz de desenvolver tecnologias de ponta, universais
e gratuitas, mas também porque tira efetivamente do controle da nação
hegemônica essas informações. Num mundo em que a invasão da privacidade
individual em massa se combina com todas as outras lógicas de dominação, temos
um buraco no casco do Titanic que pretende governar o mundo.
<><>
Consenso de São Paulo
Ao
final do encontro, os representantes dos 20 países divulgaram uma carta
intitulada “Consenso de São Paulo”. A carta reafirmou o interesse em ampliar a
cooperação multilateral em direitos humanos e declarou que, diante de um
cenário mundial instável, é preciso adotar uma abordagem compartilhada e
respeitosa da diversidade cultural e histórica das nações envolvidas. O
documento defende que a proteção dos direitos humanos deve respeitar as
realidades nacionais, promovendo conjuntamente direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais. Destacou-se ainda a importância da manutenção
da paz, da estabilidade e do desenvolvimento para que se possa garantir esses
direitos. Os participantes enfatizaram que não há um único modelo válido
universalmente na questão, e que a diversidade deve ser valorizada na busca por
justiça social.
O texto
do grupo alerta para a necessidade de garantir acesso equitativo aos avanços
tecnológicos e de criar normas éticas para seu uso. A capacitação digital ampla
e a prevenção de desigualdades tecnológicas foram apontadas como medidas
urgentes para proteger os direitos fundamentais em tempos de inovação
acelerada. Outro ponto reforçado foi a importância do multilateralismo e da
solidariedade Sul-Sul no enfrentamento dos desafios ambientais e sociais.
Também a proteção ambiental foi destacada como direito humano essencial,
exigindo desenvolvimento sustentável e governança ecológica. Por fim, o
Consenso de São Paulo propôs o fortalecimento de redes acadêmicas e de
mecanismos permanentes de cooperação, bem como o reforço das Organizações das
Nações Unidas como eixo da governança global dos direitos humanos.
<><>
Leia abaixo a íntegra do Consenso de São Paulo
Nós,
representantes da China e dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos,
reunimo-nos em 25 de julho de 2025 em São Paulo, Brasil, por ocasião da Segunda
Mesa Redonda China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos sobre Direitos
Humanos, e comunicamos profundamente sobre o tema “Comunidade com Futuro
Compartilhado entre a China e a América Latina e o Desenvolvimento dos Direitos
Humanos”, alcançando amplo consenso. Aqui, propomos o lançamento da “Rede de
Cooperação e Pesquisa sobre Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e
Caribenhos”, utilizando o intercâmbio acadêmico como elo para estabelecer uma
plataforma de cooperação regular no campo da pesquisa em direitos humanos. Por
meio do compartilhamento de informações, pesquisas conjuntas, capacitação de
talentos e intercâmbio de experiências, promoveremos o desenvolvimento conjunto
dos Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos, e
ofereceremos novas contribuições e caminhos para o aprimoramento da governança
global dos direitos humanos.
As
medidas específicas incluem:
- Estabelecer um
mecanismo de compartilhamento de informações. Realizar comunicações
regulares sobre políticas, resultados acadêmicos e dados de pesquisa dos
direitos humanos China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos,
comunicando-se por e-mail e plataformas de mídia social.
- Inovar e
impulsionar pesquisas conjuntas. Incentivar intercâmbios acadêmicos
diversificados e seminários sobre políticas em torno de áreas-chave e
temas prioritários dos Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e
Caribenhos, divulgando relatórios de pesquisa conjunta e publicações.
- Fortalecer a
capacitação em políticas dos direitos humanos Promover educação e
treinamento em direitos humanos, reforçar a construção de disciplinas e a
formação de talentos, e convidar especialistas latino-americanos e
caribenhos para participarem nos projetos de pesquisa de curto prazo e
programas de treinamento na China, fomentando o intercâmbio bilateral.
- Criar um banco
de dados de casos Compilar resultados de pesquisa e casos práticos dos
Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos, promovendo
seu compartilhamento, aplicação e transformação em escala global,
fornecendo referências para a governança internacional dos direitos
humanos.
Convidamos
instituições e representantes de mais países e regiões a se juntarem à “Rede de
Cooperação e Pesquisa sobre Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e
Caribenhos”, para juntos escrevermos um novo e grandioso capítulo na construção
da Comunidade de Futuro Compartilhado China-Estados Latino-Americanos e
Caribenhos e o Desenvolvimento da Causa dos Direitos Humanos!
¨ China fala em
"promover" comércio com o Brasil diante de tarifaço dos EUA
Diante
da possibilidade de os Estados Unidos imporem uma tarifa de 50% sobre produtos
brasileiros já nesta sexta-feira (1º), a China sinalizou interesse em reforçar
laços comerciais com o Brasil e outros países do Brics. A posição foi expressa
nesta segunda-feira (28) pelo porta-voz do Ministério das Relações Exteriores
chinês, Guo Jiakun, durante entrevista coletiva em Pequim. Em resposta direta à ameaça tarifária, Guo
afirmou que “a China está disposta a trabalhar junto com os países da América
Latina e do Brics, incluindo o Brasil, para defender conjuntamente o sistema
multilateral de comércio, centrado na OMC (Organização Mundial de Comércio) e
proteger a justiça e a equidade internacional”. Questionado sobre a
possibilidade de a China abrir mais seu mercado a produtos brasileiros que hoje
são vendidos aos EUA — como os aviões da Embraer —, o porta-voz destacou que
Pequim pretende ampliar a cooperação com o Brasil no setor. “A China valoriza a
cooperação pragmática com o Brasil na área de aviação e outros campos e está
disposta a promovê-la com base em princípios de mercado”, afirmou.
O
posicionamento do governo chinês também reflete as negociações comerciais que
ocorrem até esta terça-feira (29) com os Estados Unidos, em Estocolmo. O tom
adotado por Guo foi semelhante ao usado ao tratar do Brasil. “Com base na
igualdade, respeito e reciprocidade, por meio do diálogo, aprimoraremos o
consenso e reduziremos mal-entendidos”, declarou. Ao ser questionado se a China
aceitaria um acordo semelhante ao firmado entre os EUA e a União Europeia — que
estabeleceu uma tarifa de 15% e desagradou líderes europeus —, Guo reiterou a
defesa da solução pacífica para disputas comerciais. “A China sempre defendeu
que todas as partes resolvam as diferenças econômicas e comerciais por meio do
diálogo e da consulta em igualdade de condições”, disse. Grande parte da
coletiva desta segunda-feira foi dedicada a temas econômicos. Guo foi
questionado ainda sobre uma possível suspensão, por parte da China, de medidas
de controle de exportação para facilitar um eventual acordo com os EUA — como
antecipado pelo Financial Times em Washington. O porta-voz não
confirmou se Pequim adotou a mesma postura de Washington, que teria
interrompido a adoção de novas restrições. “Sempre tivemos esperança de que os
EUA e a China trabalhem juntos para implementar o importante consenso alcançado
durante a ligação entre os dois chefes de Estado”, afirmou, referindo-se ao
telefonema realizado no início de junho entre o presidente chinês, Xi Jinping,
e o presidente dos EUA, Donald Trump.
¨ 'Ataques dos EUA
reforçam nossas relações com BRICS', aponta Amorim
O assessor especial da Presidência
para assuntos internacionais, Celso Amorim, concedeu uma entrevista ao Financial Times neste domingo
(27/07), sobre os ataques do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e as
saídas encontradas pelo Brasil. “Esses ataques estão reforçando nossas relações com os
BRICS, porque
queremos ter relações diversificadas e não depender de nenhum país”, afirmou.
Além do bloco, Amorim destacou que o governo brasileiro pretende aprofundar sua
parceria com os países da Europa, América do Sul e Ásia. Ele também defendeu o
tratado comercial entre a União Europeia (UE) e o Mercosul. “Se a União
Europeia fosse inteligente, ela a ratificaria não apenas pelo ganho econômico
imediato, mas também por mais equilíbrio em suas relações”, disse ao FT.
O diplomata também mencionou o interesse canadense de negociar um acordo de
livre comércio com o Brasil e contou que, em seu último ano, o governo Lula irá
focar na integração da América do Sul.
<><>
Ataques de Trump
Amorim
também criticou o tarifaço de Donald Trump ao FT. Sobre a cobrança norte-americana de tarifas
de 50% contra os produtos brasileiros, com alegação de “caça às bruxas” contra o
ex-presidente e réu no Supremo Tributal Federal (STF), Jair Bolsonaro, o
chanceler foi enfático. Ao acusar Trump de “agir politicamente dentro [do
Brasil]”, ele afirmou nunca ter visto algo do gênero, “nem mesmo nos tempos
coloniais”. “Nem a União Soviética teria feito algo assim”, acrescentou. Em sua
avaliação, o comportamento do republicano é uma “ilustração do poder absoluto”.
E citando a máxima de que “os países não têm amigos, apenas interesses”,
avaliou que no caso de Trump “nem amigos nem interesses, apenas desejos”.
¨
‘Brasil virou pedra no sapato do trumpismo’, diz
cientista político
O
tarifaço imposto ao Brasil pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump —
que deve entrar em vigor em 1º de agosto —, abriu uma crise diplomática sem
precedentes entre os dois países. Em uma carta publicada na rede social X
(antigo Twitter), Trump condicionou o arrefecimento das tarifas de 50% às
exportações brasileiras para os EUA ao imediato encerramento do julgamento do
ex-presidente Jair Bolsonaro e também ao fim da regulação das big techs. Para o
cientista político brasileiro Christian Lynch esse é o maior ataque à soberania
brasileira desde que submarinos alemães afundaram navios na costa do Brasil
durante a Segunda Guerra Mundial, matando centenas de brasileiros. “A última
vez em que o Brasil foi agredido de tal magnitude por uma potência estrangeira
foi quando Hitler mandou afundar nossos navios mercantes no Atlântico”,
escreveu Lynch no X.
>>>>
LEIA A ENTREVISTA:
- Você disse que
considera o tarifaço de Donald Trump, com a intromissão em assuntos
internos brasileiros, como o maior ataque à soberania do Brasil desde que
a Alemanha nazista afundou navios brasileiros na Segunda Guerra Mundial.
Estamos mesmo diante de um momento histórico de tal magnitude?
Christian
Lynch: Sim.
É preciso entender o que significa “agressão” em cada contexto histórico.
Naquela época, as agressões eram militares, as ameaças se davam por meios
bélicos. Hoje, num mundo em que não se mandam mais soldados e o público não
aceita sustentar guerras convencionais, as agressões tomam formas outras — e
uma delas é o tarifaço. A ameaça tarifária funciona, no plano comercial, como o
equivalente à ameaça atômica. Guardadas as diferenças de época, é, sim, a
agressão mais grave que o Brasil sofre desde os torpedeamentos nazistas na
Segunda Guerra Mundial. Houve, claro, 1964. E o que aconteceu ali tem muito em
comum com o que já está em curso e vai continuar acontecendo: a tentativa dos
EUA de desestabilizar a democracia brasileira por meio de espionagem, atuação
da CIA, cooptação de setores civis e militares da extrema direita, apoio à
eleição de aliados e promoção de golpe de Estado. A diferença é que, naquela
época, o governo americano ainda se via como o guardião da democracia liberal,
e precisava manter as aparências. Hoje, é comandado por uma lógica autoritária,
extremista, que atua sem qualquer pudor, tanto internamente quanto no exterior.
A agressão ao Brasil é feita à luz do dia.
Essa
ameaça tarifária não será um episódio isolado. Aí está o erro de quem acha que
se trata apenas de uma questão comercial, que pode ser resolvida por uma
negociação técnica. Não é disso que se trata. O tarifaço é o começo de um
processo sistemático de agressão, que só termina quando Trump alcançar seu
objetivo: instalar no Brasil um governo que sirva aos seus interesses — seja
por meio de eleição, seja por golpe. Para isso, ele precisa ajudar a extrema
direita brasileira a desmontar nossa democracia, neutralizar o STF e remover
Lula do poder. Na lógica do trumpismo, toda a América deve girar em torno dos
interesses estratégicos dos EUA. É o que explica também seus ataques e
pretensões expansionistas sobre a Groenlândia, sobre o Canadá, o
reenquadramento do Panamá. O Brasil, com sua aspiração de autonomia, virou a
grande pedra no sapato do trumpismo na América do Sul. Para Trump, só
interessam chefes de Estado avassalados — como Milei, na Argentina.
- Na semana
passada, o presidente Lula esteve no Chile para uma reunião em prol da
democracia com os líderes de Colômbia, Uruguai, Espanha e do país
anfitrião. No dia seguinte, o colunista Edward Luce, do jornal britânico
Financial Times, disse que o farol liberal-democrático do nosso hemisfério
vem do Brasil e do Canadá. Você acha que o tarifaço de Trump acabou
projetando o Brasil para uma posição internacional mais destacada?
Sim.
Existe uma oportunidade de se realizar uma espécie de sonho geopolítico
brasileiro. Esse sonho é o Brasil se firmar como um país tão importante no
mundo quanto Índia, China, Rússia, países dessa ordem, mas sem o belicismo. O
nosso sonho é ser uma espécie de gigante cheio de bonomia, um gigante
simpático, alegre, boa-praça. A resistência racional e organizada ao
imperialismo trumpista abre para o Brasil uma oportunidade rara de avançar em
seu antigo projeto geopolítico: o de se afirmar como uma potência autônoma e
respeitada na América do Sul. E vale lembrar: esse projeto não é invenção da
esquerda. Ele remonta ao século 19, e teve como formulador o Visconde de
Uruguai, um conservador. Para ele, a influência dos EUA deveria se limitar à
América Central. Era também o sonho do Barão do Rio Branco, muitas vezes mal
interpretado. Como disse Sérgio Buarque de Holanda, o Brasil gosta de se
apresentar ao mundo como um gigante cordial. Uma potência pacífica, civilizada
e respeitada.
A
agressão de Trump ao Brasil pode significar a maior virada de chave da política
nacional desde 2013. Naquela época houve a ascensão da ultradireita, a direita
tradicional se legitimou ideologicamente e a esquerda perdeu o discurso. Agora,
estamos vendo o inverso: a esquerda reencontrando suas bandeiras históricas — a
defesa da soberania nacional contra o imperialismo, e a proteção dos
trabalhadores. São temas que haviam sido deixados de lado em nome de uma agenda
mais cosmopolita, mais identitária, muito influenciada pela globalização. O
Brasil tem uma tradição nacionalista forte, que prevaleceu ao longo de quase
todo o século 20. Ela estava adormecida, mas não desapareceu. Também temos uma
imaginação imperial herdada do tempo de colônia, que ainda mobiliza setores
importantes do país — inclusive parte dos militares, que andavam flertando com
agendas entreguistas. A história não se repete, mas costuma rimar. E a rima,
agora, é muito clara. Mas convém sempre não associar a defesa da democracia à
defesa da esquerda exclusivamente. É preciso continuar a atrair o centro e a
direita moderada. Do contrário, se entregará numa bandeja a Trump a narrativa
mentirosa de que democracia liberal é sinônimo de comunismo.
- O economista
americano Paul Krugman, vencedor do Prêmio Nobel em 2008, elogiou o Pix
dizendo que o Brasil pode ter inventado o futuro do dinheiro. Você já
comentou que o movimento Make America Great Again (MAGA) se baseia na
ideia de que os EUA estão em decadência, mas na verdade foram os demais
países que avançaram. Os trumpistas têm capacidade real de fazer esses
países recuarem?
Uma
coisa é o que eles querem, outra coisa é o que eles conseguem fazer. O
diagnóstico do MAGA é que os EUA estão em declínio, e que por isso precisam de
um governo de exceção, autoritário, que restaure sua grandeza por meio da
força. Só que, objetivamente, os EUA não estão em decadência. O que existe é um
mal-estar social profundo com a transição de uma sociedade industrial e
analógica para uma realidade pós-industrial, digital. Esse desconforto é global
— não é só deles.
O que o
eleitorado trumpista percebe como decadência é, na verdade, a sua própria perda
de posição relativa. Dentro dos EUA, pela ascensão dos hispânicos, das minorias
raciais, de pessoas com outras orientações sexuais. Fora dos EUA, pela ascensão
de potências que, há poucas décadas, mal eram levadas em conta — como a China,
a Índia e o próprio Brasil.
No
Brasil também vimos algo assim. Parte da classe média antipetista achou que
estava ficando mais pobre porque os pobres estavam se aproximando dela. Não era
decadência, era diminuição da desigualdade. Nos EUA, o fenômeno é mais
complexo, mas a lógica psicológica é semelhante. De todo modo, os EUA não
perderam poder, o que aconteceu foi que o mundo avançou. Houve uma
desconcentração do poder global, antes centrado no Atlântico Norte, causada
pela própria globalização financeira. E os radicais de direita americanos não
conseguem lidar com isso.
Quanto
ao Brasil, não somos mais o país periférico de 1942, nem o de 1964, tampouco o
de 1990. A despeito do nosso vício de autodepreciação, o chamado “complexo de
vira-lata”, o Brasil deixou de ser periférico. Continuamos desiguais, sim, e
não temos bomba atômica, mas temos peso: população, economia, presença
regional. E nossa dependência direta dos EUA é pequena. Só 2% do nosso PIB
depende deles. O tarifaço incomoda, mas está longe de ser um golpe fatal. É um
arranhão, não um soco no queixo.
- Mas que
racionalidade existe nas ações de Trump contra o Brasil? Ele costuma
recuar de tarifas, embora não saibamos se será o caso dessa vez. Já há
efeitos adversos nos EUA, com pessoas estocando mantimentos e alta de
preços. Há lógica no que ele fez ou é mera impulsividade?
Há uma
lógica, sim. Mas é a lógica própria de um projeto político reacionário. Para o
trumpismo, a democracia liberal é uma forma disfarçada de comunismo. O inimigo
precisa ser eliminado, dentro ou fora do país. O método é sempre o mesmo:
intimidação, mentira e suborno. Qualquer país que não se submeta
automaticamente a essa lógica é visto como inimigo. Trump age como um imperador
do Baixo Império Romano. Se apresenta como papa, como rei, diz que precisa
governar acima da lei para salvar os EUA — e também o mundo. E isso não é
teatro, é real. É com base nessa postura tirânica que ele toma decisões. Tudo é
na base da lacração, da bravata, da porrada. Quem não concorda vira inimigo
mortal, até um bilionário como Elon Musk, que há pouco era tratado como melhor
amigo. Mas essa lógica também é atravessada por impulsos caóticos. A
racionalidade deles não é econômica nem estratégica, é emocional, messiânica,
autoritária. Eles acham que podem fazer o relógio andar para trás. A
agressividade do trumpismo nasce de uma ideologização extremada da política,
girando em torno do personalismo radical de Trump. E isso gera decisões
erráticas, desconectadas de avaliações objetivas do equilíbrio de forças.
Resultado:
temos uma agressão que é intensa, mas também caótica. Não adianta achar que
isso se resolve com concessões comerciais. Não se trata de comércio, e sim de
geopolítica. Trump não quer acordo, quer submissão. O Brasil, para ele, deveria
renunciar à própria autonomia. E há ainda um componente de subestimação. Eles
não acreditam na resistência dos outros. E por isso, com frequência, acabam
reforçando os que tentam derrotar. É o que estamos vendo agora: Trump está se
tornando, no mundo inteiro, um grande cabo eleitoral involuntário dos que ele
chama de inimigos. Foi assim no México, na Colômbia, no Canadá, na Alemanha, na
Dinamarca e na Austrália.
- Considerando o
temperamento de Trump, caso lhe seja conveniente, ele pode descartar
Bolsonaro?
Não é
muito fácil, porque Bolsonaro é o espelho dele no Brasil. A cartilha primária
do bolsonarismo sempre foi o trumpismo. Bolsonaro e sua família sempre lhe
cobriram das reverências as mais rastejantes, como dizer, literalmente, que são
apaixonados por ele, que ele é o maior líder de todos os tempos. Também buscam
copiá-lo na forma de governar, e inclusive na tentativa de golpe de Estado
depois da derrota eleitoral. A inelegibilidade e a possível condenação de
Bolsonaro à prisão por tentativa de golpe de Estado são uma lembrança
permanente e pessoal a Trump do que poderia e deveria ter acontecido com ele em
um sistema político menos disfuncional que o norte-americano. Mas é claro que,
mudando as circunstâncias, ele pode apoiar um candidato de extrema direita
apoiado pelo próprio Bolsonaro, seja um de seus filhos ou não. E, infelizmente,
nesse último caso, não falta gente disposta a se oferecer: candidatos a
deputado, senador, governador, procurador-geral da República. Gente desfrutável
e oportunista, descobrimos no último governo Bolsonaro, que é o que não falta.
Mas agora ficou mais difícil, porque a interferência externa está mais
escancarada e bem mais impopular. Tarcísio de Freitas que o diga.
Fonte:
Opera Mundi/Brasil 247/IstoÉ

Nenhum comentário:
Postar um comentário