quarta-feira, 30 de julho de 2025

A saga de Maria Bonita, a Rainha do Cangaço

Há 87 anos, em 28 de julho de 1938, Maria Bonita, uma das figuras mais emblemáticas do cangaço, encontrava seu fim trágico na Grota do Angico, em Sergipe. Ela foi assassinada junto com Lampião e outros nove cangaceiros de seu bando, todos vitimados em uma emboscada da polícia alagoana.

Maria Bonita foi a primeira mulher a participar do cangaço. Ao lado de Lampião, ela cruzou todo o Nordeste participando dos saques e assaltos a cidades e fazendas — ações que lhe valeram tanto o título de bandoleira quanto a admiração de alguns sertanejos, que se sentiam vingados da opressão que sofriam nas mãos dos coronéis.

Malgrado o esforço do governo em vilanizá-la, Maria Bonita se converteu em um verdadeiro ícone da cultura popular nordestina — uma espécie de “heroína folclórica”, celebrada em músicas, cordéis, xilogravuras, peças de teatro e filmes, encapsulando a coragem, a ousadia e a resistência do povo do Sertão.

<><> A juventude de Maria Bonita

Maria Gomes de Oliveira nasceu no povoado de Malhada da Caiçara, em Santo Antônio da Glória — hoje parte do município de Paulo Afonso, no Sertão baiano. Sua data de nascimento é objeto de debate. As fontes tradicionais apontam que Maria Bonita teria nascido em 8 de março de 1911, mas sua certidão de batismo, descoberta recentemente, registra seu nascimento em 17 de janeiro de 1910.

Filha de José Filipe Gomes e Maria Joaquina Conceição de Oliveira, a Dona Déa, Maria Bonita cresceu em um ambiente marcado pela desigualdade e pela exclusão social. Acostumou-se desde pequena a trabalhar na lavoura, ajudando os pais no plantio do milho, do feijão e da mandioca e na criação de cabras e bodes.

A vida no Sertão nordestino era desafiadora. As secas frequentes devastavam as plantações e submetiam os sertanejos à ameaça perene da fome. A ausência do Estado estimulava os abusos dos coronéis e dos fazendeiros, que se apoderavam das terras e dos recursos e faziam da miséria um instrumento para explorar a população ao seu bel prazer.

Aos 15 anos, Maria Bonita foi submetida a um casamento arranjado. Ela teve que se casar com seu primo, o sapateiro Zé de Neném, seis anos mais velho. O matrimônio era muito conturbado e Maria vivia infeliz. Além de traí-la constantemente, Zé de Neném era alcoólatra e violento. Sempre que questionava suas ações, Maria Bonita era espancada com socos e pontapés.

<><> O encontro com Lampião

O ponto de virada na vida de Maria Bonita se concretizou em 1929, quando Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, líder do mais famoso e temido grupo de cangaceiros do Brasil, visitou a região. Lampião já era uma figura lendária, afamado pelo desempenho nos combates com as volantes e pelas façanhas que faziam tremer os coronéis mais poderosos do Sertão.

Maria Bonita, então com 18 anos, ficou fascinada pelo “Rei do Cangaço”. A atração foi mútua. Lampião se encantou com a beleza, o carisma e a personalidade altiva e bem-humorada da jovem. Os dois iniciaram um relacionamento secreto. Quando Lampião se preparava para partir, Maria não teve dúvidas: deixou o marido para trás e fugiu com o cangaceiro.

Para uma dona de casa sertaneja dos anos 20, separar-se do marido dessa forma era uma transgressão profunda — um gesto escandaloso, que comprometia a honra familiar e colocava sua reputação em risco. Ainda assim, Maria estava decidida a seguir adiante.

A fuga, afinal, era mais do que uma aventura romântica. Para Maria, era a oportunidade que ela tanto ansiava de romper com as amarras de uma realidade opressiva, que a mantinha subjugada e infeliz. A chance de buscar um papel ativo em um mundo que prometia ação e liberdade. Ali, cercada de transgressores, ela se sentia segura para levar adiante a sua própria insurreição contra as expectativas da sociedade.

Pouco tempo após o início do relacionamento, Maria Bonita e Lampião tiveram uma filha — Expedita Ferreira Nunes, nascida em 1932. Como a vida no cangaço não fornecia um ambiente seguro para a presença de crianças, a menina foi entregue à guarda de seu tio paterno, João Ferreira, e cresceu longe dos pais.

<><> O cangaço

Originado no século 19, o cangaço era um fenômeno que mesclava banditismo e revolta social, caracterizado pela formação de grupos marginalizados que se organizavam para praticar crimes, saques e pilhagem, em um contexto de graves problemas sociais, anomia política e negligência do Estado.

O cangaço era, ao mesmo tempo, insurgência e contradição. O movimento não se baseava em nenhum tipo de intenção revolucionária ou emancipatória, mas frequentemente confrontava o poder oligárquico. Os cangaceiros atacavam as propriedades de coronéis e fazendeiros poderosos e desafiavam as lideranças políticas locais.

Alguns bandos ofereciam proteção a determinadas comunidades, em função de acordos feitos com fazendeiros aliados. Havia também cangaceiros que distribuíam o butim dos saques com comunidades pobres, angariando apoio popular.

Assim, embora fossem temidos pela violência arbitrária, os cangaceiros também despertavam a admiração de muitos sertanejos, que os enxergavam como justiceiros ou vingadores — como pessoas do povo que se insurgiram contra os desmandos e a tirania das classes dominantes.

Além de conquistar a simpatia de muitos sertanejos, o bando de Lampião também estabeleceu uma fama de invencibilidade que se tornou lendária. As sucessivas vitórias nos enfrentamentos contra volantes e jagunços e a capacidade de escapar de cercos e emboscadas, mesmo estando em desvantagem, alimentaram mitos de que os cangaceiros possuíam algum tipo de proteção sobrenatural.

<><> As mulheres no cangaço

Maria Bonita é reconhecida como a primeira mulher a integrar um grupo de cangaceiros. Ela era tratada com respeito e reverência pelos membros do bando, que a chamavam de “Dona Maria” ou “Maria do Capitão”.

Na condição de esposa de Virgulino, Maria tinha direito a alguns luxos e regalias. Ganhava joias, perfumes, vestidos de seda, luvas com estampas florais, sandálias e botas de cano curto.

Maria Bonita estava longe de ser uma donzela indefesa, entretanto. Era bem treinada no uso de armas e andava sempre com seu Colt calibre 38 e com um punhal estilizado de 32 cm, feito de prata, marfim e pedra ônix.

O fato de ser alfabetizada permitiu que Maria desempenhasse um papel importante na concepção das estratégias empregadas pelo bando. Ela exercia influência sobre as decisões de Lampião. Sabia impor sua palavra quando julgava necessário e era escutada com respeito.

A presença de Maria Bonita no grupo foi algo tão impactante que, após ela, outras mulheres também passaram a integrar os bandos armados — nomes como Adília, Inacinha, Dulce, Sila, Cristina, entre outras. Muitas, entretanto, não tiveram escolha: foram raptadas por cangaceiros e forçadas a permanecer no grupo. É o caso, por exemplo, de Dadá, sequestrada e violentada por Corisco.

Embora os códigos de conduta no cangaço fossem bastante machistas, as tarefas domésticas tradicionalmente atribuídas às mulheres eram vistas como obrigações coletivas do bando. Homens e mulheres tinham a obrigação de cozinhar, costurar, lavar, etc.

Boa parte das mulheres do cangaço sabiam manusear armas, mas não costumavam participar dos combates na linha de frente. Eram mobilizadas sobretudo em tarefas de apoio, vigilância, sinalização e comunicação com o resto do grupo.

Aos poucos, a presença das mulheres nos bandos modificou a dinâmica interna do movimento, impondo limites a certos comportamentos violentos e forjando novas regras comportamentais.

A presença feminina ajudou a humanizar o cangaço. Maria Bonita e as demais mulheres do grupo tinham o costume de interceder para moderar os excessos de crueldade dos cangaceiros e evitar o derramamento de sangue desnecessário.

As mulheres também exerceram papel fundamental na criação da identidade estética do cangaço. Foi Maria Bonita, por exemplo, quem ajudou Lampião a desenhar os croquis dos trajes usados pelos membros do bando e a elaborar seus acessórios, bordados e ornamentos característicos.

<><> O Massacre de Angico

Durante oito anos, Maria Bonita acompanhou o bando de Lampião em uma série de ações espetaculares pelo Nordeste brasileiro. O grupo executou centenas de ataques em cidades de Pernambuco, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.

Nessas incursões, os cangaceiros costumavam saquear as fazendas, roubar os bancos e pilhar os comércios. Humilhavam as autoridades locais e exigiam o pagamento de taxas dos grandes latifundiários e das famílias ricas.

A trajetória de Maria Bonita e do bando de Lampião chegou ao fim em 28 de julho de 1938, na Grota do Angico, em Poço Redondo, Sergipe. Após anos escapando dos cercos das volantes, o bando foi surpreendido por uma emboscada planejada pela polícia alagoana, sob o comando do tenente João Bezerra.

Após serem informados por um coiteiro sobre a localização do grupo, os policiais cercaram o acampamento onde mais de 40 cangaceiros descansavam. O ataque surpresa durou poucos minutos, mas foi devastador.

No confronto, Maria Bonita, Lampião e outros nove cangaceiros foram mortos. Maria tinha cerca de 28 anos. Ela foi baleada duas vezes e decapitada ainda viva pelo policial José Panta de Godoy.

O Massacre de Angico marcou o declínio definitivo do cangaço. Com as principais lideranças dizimadas, o movimento perdeu sua coesão e seu poder de articulação. Sem Lampião, não havia mais uma figura capaz de unificar os diversos bandos que atuavam pelo Sertão.

A ação das volantes foi intensificada, aproveitando-se do enfraquecimento e da desorganização dos grupos remanescentes. Nos anos seguintes, muitos cangaceiros foram capturados, mortos ou se entregaram. O fim oficial do cangaço é geralmente marcado pela morte de Corisco, o último grande líder do movimento, em 1940.

As cabeças de Maria Bonita, Lampião e outros membros do bando foram expostas publicamente, como uma demonstração de poder do governo e uma tentativa de desencorajar o apoio popular ao cangaço. Após viajarem por várias cidades do Nordeste, as cabeças foram encaminhadas para o Museu Nina Rodrigues, em Salvador, onde ficaram expostas por quase 30 anos.

Enquanto o governo e a elite se empenhavam em destruir a imagem do cangaço, o povo fazia exatamente o oposto, transformando os cangaceiros em figuras míticas da cultura popular, profundamente entrelaçadas com a própria identidade cultural nordestina.

A história de Maria Bonita foi imortalizada em diversas formas de expressão artística, das estrofes dos cantadores do Sertão às telas do cinema, passando pelas peças de teatro e pelo artesanato popular. Na literatura de cordel, Maria Bonita adquiriu o status de heroína folclórica, um símbolo da resistência sertaneja e do espírito de insubmissão diante dos poderosos.

 

Fonte: Por Nicole Gerard e Estevam Silva, em Opera Mundi

 

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