quarta-feira, 30 de julho de 2025

Soumaya Ghannoushi: ‘Gaza é um espelho’

Razan Abu Zaher morreu de fome. Tinha quatro anos. Morreu no chão de um hospital em ruínas, com suas pequenas costelas subindo e descendo como asas frágeis demais para se erguer. Seu corpo não tinha gordura para queimar. Seus olhos estavam fundos. Sua voz, que antes era um sussurro de riso, há muito tempo havia desaparecido.

Não morreu rapidamente. Morreu lentamente. Morreu sob o olhar de sua mãe, que implorava para que aguentasse. Sob o olhar de um médico que já não tinha seringas, nem soro, nem palavras, e sob o olhar de um mundo que se conectou e depois virou as costas.

Sua morte não foi uma tragédia. Foi uma sentença, escrita não com precipitação, mas com política. Razan não está sozinha. É uma entre milhares.

Entre março e junho, já em pleno bloqueio total, a agência da ONU para refugiados palestinos, UNRWA, examinou mais de 74.000 crianças em Gaza. Mais de 5.500 foram diagnosticadas com desnutrição aguda grave. Mais de 800 já se encontravam em estado crítico.

Isso foi meses depois que os alimentos foram declarados uma ameaça. Depois que a farinha se tornou contrabando e o leite virou uma lembrança, agora as crianças morrem nos braços de seus pais.

As mães seguram bebês que já não choram. Os pais cavam túmulos com as próprias mãos, sussurrando canções de ninar ao pó. Gaza está sitiada pela fome, pela morte, pela traição árabe e pela perfídia internacional. Os que não morrem pelas bombas morrem de fome ou de doenças. E ao fundo: tiros. Porque nem mesmo a fome é segura em Gaza.

<><> A fome como arma

Isso não é uma fome. É a fome como arma. O estrangulamento deliberado de um povo, não com uma corda, mas com papelada. Não apenas com bombas, mas com burocracia. Israel bombardeia padariasatira contra comboios de ajuda humanitária, devasta fazendas e bloqueia envios de alimentos mediante sabotagens logísticas.

Mata Gaza de fome com a mesma precisão com que a assassina com armas. Sim, a história conheceu a fome como arma, mas o que está acontecendo em Gaza não tem precedentes.

Nunca na história recente uma população civil foi encerrada em uma faixa de terra cercada, privada de alimentos, água e combustível, enquanto é bombardeada do ar, da terra e do mar. Isso não é um cerco. É o primeiro extermínio televisionado do mundo. Um campo de concentração sob constante ataque aéreo.

Na Bósnia, a fome foi usada para quebrar a vontade. No campo de extermínio de Omarska, 700 dos 6.000 prisioneiros morreram de fome e tortura. Em Srebrenica, a comida foi deliberadamente negada. Um soldado sérvio-bósnio admitiu: “Percebemos que o que realmente deveria nos preocupar não era o contrabando de armas para Srebrenica, mas a comida”.

Antes da Bósnia, o Plano da Fome nazista pretendia exterminar judeus e civis soviéticos. Sete milhões de pessoas morreram, não como dano colateral, mas de forma deliberada.

Como observa o sociólogo Martin Shaw, Israel está seguindo o padrão do genocídio nazista, tal como descrito por Raphael Lemkin em seu livro de 1944 Axis Rule in Occupied Europe: “Uma luta diária, literalmente, pelo pão e pela sobrevivência física”, que “prejudicaria o pensamento em termos gerais e nacionais”.

Não se trata apenas de um ataque contra os corpos. É uma guerra contra a consciência.

<><> Matar de fome também os jornalistas

A fome não tinha apenas como objetivo matar, mas também destruir a capacidade de pensar, de se organizar, de ter esperança. Até os jornalistas estão passando fome. Os correspondentes da Al Jazeera transmitiram sua própria fome: “Trazemos as notícias enquanto nós mesmos passamos fome. Não encontramos nem um bocado para levar à boca desde ontem”.

Quando o observador se torna vítima, quando a fome engole o narrador, a história superou a crise e chegou à catástrofe.

Mesmo assim, os palestinos continuam fazendo fila para conseguir comida, plenamente conscientes do risco mortal que correm. Entram no que se tornou armadilhas mortais da fome da Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês), lugares orquestrados pelo exército israelense. Vão em busca de um saco de farinha e voltam como cadáveres.

No domingo, 115 palestinos foram assassinados a tiros enquanto buscavam ajuda. Noventa e dois deles tentavam pegar comida. Dezenove eram crianças. Desde 27 de maio, mais de 1.000 palestinos foram assassinados e quase 5.000 feridos nos pontos de distribuição gerenciados pela GHF, onde as forças israelenses abrem fogo contra civis famintos.

Um pai, esquálido, chorando, embalando o corpo ensanguentado de seu filho, foi filmado depois que atiraram neles enquanto esperavam pela farinha. Não gritou. Simplesmente balançou a criança em seus braços enquanto os tiros estalavam atrás dele, sussurrando seu nome, porque era a única coisa que lhe restava. Esta não é uma crise humanitária. É extermínio por fome. E mesmo assim, o mundo insiste que isso é uma guerra.

<><> Quem são os culpados?

Não é uma guerra. É uma aniquilação coreografada, prolongada e permitida. Quem são os culpados?

Israel lança as bombas e fecha as portas. Estados Unidos paga as armas e o protege com vetos. E o que acontece com os regimes árabes? São os mais próximos. Falam de irmandade e sangue compartilhado, mas agora são guardiões, carcereiros e executores.

Mas a corda, o estrangulamento da vida, também é sustentada por outros. Falemos da Europa. Tão orgulhosa de seu iluminismo. Tão rápida em invocar o “Nunca mais”. Tão silenciosa quando os cadáveres são palestinos. A União Europeia é o maior parceiro comercial de Israel.

Assinou um acordo no qual prometia que os direitos humanos eram uma condição para o comércio. Essa promessa agora é um túmulo. Sua própria revisão concluiu que Israel havia descumprido tal condição. E o que a Europa fez? Nada.

Para mascarar sua cumplicidade, a União Europeia afirmou ter alcançado um acordo humanitário com Israel. Um suposto avanço. Mas não foi mais que teatro.Nenhuma ajuda chegou. O cerco não foi levantado.

Foi uma cortina de fumaça, um gesto destinado unicamente a cegar o público, a ganhar tempo enquanto as crianças morriam de fome. Como declarou a Anistia Internacional: “Uma traição cruel e ilegal à lei, à consciência e à própria Europa”. Isso será lembrado, não como uma política, mas como cumplicidade. Não como neutralidade, mas como parceria para o crime.

E quanto aos regimes árabes? São os mais próximos. Falam de irmandade e sangue compartilhado, mas agora são guardiões, carcereiros e executores. Comecemos pelo presidente egípcio Abdel Fatah el-Sisi, o general convertido em presidente, instalado no poder mediante um golpe de Estado apoiado por Israel. Governa o Egito com gases lacrimogêneos e prisões. Mas o mais atroz é que, no Sinai, construiu uma zona de amortecimento para isolar Gaza.

A passagem fronteiriça de Rafah está fechada. Os caminhões com ajuda apodrecem sob o sol. Aos médicos é negada a entrada. As crianças estão morrendo, não por falta de ajuda, mas porque a ajuda está bloqueada. Ativistas internacionais são detidos, interrogados e deportados.

Mostrar uma kufiya palestina é um crime. Isso não é segurança. É servidão.

E depois há a Jordânia, um reino que vende seu patrimônio com uma mão e encarcera seus cidadãos com a outra. O rei Abdullah II transformou a Jordânia em um estado policial. Palestinos jordanianos que protestam são presos. Os que falam são silenciados. Os que resistem são torturados. A Jordânia, que uma vez foi o coração da resistência palestina, agora é seu carrasco.

E a Arábia Saudita, a guardiã autoproclamada dos lugares santos do Islã, escolheu o silêncio. Enquanto crianças palestinas morrem de fome, príncipes sauditas assinam acordos comerciais com Israel. A traição não é apenas política. É espiritual.

<><> Gaza é um espelho

Gaza é um espelho que reflete a vergonha absoluta do mundo. Reflete a hipocrisia do Ocidente, que fala de direitos humanos enquanto financia o genocídio. Reflete a traição dos regimes árabes, que venderam a Palestina por petrodólares e poder. Reflete a cumplicidade das instituições internacionais, que transformaram a justiça em uma farsa.

Mas Gaza também reflete algo mais: a resistência inquebrantável do espírito humano. Porque mesmo enquanto morrem de fome, os palestinos continuam resistindo. Continuam contando suas histórias. Continuam se recusando a desaparecer.

Razan Abu Zaher morreu de fome. Mas sua história viverá. E quando este genocídio terminar, quando a história for escrita, o mundo terá que enfrentar o que permitiu que acontecesse.

Gaza é um espelho. E o que reflete é nossa vergonha coletiva.

¨      Trump rebate Netanyahu e diz que fome em Gaza é real: ‘Não se pode fingir’

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, rebateu nesta segunda-feira, 28, a afirmação do premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, de que “não existe fome” na Faixa de Gaza e anunciou uma iniciativa para distribuir alimentos no enclave palestino.

“Israel tem grande responsabilidade pelo fluxo de ajudas em Gaza”, disse Trump ao fim de uma reunião bilateral com o primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, na Escócia.

“Podemos salvar muitas pessoas, existe uma fome real, não se pode fingir”, acrescentou.

O presidente também declarou ter visto “imagens de crianças muito esfomeadas” no enclave, ao ser questionado sobre as palavras de Netanyahu, que disse que “não existe fome em Gaza” e que Israel permitiu a entrada de ajuda humanitária “durante toda a guerra”. “Do contrário, não haveria mais habitantes em Gaza”, destacou o premiê.

Segundo o Ministério da Saúde do enclave, controlado pelo Hamas, 14 pessoas morreram de desnutrição aguda apenas no último domingo (27), elevando o total de óbitos por fome desde o início da guerra, em outubro de 2023, para 147, incluindo 88 crianças.

Pressionado, o governo de Israel iniciou pausas diárias nos combates para permitir o ingresso de ajuda humanitária, porém organizações internacionais afirmam que o fluxo ainda não é suficiente para satisfazer as necessidades da população local.

“Trata-se de um passo positivo no caminho certo, mas está claro que precisamos fazer chegar grandes quantidades de ajuda em uma escala muito, muito maior do que a que fomos capazes até agora”, disse o subsecretário da ONU para Assuntos Humanitários, Tom Fletcher, ressaltando que os itens distribuídos nos últimos dias ? inclusive por via aérea ? são “uma gota no oceano”.

Em meio a esse cenário, Trump anunciou que os EUA vão organizar “centros de distribuição de alimentos” em Gaza, porém sem dar mais detalhes. Desde o fim de maio, o fluxo de ajuda no enclave é controlado pela Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês), organização apoiada por EUA e Israel e que é acusada pelo Hamas de atrair civis necessitados para armadilhas mortais.

Nos últimos dois meses, mais de mil pessoas foram assassinadas enquanto buscavam ajuda nos pontos de distribuição da GHF.

¨      ‘Cicatrizes de um conflito cuja arma é a fome'. Por Ana Maria Oliveira

A sociedade internacional não pode ficar alheia aos acontecimentos na Faixa de Gaza, onde a fome está sendo aplicada como arma de guerra, sob pena de o genocídio continuar e as cicatrizes serem registradas na história, como a memória do holocausto nazista e de suas consequências.  

A fome e, como efeito, a desnutrição já mataram milhares de crianças, jovens e adultos palestinos. Cem entidades humanitárias e ONGs (Organizações Não-governamentais), como Médicos Sem Fronteira, divulgaram um manifesto na semana passada, alertando que um quarto das crianças de 6 meses a 5 anos, mulheres grávidas e lactantes sofrem de desnutrição. Essas entidades se opõem à Fundação Humanitária de Gaza, por ter sido criada por Israel e “servir” a seus interesses.

Nas redes sociais têm circulado depoimentos contundentes de médicos voluntários que atendem os feridos. Eles relatam que muitas vítimas são atingidas por drones, minuciosamente preparados por soldados israelenses para acertar os alvos.

Desde março Israel, com apoio do governo estadunidense, bloqueou a entrada em Gaza de caminhões carregados de alimentos, remédios e outros gêneros, que visam garantir a sobrevivência da população. Após forte pressão internacional e denúncias das organizações independentes, Israel voltou atrás, permitindo que os produtos sejam lançados por via aérea e liberando a entrada parcial de caminhões.

Crimes de guerra

A fome foi uma estratégia central no genocídio nazista de judeus. Adolf Hitler e seus comandantes tinham consciência do poder que residia no controle da alimentação. Enquanto cuidavam para que os soldados alemães tivessem comida suficiente e adequada, mantinham prisioneiros dos campos de concentração com alimentação precária e trabalho físico pesado. Se algum preso ficasse fraco demais para trabalhar, corria o risco de ser enviado à câmara de gás.

Pelo direito penal internacional moderno, a fome de uma população civil é considerada um crime contra a humanidade, pois visa seu controle através do enfraquecimento dessa população e sua expulsão do território. Estima-se que cerca de 100 mil palestinos tenham deixado Gaza desde o início do conflito. Como um método de guerra, a fome tem sido amplamente utilizada ao longo da história mas demorou muito a ser reconhecida como crime de guerra.

De acordo com o especialista britânico Alexander de Waal, um dos fundadores do Centro Nobel da Paz, situado em Oslo, Noruega, os conflitos geopolíticos da década de 2020 “criaram um ambiente normativo permissivo para a perpetração impune de crimes de fome e o retrocesso da ação humanitária internacional”.

Ele observa que os Estados Unidos (EUA) e países aliados têm sido críticos quando crimes de guerra são cometidos por países rivais mas, no caso do conflito em Gaza, adotam visões diferentes do direito internacional, o que dificulta a responsabilização por crimes de fome.

A guerra civil da Nigéria (1967-1970) foi o exemplo mais conhecido de fome empregada para conter opositores e é lembrada como uma das maiores tragédias humanitárias. Uma parte da população havia declarado a independência da região de Biafra, rica em petróleo. Contrário a essa medida, o governo central atacou duramente os opositores. À época, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha reconheceu o fracasso de seu esforço de socorro, atribuindo-o, em parte, à lei de bloqueio endossada por potências ocidentais. Mais tarde, o comitê aumentou os esforços para garantir proteções legais para os civis.   

O Estatuto de Roma, firmado em 17 de julho de 1998 na capital italiana, que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI) como órgão da ONU, incluiu a fome como um crime de guerra, quando cometido dentro de um conflito armado internacional. Com base nesta decisão, em 2024 o TPI emitiu mandados de prisão contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa Yoav Gallant. Eles foram acusados de privar intencionalmente, entre outubro de 2023 e maio de 2024, a população civil de Gaza de recursos essenciais como alimentos, água, medicamentos, combustível e eletricidade. Esses governantes continuam impunes.

Em fevereiro deste ano, os EUA e Israel retiraram-se do Conselho de Direitos Humanos da ONU, sob alegação de que a entidade teria um viés institucional contrário a Israel. Também nesse período, os EUA suspenderam o financiamento da Agência para Refugiados Palestinos, a fim de esvaziar o organismo.

Especialista com vasta experiência em instituições nacionais e internacionais e profundo conhecedor do tema direitos humanos, o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro admite que a gravidade da situação em Gaza já demanda que os governos imponham sanções a Israel.

Nesse contexto, ações efetivas precisam ser adotadas imediatamente pela sociedade internacional (governos, entidades da sociedade civil, ONU) a fim de extinguir o genocídio palestino e garantir a aplicação das normas do direito internacional e a punição dos culpados.

 

Fonte: A Terra é Redonda/IstoÉ/Brasil 247

 

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