A
saga de Maria Bonita, a Rainha do Cangaço
Há 87
anos, em 28 de julho de 1938, Maria Bonita, uma das figuras mais emblemáticas
do cangaço, encontrava seu fim trágico na Grota do Angico, em Sergipe. Ela foi
assassinada junto com Lampião e outros nove cangaceiros de seu bando, todos
vitimados em uma emboscada da polícia alagoana.
Maria
Bonita foi a primeira mulher a participar do cangaço. Ao lado de Lampião, ela
cruzou todo o Nordeste participando dos saques e assaltos a cidades e fazendas
— ações que lhe valeram tanto o título de bandoleira quanto a admiração de
alguns sertanejos, que se sentiam vingados da opressão que sofriam nas mãos dos
coronéis.
Malgrado
o esforço do governo em vilanizá-la, Maria Bonita se converteu em um verdadeiro
ícone da cultura popular nordestina — uma espécie de “heroína folclórica”,
celebrada em músicas, cordéis, xilogravuras, peças de teatro e filmes,
encapsulando a coragem, a ousadia e a resistência do povo do Sertão.
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A juventude de Maria Bonita
Maria
Gomes de Oliveira nasceu no povoado de Malhada da Caiçara, em Santo Antônio da
Glória — hoje parte do município de Paulo Afonso, no Sertão baiano. Sua data de
nascimento é objeto de debate. As fontes tradicionais apontam que Maria Bonita
teria nascido em 8 de março de 1911, mas sua certidão de batismo, descoberta
recentemente, registra seu nascimento em 17 de janeiro de 1910.
Filha
de José Filipe Gomes e Maria Joaquina Conceição de Oliveira, a Dona Déa, Maria
Bonita cresceu em um ambiente marcado pela desigualdade e pela exclusão social.
Acostumou-se desde pequena a trabalhar na lavoura, ajudando os pais no plantio
do milho, do feijão e da mandioca e na criação de cabras e bodes.
A vida
no Sertão nordestino era desafiadora. As secas frequentes devastavam as
plantações e submetiam os sertanejos à ameaça perene da fome. A ausência do
Estado estimulava os abusos dos coronéis e dos fazendeiros, que se apoderavam
das terras e dos recursos e faziam da miséria um instrumento para explorar a
população ao seu bel prazer.
Aos 15
anos, Maria Bonita foi submetida a um casamento arranjado. Ela teve que se
casar com seu primo, o sapateiro Zé de Neném, seis anos mais velho. O
matrimônio era muito conturbado e Maria vivia infeliz. Além de traí-la
constantemente, Zé de Neném era alcoólatra e violento. Sempre que questionava
suas ações, Maria Bonita era espancada com socos e pontapés.
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O encontro com Lampião
O ponto
de virada na vida de Maria Bonita se concretizou em 1929, quando Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião, líder do mais famoso e temido grupo de
cangaceiros do Brasil, visitou a região. Lampião já era uma figura lendária,
afamado pelo desempenho nos combates com as volantes e pelas façanhas que
faziam tremer os coronéis mais poderosos do Sertão.
Maria
Bonita, então com 18 anos, ficou fascinada pelo “Rei do Cangaço”. A atração foi
mútua. Lampião se encantou com a beleza, o carisma e a personalidade altiva e
bem-humorada da jovem. Os dois iniciaram um relacionamento secreto. Quando
Lampião se preparava para partir, Maria não teve dúvidas: deixou o marido para
trás e fugiu com o cangaceiro.
Para
uma dona de casa sertaneja dos anos 20, separar-se do marido dessa forma era
uma transgressão profunda — um gesto escandaloso, que comprometia a honra
familiar e colocava sua reputação em risco. Ainda assim, Maria estava decidida
a seguir adiante.
A fuga,
afinal, era mais do que uma aventura romântica. Para Maria, era a oportunidade
que ela tanto ansiava de romper com as amarras de uma realidade opressiva, que
a mantinha subjugada e infeliz. A chance de buscar um papel ativo em um mundo
que prometia ação e liberdade. Ali, cercada de transgressores, ela se sentia
segura para levar adiante a sua própria insurreição contra as expectativas da
sociedade.
Pouco
tempo após o início do relacionamento, Maria Bonita e Lampião tiveram uma filha
— Expedita Ferreira Nunes, nascida em 1932. Como a vida no cangaço não fornecia
um ambiente seguro para a presença de crianças, a menina foi entregue à guarda
de seu tio paterno, João Ferreira, e cresceu longe dos pais.
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O cangaço
Originado
no século 19, o cangaço era um fenômeno que mesclava banditismo e revolta
social, caracterizado pela formação de grupos marginalizados que se organizavam
para praticar crimes, saques e pilhagem, em um contexto de graves problemas
sociais, anomia política e negligência do Estado.
O
cangaço era, ao mesmo tempo, insurgência e contradição. O movimento não se
baseava em nenhum tipo de intenção revolucionária ou emancipatória, mas
frequentemente confrontava o poder oligárquico. Os cangaceiros atacavam as
propriedades de coronéis e fazendeiros poderosos e desafiavam as lideranças
políticas locais.
Alguns
bandos ofereciam proteção a determinadas comunidades, em função de acordos
feitos com fazendeiros aliados. Havia também cangaceiros que distribuíam o
butim dos saques com comunidades pobres, angariando apoio popular.
Assim,
embora fossem temidos pela violência arbitrária, os cangaceiros também
despertavam a admiração de muitos sertanejos, que os enxergavam como
justiceiros ou vingadores — como pessoas do povo que se insurgiram contra os
desmandos e a tirania das classes dominantes.
Além de
conquistar a simpatia de muitos sertanejos, o bando de Lampião também
estabeleceu uma fama de invencibilidade que se tornou lendária. As sucessivas
vitórias nos enfrentamentos contra volantes e jagunços e a capacidade de
escapar de cercos e emboscadas, mesmo estando em desvantagem, alimentaram mitos
de que os cangaceiros possuíam algum tipo de proteção sobrenatural.
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As mulheres no cangaço
Maria
Bonita é reconhecida como a primeira mulher a integrar um grupo de cangaceiros.
Ela era tratada com respeito e reverência pelos membros do bando, que a
chamavam de “Dona Maria” ou “Maria do Capitão”.
Na
condição de esposa de Virgulino, Maria tinha direito a alguns luxos e regalias.
Ganhava joias, perfumes, vestidos de seda, luvas com estampas florais,
sandálias e botas de cano curto.
Maria
Bonita estava longe de ser uma donzela indefesa, entretanto. Era bem treinada
no uso de armas e andava sempre com seu Colt calibre 38 e com um punhal
estilizado de 32 cm, feito de prata, marfim e pedra ônix.
O fato
de ser alfabetizada permitiu que Maria desempenhasse um papel importante na
concepção das estratégias empregadas pelo bando. Ela exercia influência sobre
as decisões de Lampião. Sabia impor sua palavra quando julgava necessário e era
escutada com respeito.
A
presença de Maria Bonita no grupo foi algo tão impactante que, após ela, outras
mulheres também passaram a integrar os bandos armados — nomes como Adília,
Inacinha, Dulce, Sila, Cristina, entre outras. Muitas, entretanto, não tiveram
escolha: foram raptadas por cangaceiros e forçadas a permanecer no grupo. É o
caso, por exemplo, de Dadá, sequestrada e violentada por Corisco.
Embora
os códigos de conduta no cangaço fossem bastante machistas, as tarefas
domésticas tradicionalmente atribuídas às mulheres eram vistas como obrigações
coletivas do bando. Homens e mulheres tinham a obrigação de cozinhar, costurar,
lavar, etc.
Boa
parte das mulheres do cangaço sabiam manusear armas, mas não costumavam
participar dos combates na linha de frente. Eram mobilizadas sobretudo em
tarefas de apoio, vigilância, sinalização e comunicação com o resto do grupo.
Aos
poucos, a presença das mulheres nos bandos modificou a dinâmica interna do
movimento, impondo limites a certos comportamentos violentos e forjando novas
regras comportamentais.
A
presença feminina ajudou a humanizar o cangaço. Maria Bonita e as demais
mulheres do grupo tinham o costume de interceder para moderar os excessos de
crueldade dos cangaceiros e evitar o derramamento de sangue desnecessário.
As
mulheres também exerceram papel fundamental na criação da identidade estética
do cangaço. Foi Maria Bonita, por exemplo, quem ajudou Lampião a desenhar os
croquis dos trajes usados pelos membros do bando e a elaborar seus acessórios,
bordados e ornamentos característicos.
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O Massacre de Angico
Durante
oito anos, Maria Bonita acompanhou o bando de Lampião em uma série de ações
espetaculares pelo Nordeste brasileiro. O grupo executou centenas de ataques em
cidades de Pernambuco, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Ceará e Rio Grande do
Norte.
Nessas
incursões, os cangaceiros costumavam saquear as fazendas, roubar os bancos e
pilhar os comércios. Humilhavam as autoridades locais e exigiam o pagamento de
taxas dos grandes latifundiários e das famílias ricas.
A
trajetória de Maria Bonita e do bando de Lampião chegou ao fim em 28 de julho
de 1938, na Grota do Angico, em Poço Redondo, Sergipe. Após anos escapando dos
cercos das volantes, o bando foi surpreendido por uma emboscada planejada pela
polícia alagoana, sob o comando do tenente João Bezerra.
Após
serem informados por um coiteiro sobre a localização do grupo, os policiais
cercaram o acampamento onde mais de 40 cangaceiros descansavam. O ataque
surpresa durou poucos minutos, mas foi devastador.
No
confronto, Maria Bonita, Lampião e outros nove cangaceiros foram mortos. Maria
tinha cerca de 28 anos. Ela foi baleada duas vezes e decapitada ainda viva pelo
policial José Panta de Godoy.
O
Massacre de Angico marcou o declínio definitivo do cangaço. Com as principais
lideranças dizimadas, o movimento perdeu sua coesão e seu poder de articulação.
Sem Lampião, não havia mais uma figura capaz de unificar os diversos bandos que
atuavam pelo Sertão.
A ação
das volantes foi intensificada, aproveitando-se do enfraquecimento e da
desorganização dos grupos remanescentes. Nos anos seguintes, muitos cangaceiros
foram capturados, mortos ou se entregaram. O fim oficial do cangaço é
geralmente marcado pela morte de Corisco, o último grande líder do movimento,
em 1940.
As
cabeças de Maria Bonita, Lampião e outros membros do bando foram expostas
publicamente, como uma demonstração de poder do governo e uma tentativa de
desencorajar o apoio popular ao cangaço. Após viajarem por várias cidades do
Nordeste, as cabeças foram encaminhadas para o Museu Nina Rodrigues, em
Salvador, onde ficaram expostas por quase 30 anos.
Enquanto
o governo e a elite se empenhavam em destruir a imagem do cangaço, o povo fazia
exatamente o oposto, transformando os cangaceiros em figuras míticas da cultura
popular, profundamente entrelaçadas com a própria identidade cultural
nordestina.
A
história de Maria Bonita foi imortalizada em diversas formas de expressão
artística, das estrofes dos cantadores do Sertão às telas do cinema, passando
pelas peças de teatro e pelo artesanato popular. Na literatura de cordel, Maria
Bonita adquiriu o status de heroína folclórica, um símbolo da resistência
sertaneja e do espírito de insubmissão diante dos poderosos.
Fonte:
Por Nicole Gerard e Estevam Silva, em Opera Mundi

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