Ricardo
Queiroz Pinheiro: Em quê o ataque de Trump nos provoca a pensar
Há
males que acabam servindo de alerta. A reação do mercado à manutenção da
cobrança do IOF deixou à mostra algo que o economês costuma encobrir: o
privilégio blindado dos ganhos financeiros e a resistência feroz a qualquer
tentativa de tributar riqueza de forma justa. Tributar salários é rotina.
Tributar patrimônio é tratado como ameaça.
Essa
disputa vai além do IOF. Expõe como o Estado brasileiro foi moldado para
proteger o capital financeiro e restringir qualquer política de transformação
social. A carga tributária pesa nos pobres, enquanto os mais ricos acumulam
isenções. O orçamento é travado por regras que engessam investimentos sociais.
O Banco Central atua não para induzir crescimento, mas para garantir o conforto
do rentismo e a acumulação para poucos.
No
centro desse arranjo está o tripé macroeconômico: meta de inflação, superávit
primário e câmbio flutuante. Institucionalizado em 1999, sob as exigências do
FMI, ele carrega uma lógica mais antiga, surgida nos anos 1970, quando o
capital financeiro passou a impor, sobretudo aos países periféricos, um padrão
de política: controle monetário, abertura comercial, ajuste fiscal e
passividade do Estado. O neoliberalismo consolidado em engrenagem.
Com o
avanço da financeirização e dos fluxos globais de capitais, os Estados perderam
parte da capacidade de planejar suas economias. O Brasil, como tantos outros,
substituiu políticas desenvolvimentistas por um sistema fiscal voltado quase
exclusivamente ao pagamento da dívida e à valorização de ativos. Exporta
primários, importa tecnologia e crédito caro, vive endividado e dependente. A
austeridade virou um dispositivo permanente de controle externo.
O tripé
sustenta essa arquitetura. A meta de inflação mantém juros altos para frear
consumo e desestimular investimentos. O superávit primário comprime gastos
sociais para assegurar o pagamento aos credores. O câmbio flutuante, combinado
a juros elevados, atrai capital especulativo, valoriza a moeda e aprofunda a
desindustrialização. O orçamento deixa de ser instrumento de desenvolvimento e
se torna mecanismo de defesa dos interesses financeiros.
A força
desse modelo não está apenas nas regras, mas no discurso. Ele é vendido como
técnica, não como política. Como se decisões sobre juros e cortes fossem
naturais e inevitáveis, apartadas do conflito social. Essa neutralidade
aparente funciona como escudo ideológico. A política monetária é tratada como
assunto técnico, mas cada ponto na Selic define quanto vai para os rentistas e
quanto falta em saúde, educação e transporte.
No
fundo, o modelo controla também o preço da força de trabalho. O capital
financeiro não teme apenas programas sociais por seu custo fiscal. Teme,
sobretudo, que reduzam a dependência do trabalhador em relação ao mercado
privado. Quando há saúde pública, previdência, moradia e renda mínima, o custo
de reprodução da força de trabalho cai, e a chantagem da necessidade imediata
perde força. Direitos sociais aumentam a autonomia e fortalecem a capacidade de
barganha.
Daí a
hostilidade estrutural do capital financeiro ao Estado de bem-estar. Ao aliviar
a pressão sobre o trabalhador, esses direitos comprimem lucros e encorajam
reivindicações salariais. A engrenagem do tripé existe, também, para impedir
que o orçamento seja usado como instrumento de redistribuição e para manter o
trabalho submetido à lógica da escassez.
Por
isso a austeridade caminha junto com “reformas” como a trabalhista, a
previdenciária e o teto de gastos. Todas seguem o mesmo roteiro: desonerar o
capital, reduzir direitos, enfraquecer sindicatos e transformar o trabalho em
algo barato e maleável. A precariedade se torna método de controle. A
desmobilização dos trabalhadores, condição para a estabilidade do modelo.
Enquanto
isso, os pagamentos de juros e amortizações continuam crescendo, sem teto, sem
contingenciamento. A maior parte do imposto que você paga vai antes para
remunerar rentistas do que para financiar serviços públicos. Saúde, educação e
transporte recebem o que sobra. O orçamento tem dono, e não é quem mais precisa
dele.
A
população, por sua vez, carrega a carga dos tributos indiretos, lida com
serviços públicos sucateados e salários achatados, e paga caro por serviços
privatizados. O tripé macroeconômico não apenas concentra renda no topo, mas
bloqueia a possibilidade de o Estado se tornar força redistributiva. Contém as
maiorias para garantir a renda de poucos.
O
desafio não é “melhorar a gestão”. É enfrentar um modelo que transformou o
Estado num aparato técnico de contenção social. Um Estado que não planeja, não
protege e não transforma — apenas paga. Paga pontualmente aos credores,
enquanto adia indefinidamente as urgências da maioria.
O
debate sobre IOF, juros e dívida não é técnico, é político. Está em jogo quem
comanda o orçamento e para quê. Ou o Brasil segue operando como usina de renda
para o capital financeiro, ou rompe essa engrenagem para reconstruir sua
soberania com base no trabalho, na justiça fiscal e nos direitos sociais. Não
se trata de acertar contas, mas de inverter prioridades, redistribuir riqueza e
devolver o orçamento a quem o financia.
Esse
debate precisa circular fora dos gabinetes e colunas de jornal. Tem que estar
na porta das igrejas, nos campos de várzea, nos botecos, nos bailes, nos
coletivos culturais e nas bibliotecas públicas. É lá que a economia vira vida
concreta e ganha força para mudar.
• Por dentro de um experimento no WhatsApp
com bolsonaristas, lulistas e 'flutuantes': o que pensam sobre o tarifaço e
Moraes?
Quando
soube da imposição de uma tornozeleira a Jair Bolsonaro na sexta-feira (18/7),
um gerente de vendas de 55 anos, do Rio, disse ser uma "grande
injustiça" contra seu "presidente de fato".
Em
contraste, um tradutor de 33 anos, de São Paulo, celebrou a ação determinada
pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, que, na
avaliação dele, até demorara a vir.
Já um
servidor público do Paraná considerou a medida contra Bolsonaro exagerada, mas
elogiou outras restrições contra o ex-presidente.
Os três
homens têm ao menos uma coisa em comum: fazem parte de um mesmo experimento no
WhatsApp criado por pesquisadores do Instituto de Estudos Políticos e Sociais
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) para acompanhar as
ondulações da opinião pública.
Batizado
de Monitor do Debate Público (MDP), a pesquisa acompanha a conversa online de
50 eleitores, dividido cinco grupos criados a partir de suas posições nas
eleições de 2022 e outros critérios: bolsonaristas convictos, bolsonaristas
moderados, de preferências políticas flutuantes, lulistas descontentes e
lulistas.
As
opiniões dos dois grupos bolsonaristas se alinham; em oposição, ficam os
lulistas satisfeitos com o governo.
Os
conjuntos restantes do "centro" (governistas descontentes e de
opinião flutuante), em geral, se dividem.
Quando
o assunto foi as medidas do STF contra Bolsonaro, por exemplo, a avaliação
nesses grupos oscilou entre elogios e críticas a Alexandre de Moraes.
Mas uma
semana antes da tornozeleira, veio a novidade, com a ameaça do presidente
Donald Trump de impor tarifa de 50% às exportações brasileiras aos EUA a partir
de sexta-feira (1/8).
Trump
citou como um motivo para a taxação o tratamento dado a Bolsonaro pela Justiça
brasileira no processo em que ele é acusado de tramar um golpe de Estado.
"Este
caso do tarifaço foi a vez que a gente sentiu que deu mais unidade", disse
à BBC News Brasil, Carolina de Paula, doutora em Ciência Política, pesquisadora
do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e uma das coordenadoras do MDP.
Segundo
a pesquisadora, os três grupos não bolsonaristas apoiaram as posições do
governo Lula de rejeição às medidas de Trump, algo inédito nas quase 100
semanas de pesquisa.
Em seu
relatório, o MDP apontou que os participantes dos grupos dos eleitores
flutuantes, descontentes com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva e lulistas
"revelaram uma avaliação majoritariamente favorável à resposta de Lula,
com destaque para a defesa da soberania nacional e da legitimidade do Brasil em
adotar medidas de reciprocidade".
"Eu
acompanhei na Globo e acho correto o que o Lula disse, as questões judiciais
brasileiras só tem a ver com o nosso país, nenhum outro tem que se
envolver!", escreveu uma veterinária do Paraná, do grupo de eleitores
flutuantes.
"Nunca
vi os EUA se posicionarem sobre algum crime que tenha ocorrido no Brasil, agora
quando tem a ver com o Bolsonaro vira o maior estardalhaço. Muito errado isso.
O Trump que se preocupe com o país dele, que já está tendo muito
problema", seguiu ela.
Também
apareceu no monitoramento a resiliência de bolsonaristas convictos e moderados,
unidos na condenação à política externa da administração petista e às
declarações do presidente contra os EUA, com diferenças de tom entre os dois
conjuntos.
No caso
dos bolsonaristas moderados, diz o relatório, o tom foi mais argumentativo,
centrado nas consequências práticas da política externa brasileira.
"As
críticas foram menos personalizadas e mais voltadas à avaliação de estratégias
diplomáticas, com maior preocupação em sugerir alternativas como o diálogo ou a
cooperação", dizem os pesquisadores no relatório.
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Como funciona a pesquisa
A
rejeição majoritária dos brasileiros ao tarifaço de Trump apareceu nas
primeiras pesquisas de opinião quantitativas feitas pelos instituros Quaest e
AtlasIntel - metodologia quando as empresas entrevistam uma amostra da
população total e calculam, a partir daí, as porcentagens de apoio.
Mas, no
caso do MDP, trata-se de um acompanhamento qualitativo, sem valor estatístico,
mas que revela não só a variação no tempo das opiniões como as dinâmicas de
informação usadas por esses grupos, dizem os pesquisadores.
Na
metodologia da pesquisa, o grupo de bolsonaristas convictos (ou grupo 1) é
formado por eleitores que votaram em Bolsonaro no segundo turno em 2022 e
aprovam os ataques aos prédios públicos em Brasília em 8 de janeiro de 2023.
Também
desaprovam o governo Lula, acham que o ex-presidente é perseguido pelas
instituições e não assistem à Rede Globo. São os bolsonaristas convictos.
Os
bolsonaristas moderados (ou grupo 2) votaram em Bolsonaro no segundo turno,
desaprovam o atual governo, mas também o 8 de janeiro. Não têm consenso sobre
se Bolsonaro é perseguido pelas instituições e não rejeitam a Rede Globo.
Há
também os eleitores com as chamadas preferências flutuantes (ou grupo 3).
Votaram nulo ou branco no segundo turno de 22 e em outros candidatos no
primeiro. Em relação aos demais critérios, suas respostas variam.
Já os
eleitores que preferiram Lula no segundo turno de 22, mas reprovam o seu
governo e respondem de diferentes maneiras aos outros critérios foram batizados
lulodescontentes pelos pesquisadores (grupo 4).
Os
lulistas estão no Grupo 5. Votaram em Lula no segundo turno e apoiam o seu
governo. Aos demais requisitos, dão diferentes respostas.
Na
dinâmica da pesquisa, a cada semana três perguntas são postadas nos grupos de
WhastApp.
Os mais
rápidos para responder, segundo a Carolina de Paula, são os bolsonaristas. Às
vezes, reproduzem discursos de líderes, com links – como um vídeo do deputado
Nikolas Ferreira (PL-MG), postado por um participante.
"A
narrativa deles [bolsonaristas] é muito parecida. Então, existe mesmo essa
organização seja via grupo do WhatsApp, seja via outros canais, redes sociais,
é sempre mais rápido do que os outros segmentos."
"Os
lulistas são mais lentos. Às vezes, só respondem no dia seguinte. Não parecem
acompanhar a política no mesmo ritmo dos bolsonaristas", completa a
pesquisadora do MDP, que também tem como coordenador o cientista político João
Feres Júnior.
Quem
participa do monitoramento, que se compromete a não revelar as identidades dos
eleitores, recebe um valor em dinheiro para seguir no debate, num esquema
parecido com os usados em pesquisas de mercado e de eleições.
Mas o
WhatsApp, defendem os acadêmicos, "permite que os participantes respondam
aos temas colocados no tempo que lhes for mais conveniente", à diferença
dos grupos focais tradicionais, com padrão de interações mais próximo da vida
cotidiana.
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Grupos no 'centro' têm críticas a Moraes
O MDP
registrou no relatório que os grupos bolsonaristas e lulistas, como esperado,
divergiram radicalmente na interpretação das ações do ministro do Supremo
Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, e do comportamento de Jair Bolsonaro no
18 de julho.
Enquanto
os bolsonaristas expressaram lealdade ao ex-presidente, os lulistas se
destacaram por defender enfaticamente a responsabilização e a legitimidade das
punições, assinalou o relatório.
Já os
grupos intermediários ou de "centro" (grupos de flutuantes e
lulodescontentes) apresentaram visões "mais mistas ou ambivalentes",
diz a pesquisa. A atuação de Moraes foi às vezes apontada como "excessiva,
personalista ou instrumentalizada", ainda que os grupos o tenham apoiado
majoritariamente.
"Para
esses participantes, as medidas judiciais não apenas extrapolaram os limites da
legalidade, mas também contribuíram para aprofundar a instabilidade
institucional, ao reforçar a ideia de que as regras do jogo político são
manipuladas conforme interesses circunstanciais", diz o texto.
Uma
trabalhadora autônoma de 36 anos, que mora em São Paulo e é uma
"flutuante", escreveu, em tom irônico, ser "meio maluco"
falar em independência do Judiciário no Brasil. Segundo ela, Alexandre de
Moraes "faz o que bem entende".
"Os
caras estão desde que o Lula assumiu a presidência só falando do tal do golpe,
que eu nem usaria essa palavra ridícula, aquilo não foi golpe, foi vandalismo
mesmo, enfim... Aí chega depois de anos luz e nesse momento que o Trump põe o
circo para pegar fogo vão lá e prendem assim da noite para o dia",
escreveu ela.
Bolsonaro,
no entanto, não foi preso, mas teve medidas restritivas impostas, como o uso da
tornozeleira eletrônica e veto a usar redes sociais.
Um
analista de sistemas de 27 anos, de São Paulo, também flutuante, afirmou que o
"Judiciário brasileiro é uma piada". "Caça às bruxas como o
Trump falou, e eu nem gosto do Trump, mas ele tem razão."
A
pesquisa detectou ainda, no grupo dos descontentes com Lula, em quem votaram no
segundo turno, "opiniões fragmentadas", com críticas a Bolsonaro e ao
Judiciário. "Parte considerou as punições justas, outra parte viu exageros
ou perda de rumo institucional", registrou o relatório. "O grupo
expressou descrença generalizada no sistema político."
O
servidor do Paraná que repudiou a imposição do uso de tornozeleira como
"exagerado" foi um desses eleitores. Ele escreveu não ver risco
"tão alto" de fuga a ponto de justificar a medida. Considerou
corretas as demais ações que o STF determinou, devido ao comportamento do
ex-presidente, a quem também criticou.
"É
claro que há também uma necessidade de se discutir uma limitação de algumas
ações do Judiciário, mas esse tipo de debate se deve viabilizar sem se misturar
bolsonarismo na questão", diz o servidor.
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'Ricos contra pobres' x desigualdade
Antes
do tarifaço, o Monitor do Debate Político seguiu a avaliação dos grupos a
respeito da campanha do governo Lula e do PT pela taxação dos super-ricos.
Em
junho, o partido de Lula lançou uma campanha pela taxação dos mais ricos,
chamada de "taxação BBB": bilionários, bancos e bets.
Já o
governo Lula tenta aprovar no Congresso a insenção de Imposto de Renda para
quem ganha até R$ 5 mil, tendo como forma de compensação aumentar o imposto
sobre os contribuintes mais ricos (renda mensal acima de R$ 50 mil).
Dos
bolsonaristas aos lulistas, todos os conjuntos de participantes reconheceram
que a desigualdade social no Brasil é real e grave. No entanto, a atribuíram a
causas diferentes e, em muitos casos, repudiaram a defesa do antagonismo entre
as classes (pobre x ricos) e acusaram o governo federal de oportunismo.
"As
falas dos participantes revelaram um diagnóstico unânime de que a divisão entre
ricos e pobres no Brasil é profunda, antiga e escancarada", apontou o MDP.
Muitos
relataram que essa divisão se manifesta não apenas nas condições materiais, mas
também nas oportunidades de vida, nos ambientes frequentados e até no modo como
as pessoas são tratadas na sociedade, relatam os pesquisadores.
Em
vários depoimentos, visão foi de que os ricos desfrutam de privilégios e
ambientes exclusivos, enquanto os mais pobres enfrentam dificuldades constantes
e barreiras estruturais que dificultam o acesso a serviços básicos e de
qualidade.
Para os
bolsonaristas convictos, porém, a injustiça social no Brasil é causada pela
"corrupção política" e pelo discurso dos governos de esquerda, que
acentuariam os conflitos na sociedade sem resolver o problema.
Bolsonaristas
moderados e lulodescontentes manifestaram desconfiança sobre o uso político do
discurso de combate à desigualdade pelo governo. Já eleitores flutuantes
reconheceram que há desigualdade no acesso a saúde, educação e oportunidades, e
os lulistas defenderam a proposta do governo de taxação dos mais ricos e em sua
maioria validaram o discurso do governo como representativo.
"Os
segmentos mais de centro e moderados estão cansados do conflito. O desafio para
a comunicação do governo é apresentar a questão do modo que fuja da luta de
classes", avalia Carolina de Paula.
"Por
isso foi tão assertiva essa campanha em que o cerne é a diferença no pagamento
nos impostos [entre os super-ricos e camadas mais pobres]. Usaram a retórica da
injustiça e não do conflito."
Fonte:
Outras Palavras/BBC News Brasil

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