quarta-feira, 30 de julho de 2025

O PIX, a China e os direitos humanos

Um grupo de intelectuais da China e da América Latina reuniu-se num encontro para debater direitos humanos numa perspectiva do Sul Global. A Segunda Mesa Redonda China-América Latina e Caribe sobre Direitos Humanos – a primeira aconteceu no ano passado, no Rio de Janeiro –, com a presença de pesquisadores de 20 diferentes países, da Argentina ao México, ocorreu em São Paulo, na sexta-feira (25).  O assunto é urgente, tanto na China, que ganhou destaque na área ao tornar públicos vários projetos de IA generativa recentemente, quanto na América Latina, cuja produção de dados está sob vigilância incontrolável de governos e grandes players tecnológicos, sobretudo ocidentais, numa espécie de colonialismo digital. Vários dos acadêmicos presentes discutiram questões legais, entre outras razões porque o governo chinês tem tratado como uma de suas metas o fortalecimento do Estado de Direito e a defesa de questões como o direito à privacidade e os direitos autorais. Mas, entre pesquisas e preocupações de longo prazo, um tema urgente apareceu na discussão: o ataque dos Estados Unidos ao PIX brasileiro.

O economista Andres David Arauz Galarza, ex-candidato à Presidência do Equador e pesquisador da Clacso (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais), discutiu justamente o direito à privacidade diante da vigilância financeira hegemônica – e como dados de pessoas físicas podem ser usados, sobretudo pelos Estados Unidos, para definir políticas globais e também específicas. E aí entra uma das explicações para o ataque de Donald Trump ao PIX brasileiro. Desde o Ato Patriótico, instituído após os ataques contra as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos têm acesso a informações sobre todas as transações financeiras feitas através de bandeiras como Visa e MasterCard – ou seja, há mais de duas décadas, a cada compra que fazemos na farmácia da esquina ou num site australiano, informamos também o Estado norte-americano sobre o que fazemos e pensamos.

Por qualquer entrada, seja um número de identificação de um documento, como passaporte, RG, CPF, ou o próprio número do cartão de crédito, é possível levantar não só a movimentação financeira, como também rastrear trajetos físicos de quem usa essas bandeiras para além dos próprios gastos.

Porém, mais do que isso, num mundo em que a capacidade de análise de dados se torna gigantesca, por conta dos mecanismos de processamento e inteligência artificial, as possibilidades de planejamento para as guerras comerciais se multiplicam, com a utilização de dados em massa. É aí que entra o PIX. Por usar uma tecnologia própria, o PIX brasileiro deixou de fornecer, pelo menos tão facilmente, dados estratégicos para os Estados Unidos. Além disso, mostrou a possibilidade de que outros países do mundo possam fazer o mesmo. O PIX ameaça os Estados Unidos justamente porque fere de morte a ideia de que o Sul Global não é capaz de desenvolver tecnologias de ponta, universais e gratuitas, mas também porque tira efetivamente do controle da nação hegemônica essas informações. Num mundo em que a invasão da privacidade individual em massa se combina com todas as outras lógicas de dominação, temos um buraco no casco do Titanic que pretende governar o mundo.

<><> Consenso de São Paulo

Ao final do encontro, os representantes dos 20 países divulgaram uma carta intitulada “Consenso de São Paulo”. A carta reafirmou o interesse em ampliar a cooperação multilateral em direitos humanos e declarou que, diante de um cenário mundial instável, é preciso adotar uma abordagem compartilhada e respeitosa da diversidade cultural e histórica das nações envolvidas. O documento defende que a proteção dos direitos humanos deve respeitar as realidades nacionais, promovendo conjuntamente direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Destacou-se ainda a importância da manutenção da paz, da estabilidade e do desenvolvimento para que se possa garantir esses direitos. Os participantes enfatizaram que não há um único modelo válido universalmente na questão, e que a diversidade deve ser valorizada na busca por justiça social.

O texto do grupo alerta para a necessidade de garantir acesso equitativo aos avanços tecnológicos e de criar normas éticas para seu uso. A capacitação digital ampla e a prevenção de desigualdades tecnológicas foram apontadas como medidas urgentes para proteger os direitos fundamentais em tempos de inovação acelerada. Outro ponto reforçado foi a importância do multilateralismo e da solidariedade Sul-Sul no enfrentamento dos desafios ambientais e sociais. Também a proteção ambiental foi destacada como direito humano essencial, exigindo desenvolvimento sustentável e governança ecológica. Por fim, o Consenso de São Paulo propôs o fortalecimento de redes acadêmicas e de mecanismos permanentes de cooperação, bem como o reforço das Organizações das Nações Unidas como eixo da governança global dos direitos humanos.

<><> Leia abaixo a íntegra do Consenso de São Paulo

Nós, representantes da China e dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, reunimo-nos em 25 de julho de 2025 em São Paulo, Brasil, por ocasião da Segunda Mesa Redonda China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos sobre Direitos Humanos, e comunicamos profundamente sobre o tema “Comunidade com Futuro Compartilhado entre a China e a América Latina e o Desenvolvimento dos Direitos Humanos”, alcançando amplo consenso. Aqui, propomos o lançamento da “Rede de Cooperação e Pesquisa sobre Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos”, utilizando o intercâmbio acadêmico como elo para estabelecer uma plataforma de cooperação regular no campo da pesquisa em direitos humanos. Por meio do compartilhamento de informações, pesquisas conjuntas, capacitação de talentos e intercâmbio de experiências, promoveremos o desenvolvimento conjunto dos Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos, e ofereceremos novas contribuições e caminhos para o aprimoramento da governança global dos direitos humanos.

As medidas específicas incluem:

  1. Estabelecer um mecanismo de compartilhamento de informações. Realizar comunicações regulares sobre políticas, resultados acadêmicos e dados de pesquisa dos direitos humanos China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos, comunicando-se por e-mail e plataformas de mídia social.
  2. Inovar e impulsionar pesquisas conjuntas. Incentivar intercâmbios acadêmicos diversificados e seminários sobre políticas em torno de áreas-chave e temas prioritários dos Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos, divulgando relatórios de pesquisa conjunta e publicações.
  3. Fortalecer a capacitação em políticas dos direitos humanos Promover educação e treinamento em direitos humanos, reforçar a construção de disciplinas e a formação de talentos, e convidar especialistas latino-americanos e caribenhos para participarem nos projetos de pesquisa de curto prazo e programas de treinamento na China, fomentando o intercâmbio bilateral.
  4. Criar um banco de dados de casos Compilar resultados de pesquisa e casos práticos dos Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos, promovendo seu compartilhamento, aplicação e transformação em escala global, fornecendo referências para a governança internacional dos direitos humanos.

Convidamos instituições e representantes de mais países e regiões a se juntarem à “Rede de Cooperação e Pesquisa sobre Direitos Humanos China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos”, para juntos escrevermos um novo e grandioso capítulo na construção da Comunidade de Futuro Compartilhado China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos e o Desenvolvimento da Causa dos Direitos Humanos!

¨      China fala em "promover" comércio com o Brasil diante de tarifaço dos EUA

Diante da possibilidade de os Estados Unidos imporem uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros já nesta sexta-feira (1º), a China sinalizou interesse em reforçar laços comerciais com o Brasil e outros países do Brics. A posição foi expressa nesta segunda-feira (28) pelo porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Guo Jiakun, durante entrevista coletiva em Pequim.  Em resposta direta à ameaça tarifária, Guo afirmou que “a China está disposta a trabalhar junto com os países da América Latina e do Brics, incluindo o Brasil, para defender conjuntamente o sistema multilateral de comércio, centrado na OMC (Organização Mundial de Comércio) e proteger a justiça e a equidade internacional”. Questionado sobre a possibilidade de a China abrir mais seu mercado a produtos brasileiros que hoje são vendidos aos EUA — como os aviões da Embraer —, o porta-voz destacou que Pequim pretende ampliar a cooperação com o Brasil no setor. “A China valoriza a cooperação pragmática com o Brasil na área de aviação e outros campos e está disposta a promovê-la com base em princípios de mercado”, afirmou.

O posicionamento do governo chinês também reflete as negociações comerciais que ocorrem até esta terça-feira (29) com os Estados Unidos, em Estocolmo. O tom adotado por Guo foi semelhante ao usado ao tratar do Brasil. “Com base na igualdade, respeito e reciprocidade, por meio do diálogo, aprimoraremos o consenso e reduziremos mal-entendidos”, declarou. Ao ser questionado se a China aceitaria um acordo semelhante ao firmado entre os EUA e a União Europeia — que estabeleceu uma tarifa de 15% e desagradou líderes europeus —, Guo reiterou a defesa da solução pacífica para disputas comerciais. “A China sempre defendeu que todas as partes resolvam as diferenças econômicas e comerciais por meio do diálogo e da consulta em igualdade de condições”, disse. Grande parte da coletiva desta segunda-feira foi dedicada a temas econômicos. Guo foi questionado ainda sobre uma possível suspensão, por parte da China, de medidas de controle de exportação para facilitar um eventual acordo com os EUA — como antecipado pelo Financial Times em Washington. O porta-voz não confirmou se Pequim adotou a mesma postura de Washington, que teria interrompido a adoção de novas restrições. “Sempre tivemos esperança de que os EUA e a China trabalhem juntos para implementar o importante consenso alcançado durante a ligação entre os dois chefes de Estado”, afirmou, referindo-se ao telefonema realizado no início de junho entre o presidente chinês, Xi Jinping, e o presidente dos EUA, Donald Trump.

¨      'Ataques dos EUA reforçam nossas relações com BRICS', aponta Amorim

O assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, Celso Amorim, concedeu uma entrevista ao Financial Times neste domingo (27/07), sobre os ataques do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e as saídas encontradas pelo Brasil. “Esses ataques estão reforçando nossas relações com os BRICS, porque queremos ter relações diversificadas e não depender de nenhum país”, afirmou. Além do bloco, Amorim destacou que o governo brasileiro pretende aprofundar sua parceria com os países da Europa, América do Sul e Ásia. Ele também defendeu o tratado comercial entre a União Europeia (UE) e o Mercosul. “Se a União Europeia fosse inteligente, ela a ratificaria não apenas pelo ganho econômico imediato, mas também por mais equilíbrio em suas relações”, disse ao FT. O diplomata também mencionou o interesse canadense de negociar um acordo de livre comércio com o Brasil e contou que, em seu último ano, o governo Lula irá focar na integração da América do Sul.

<><> Ataques de Trump

Amorim também criticou o tarifaço de Donald Trump ao FT. Sobre a cobrança norte-americana de tarifas de 50% contra os produtos brasileiros, com alegação de “caça às bruxas” contra o ex-presidente e réu no Supremo Tributal Federal (STF), Jair Bolsonaro, o chanceler foi enfático. Ao acusar Trump de “agir politicamente dentro [do Brasil]”, ele afirmou nunca ter visto algo do gênero, “nem mesmo nos tempos coloniais”. “Nem a União Soviética teria feito algo assim”, acrescentou. Em sua avaliação, o comportamento do republicano é uma “ilustração do poder absoluto”. E citando a máxima de que “os países não têm amigos, apenas interesses”, avaliou que no caso de Trump “nem amigos nem interesses, apenas desejos”.

¨      ‘Brasil virou pedra no sapato do trumpismo’, diz cientista político

O tarifaço imposto ao Brasil pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — que deve entrar em vigor em 1º de agosto —, abriu uma crise diplomática sem precedentes entre os dois países. Em uma carta publicada na rede social X (antigo Twitter), Trump condicionou o arrefecimento das tarifas de 50% às exportações brasileiras para os EUA ao imediato encerramento do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e também ao fim da regulação das big techs. Para o cientista político brasileiro Christian Lynch esse é o maior ataque à soberania brasileira desde que submarinos alemães afundaram navios na costa do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, matando centenas de brasileiros. “A última vez em que o Brasil foi agredido de tal magnitude por uma potência estrangeira foi quando Hitler mandou afundar nossos navios mercantes no Atlântico”, escreveu Lynch no X.

>>>> LEIA A ENTREVISTA:

  • Você disse que considera o tarifaço de Donald Trump, com a intromissão em assuntos internos brasileiros, como o maior ataque à soberania do Brasil desde que a Alemanha nazista afundou navios brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Estamos mesmo diante de um momento histórico de tal magnitude?

Christian Lynch: Sim. É preciso entender o que significa “agressão” em cada contexto histórico. Naquela época, as agressões eram militares, as ameaças se davam por meios bélicos. Hoje, num mundo em que não se mandam mais soldados e o público não aceita sustentar guerras convencionais, as agressões tomam formas outras — e uma delas é o tarifaço. A ameaça tarifária funciona, no plano comercial, como o equivalente à ameaça atômica. Guardadas as diferenças de época, é, sim, a agressão mais grave que o Brasil sofre desde os torpedeamentos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Houve, claro, 1964. E o que aconteceu ali tem muito em comum com o que já está em curso e vai continuar acontecendo: a tentativa dos EUA de desestabilizar a democracia brasileira por meio de espionagem, atuação da CIA, cooptação de setores civis e militares da extrema direita, apoio à eleição de aliados e promoção de golpe de Estado. A diferença é que, naquela época, o governo americano ainda se via como o guardião da democracia liberal, e precisava manter as aparências. Hoje, é comandado por uma lógica autoritária, extremista, que atua sem qualquer pudor, tanto internamente quanto no exterior. A agressão ao Brasil é feita à luz do dia.

Essa ameaça tarifária não será um episódio isolado. Aí está o erro de quem acha que se trata apenas de uma questão comercial, que pode ser resolvida por uma negociação técnica. Não é disso que se trata. O tarifaço é o começo de um processo sistemático de agressão, que só termina quando Trump alcançar seu objetivo: instalar no Brasil um governo que sirva aos seus interesses — seja por meio de eleição, seja por golpe. Para isso, ele precisa ajudar a extrema direita brasileira a desmontar nossa democracia, neutralizar o STF e remover Lula do poder. Na lógica do trumpismo, toda a América deve girar em torno dos interesses estratégicos dos EUA. É o que explica também seus ataques e pretensões expansionistas sobre a Groenlândia, sobre o Canadá, o reenquadramento do Panamá. O Brasil, com sua aspiração de autonomia, virou a grande pedra no sapato do trumpismo na América do Sul. Para Trump, só interessam chefes de Estado avassalados — como Milei, na Argentina.

  • Na semana passada, o presidente Lula esteve no Chile para uma reunião em prol da democracia com os líderes de Colômbia, Uruguai, Espanha e do país anfitrião. No dia seguinte, o colunista Edward Luce, do jornal britânico Financial Times, disse que o farol liberal-democrático do nosso hemisfério vem do Brasil e do Canadá. Você acha que o tarifaço de Trump acabou projetando o Brasil para uma posição internacional mais destacada?

Sim. Existe uma oportunidade de se realizar uma espécie de sonho geopolítico brasileiro. Esse sonho é o Brasil se firmar como um país tão importante no mundo quanto Índia, China, Rússia, países dessa ordem, mas sem o belicismo. O nosso sonho é ser uma espécie de gigante cheio de bonomia, um gigante simpático, alegre, boa-praça. A resistência racional e organizada ao imperialismo trumpista abre para o Brasil uma oportunidade rara de avançar em seu antigo projeto geopolítico: o de se afirmar como uma potência autônoma e respeitada na América do Sul. E vale lembrar: esse projeto não é invenção da esquerda. Ele remonta ao século 19, e teve como formulador o Visconde de Uruguai, um conservador. Para ele, a influência dos EUA deveria se limitar à América Central. Era também o sonho do Barão do Rio Branco, muitas vezes mal interpretado. Como disse Sérgio Buarque de Holanda, o Brasil gosta de se apresentar ao mundo como um gigante cordial. Uma potência pacífica, civilizada e respeitada.

A agressão de Trump ao Brasil pode significar a maior virada de chave da política nacional desde 2013. Naquela época houve a ascensão da ultradireita, a direita tradicional se legitimou ideologicamente e a esquerda perdeu o discurso. Agora, estamos vendo o inverso: a esquerda reencontrando suas bandeiras históricas — a defesa da soberania nacional contra o imperialismo, e a proteção dos trabalhadores. São temas que haviam sido deixados de lado em nome de uma agenda mais cosmopolita, mais identitária, muito influenciada pela globalização. O Brasil tem uma tradição nacionalista forte, que prevaleceu ao longo de quase todo o século 20. Ela estava adormecida, mas não desapareceu. Também temos uma imaginação imperial herdada do tempo de colônia, que ainda mobiliza setores importantes do país — inclusive parte dos militares, que andavam flertando com agendas entreguistas. A história não se repete, mas costuma rimar. E a rima, agora, é muito clara. Mas convém sempre não associar a defesa da democracia à defesa da esquerda exclusivamente. É preciso continuar a atrair o centro e a direita moderada. Do contrário, se entregará numa bandeja a Trump a narrativa mentirosa de que democracia liberal é sinônimo de comunismo.

  • O economista americano Paul Krugman, vencedor do Prêmio Nobel em 2008, elogiou o Pix dizendo que o Brasil pode ter inventado o futuro do dinheiro. Você já comentou que o movimento Make America Great Again (MAGA) se baseia na ideia de que os EUA estão em decadência, mas na verdade foram os demais países que avançaram. Os trumpistas têm capacidade real de fazer esses países recuarem?

Uma coisa é o que eles querem, outra coisa é o que eles conseguem fazer. O diagnóstico do MAGA é que os EUA estão em declínio, e que por isso precisam de um governo de exceção, autoritário, que restaure sua grandeza por meio da força. Só que, objetivamente, os EUA não estão em decadência. O que existe é um mal-estar social profundo com a transição de uma sociedade industrial e analógica para uma realidade pós-industrial, digital. Esse desconforto é global — não é só deles.

O que o eleitorado trumpista percebe como decadência é, na verdade, a sua própria perda de posição relativa. Dentro dos EUA, pela ascensão dos hispânicos, das minorias raciais, de pessoas com outras orientações sexuais. Fora dos EUA, pela ascensão de potências que, há poucas décadas, mal eram levadas em conta — como a China, a Índia e o próprio Brasil.

No Brasil também vimos algo assim. Parte da classe média antipetista achou que estava ficando mais pobre porque os pobres estavam se aproximando dela. Não era decadência, era diminuição da desigualdade. Nos EUA, o fenômeno é mais complexo, mas a lógica psicológica é semelhante. De todo modo, os EUA não perderam poder, o que aconteceu foi que o mundo avançou. Houve uma desconcentração do poder global, antes centrado no Atlântico Norte, causada pela própria globalização financeira. E os radicais de direita americanos não conseguem lidar com isso.

Quanto ao Brasil, não somos mais o país periférico de 1942, nem o de 1964, tampouco o de 1990. A despeito do nosso vício de autodepreciação, o chamado “complexo de vira-lata”, o Brasil deixou de ser periférico. Continuamos desiguais, sim, e não temos bomba atômica, mas temos peso: população, economia, presença regional. E nossa dependência direta dos EUA é pequena. Só 2% do nosso PIB depende deles. O tarifaço incomoda, mas está longe de ser um golpe fatal. É um arranhão, não um soco no queixo.

  • Mas que racionalidade existe nas ações de Trump contra o Brasil? Ele costuma recuar de tarifas, embora não saibamos se será o caso dessa vez. Já há efeitos adversos nos EUA, com pessoas estocando mantimentos e alta de preços. Há lógica no que ele fez ou é mera impulsividade?

Há uma lógica, sim. Mas é a lógica própria de um projeto político reacionário. Para o trumpismo, a democracia liberal é uma forma disfarçada de comunismo. O inimigo precisa ser eliminado, dentro ou fora do país. O método é sempre o mesmo: intimidação, mentira e suborno. Qualquer país que não se submeta automaticamente a essa lógica é visto como inimigo. Trump age como um imperador do Baixo Império Romano. Se apresenta como papa, como rei, diz que precisa governar acima da lei para salvar os EUA — e também o mundo. E isso não é teatro, é real. É com base nessa postura tirânica que ele toma decisões. Tudo é na base da lacração, da bravata, da porrada. Quem não concorda vira inimigo mortal, até um bilionário como Elon Musk, que há pouco era tratado como melhor amigo. Mas essa lógica também é atravessada por impulsos caóticos. A racionalidade deles não é econômica nem estratégica, é emocional, messiânica, autoritária. Eles acham que podem fazer o relógio andar para trás. A agressividade do trumpismo nasce de uma ideologização extremada da política, girando em torno do personalismo radical de Trump. E isso gera decisões erráticas, desconectadas de avaliações objetivas do equilíbrio de forças.

Resultado: temos uma agressão que é intensa, mas também caótica. Não adianta achar que isso se resolve com concessões comerciais. Não se trata de comércio, e sim de geopolítica. Trump não quer acordo, quer submissão. O Brasil, para ele, deveria renunciar à própria autonomia. E há ainda um componente de subestimação. Eles não acreditam na resistência dos outros. E por isso, com frequência, acabam reforçando os que tentam derrotar. É o que estamos vendo agora: Trump está se tornando, no mundo inteiro, um grande cabo eleitoral involuntário dos que ele chama de inimigos. Foi assim no México, na Colômbia, no Canadá, na Alemanha, na Dinamarca e na Austrália.

  • Considerando o temperamento de Trump, caso lhe seja conveniente, ele pode descartar Bolsonaro?

Não é muito fácil, porque Bolsonaro é o espelho dele no Brasil. A cartilha primária do bolsonarismo sempre foi o trumpismo. Bolsonaro e sua família sempre lhe cobriram das reverências as mais rastejantes, como dizer, literalmente, que são apaixonados por ele, que ele é o maior líder de todos os tempos. Também buscam copiá-lo na forma de governar, e inclusive na tentativa de golpe de Estado depois da derrota eleitoral. A inelegibilidade e a possível condenação de Bolsonaro à prisão por tentativa de golpe de Estado são uma lembrança permanente e pessoal a Trump do que poderia e deveria ter acontecido com ele em um sistema político menos disfuncional que o norte-americano. Mas é claro que, mudando as circunstâncias, ele pode apoiar um candidato de extrema direita apoiado pelo próprio Bolsonaro, seja um de seus filhos ou não. E, infelizmente, nesse último caso, não falta gente disposta a se oferecer: candidatos a deputado, senador, governador, procurador-geral da República. Gente desfrutável e oportunista, descobrimos no último governo Bolsonaro, que é o que não falta. Mas agora ficou mais difícil, porque a interferência externa está mais escancarada e bem mais impopular. Tarcísio de Freitas que o diga.

 

Fonte: Opera Mundi/Brasil 247/IstoÉ

 

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