YouTube
e influenciadores lucram com rede milionária que expõe crianças e adolescentes
Um
grupo de adultos enriquecendo às custas da exploração da imagem de dezenas de
crianças, aplaudidas por outras crianças e adultos. Esse é o modelo de negócio
da Dreams, uma agência de marketing de influência do Paraná que criou um
ecossistema de influenciadores e youtubers que já somam mais de 30 milhões de
inscritos – e que faturam milhões de reais por ano.
O
principal produto da agência é uma espécie de reality show encenado por
crianças distribuído em canais repletos de vídeos de menores de idade que ficam
numa zona cinzenta entre o flagrantemente ilegal e o inadequado.
O
Intercept Brasil mapeou pelo menos sete canais gerenciados por adultos ligados
à empresa que trazem conteúdos desse tipo. Os materiais têm insinuações de teor
sexual, violência e intrigas, além de ilegalidades claras, como propagandas de
casas de apostas e exibição de produtos da indústria do tabaco. O fundador e
único sócio da Dreams, produtora de vídeos com sede em Londrina, no Paraná, é
João Caetano Bressan de Oliveira.
Caetano,
que integra o casting com seus 14,6 milhões de inscritos, é o responsável por
trás desse ecossistema de criadores. O paranaense se orgulha de dizer e mostrar
que enriqueceu e “mudou de vida” graças ao seu trabalho no YouTube, onde cria
vídeos há mais de dez anos.
Os
canais que integram esse ecossistema são altamente lucrativos graças às
ferramentas de monetização do YouTube. Só o canal de Caetano pode render pelo
menos R$ 1,1 milhão por ano, segundo uma estimativa da ferramenta Social Blade.
O canal do Taspio, um outro integrante da rede, fatura pelo menos R$ 3,4
milhões por ano, segundo o Social Blade.
Mas o
conteúdo da produtora pode estar violando a lei brasileira. Por trás dos
vídeos, além dos adultos envolvidos, big techs, como YouTube, TikTok e
Instagram, também têm sua parcela de lucro com essa exploração da imagem de
crianças e adolescentes.
O
Intercept optou por não reproduzir trechos ou imagens dos vídeos para preservar
a intimidade e imagem das crianças. Mas alguns exemplos dão o tom do que a
coletânea apresenta.
Um
deles, que teve mais de 1,1 milhão de visualizações, tem o título “Deixei
câmeras escondidas e flagrei a ex-namorada tentando beijar o cria”. O tema de
traição, namoro, beijos e rivalidade entre meninas se repete em diversos
vídeos.
Alguns
dos vídeos fazem insinuações de teor sexual. Um deles, com o título “Que isso
Gabriel, cheguei em casa na hora errada”, mostra na foto de capa um garoto
abrindo a porta de um quarto enquanto, ao fundo, duas meninas estão de toalha
na cama. Em outro vídeo, duas crianças são pegas “no flagra” em um quarto,
insinuando que estavam se beijando.
Outro
vídeo, que teve mais de 970 mil visualizações, tem o título “Flagrei a amiga
falsa batendo na Balalaikinha”. Balalaikinha, em referência a uma marca de
bebida alcoólica, é o apelido de uma das meninas que aparecem frequentemente
nos vídeos. A temática de brigas e violência física também é recorrente.
Em
outro vídeo, que recebeu o título “Aninha, o que estão ensinando para você?”, a
imagem no thumbnail mostra uma criança segurando algo que parece um cigarro,
enquanto um adulto segura uma caixa de cigarro.
Depois
de acumular milhões de visualizações, o conteúdo extrapola o YouTube e rende
cortes, como são chamados os trechos recortados de vídeos mais longos,
distribuídos dentro do próprio Youtube ou no TikTok. Uma das contas que publica
cortes tem 496 mil seguidores.
Segundo
especialistas ouvidos pelo Intercept, o conteúdo pode violar o Estatuto da
Criança e do Adolescente, o ECA, que completa 35 anos neste mês de julho de
2025.
“Olhando
o caso vídeo a vídeo, talvez a gente consiga identificar violações a um artigo
específico do ECA, o 17”, disse Maria Mello, coordenadora do programa Criança e
Consumo e colíder de Digital do Alana, uma organização de sociedade civil que
atua em defesa da infância. “É sempre uma questão interpretativa delicada, mas
eu acho que para vídeos que tenham conteúdos mais explícitos, é possível
pensar.”
O
artigo 17 do ECA versa sobre o “direito ao respeito”, que prevê a
“inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do
adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia,
dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.”
Para
além da exposição indevida da intimidade de crianças e adolescentes, os vídeos
da produtora também tocam em questões trabalhistas. O próprio YouTube
reconhece, em um relatório de agosto de 2023, que a rede é trabalho. “YouTube
ajudou a gerar mais de 140 mil empregos e colaborou com 4,55 bi para o PIB
brasileiro em 2022”, diz o relatório.
Já há
precedente na justiça brasileira que determina que vídeos contendo trabalho
infantil, como é o caso dos vídeos da produtora Dreams, demandam um alvará
judicial que deve ser exigido e fiscalizado pelas plataformas.
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‘A gente também precisa garantir que o YouTube honre com esses compromissos’.
Em
junho, a ByteDance, dona do TikTok, foi condenada em segunda instância a
impedir a publicação de vídeos com trabalho infantil artístico na plataforma,
exceto quando houver alvará judicial que autorize a atividade. Segundo a
decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, a empresa tem a
obrigação legal de exigir e fiscalizar a apresentação deste alvará.
“Crianças
que realizam essas atividades artísticas no ambiente digital devem fazer isso
amparadas por uma autorização judicial que precede essa atuação, assim como
acontece, por exemplo, na televisão, teatro e em outras mídias mais
tradicionais”, explicou ao Intercept João Francisco Coelho, advogado do
programa Criança e Consumo do Instituto Alana, uma organização de sociedade
civil que atua em defesa da infância.
De
acordo com o advogado, a exigência do alvará acaba justamente por proteger
crianças de situações como essas. Isso porque o alvará resulta de um processo
que envolve juízes da Vara da Infância e Ministério Público estaduais com
atuação na Promotoria da Infância que avaliarão se as atividades são adequadas
para serem realizadas por criança e quais medidas devem ser tomadas em
contrapartida. Isso inclui, por exemplo, psicólogos no local de trabalho.
“A
gente também precisa garantir que o YouTube honre com esses compromissos e com
essas obrigações legais para evitar esse tipo de situação de se concretizar”,
disse o advogado.
O
Intercept questionou tanto a Dreams quanto o YouTube sobre a existência dos
alvarás judiciais. A Dreams não respondeu até o fechamento da reportagem. O
YouTube disse que estava analisando o conteúdo dos canais sinalizados e enviou
uma nota genérica sobre as ações da plataforma em relação à crianças e
adolescentes.
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Taspio: ‘Eu não sabia que não podia postar uma merda dessa, porque a menina era
de menor’
Um dos
outros canais desse ecossistema pertence ao youtuber Taspio. Com 6,4 milhões de
inscritos, o conteúdo segue a linha dos demais: relacionamento entre crianças,
intrigas, brigas e brincadeiras. Em um vídeo recente, Taspio leva as crianças
para conhecerem um imóvel de alto padrão que ele descreve como “a nova casa de
férias da Tropa do Taspio”.
Taspio,
que também ficou conhecido como streamer fazendo transmissões na Twitch todos
os dias, já tem um histórico de problema com exposição de crianças, como ele
mesmo contou em uma transmissão.
Ele foi
processado pelo pai de uma adolescente após publicar um vídeo em seu canal em
que dois menores, sendo um deles a menina, se beijavam. “Eu não sabia que eu
não podia postar uma merda dessa, porque a menina era de menor”, diz ele.
Na
época, Taspio era ligado à Loud, uma produtora de streaming de jogos online,
mas foi desligado após o início do processo judicial. “O vídeo ficou dois meses
no ar e fez mó sucesso”, diz Taspio, rindo.
No fim
de junho, o Ministério Público do Paraná obteve uma liminar que “proíbe
influenciadores digitais de gravar, produzir, divulgar ou compartilhar
conteúdos com participação de crianças e adolescentes até obtenção de
autorização judicial.” Nós questionamos se essa ação trata dos canais ligados à
Dreams, mas o MP disse que não podia dar mais informações por se tratar de uma
ação em sigilo.
A
liminar se deu dentro de uma ação civil pública iniciada a partir de denúncias
sobre “conteúdos audiovisuais impróprios produzidos por influenciadores com
grande alcance, postados nas redes sociais YouTube, Instagram e TikTok”.
“Dentre
esses conteúdos, nós podemos destacar violências físicas, sequestros,
afogamentos, sexualização e relacionamentos precoces, exposições de seminudez,
roubos, consumo de bebidas alcoólicas e de cigarro, dentre outros”, disse a
promotora de Justiça Fabiana Pimenta Soares em áudio disponibilizado pelo MP.
Essa
exposição, diz a promotora, “feita sem nenhuma supervisão e fiscalização, em
horários inadequados, com prejuízos às atividades escolares e sem critério de
segurança, compromete o desenvolvimento saudável, possibilitando a criação de
redes de assédio”.
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Associação com Bets e risco de criação de redes de assédio
Um dos
conteúdos publicados no canal do João Caetano começa como qualquer outro: com
brincadeiras. No início, ele leva alguns meninos para o restaurante Outback. O
vídeo segue até ser interrompido por uma imagem de Caetano dentro do estúdio de
gravação. “Opa, opa, peraí, desculpa interromper esse vídeo, eu preciso dar um
recadinho muito legal para você que curte jogos”, diz Caetano.
O que
vem em seguida é uma propaganda da Blaze, empresa de apostas que ele descreve
como patrocinadora de seu canal. A Blaze foi investigada em 2023 pela polícia
de São Paulo após indícios de que a plataforma não pagava aos apostadores por
prêmios devidos.
Ainda
que a maioria dos conteúdos fique numa área cinzenta entre o que é notoriamente
ilegal e o que é apenas condenável, esse é um exemplo que não deixa dúvidas
quanto ao conflito com a lei, segundo especialistas.
“No
meio de um vídeo cheio de crianças e para crianças. Isso também já traz outra
dimensão de ilegalidade que é sim muito flagrante e que inclusive poderia ser
objeto de escrutínio pela Secretaria de Prêmios e Apostas enquanto reguladora
desse mercado de apostas”, disse Coelho.
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‘Querendo ou não, tem um lado ruim’
A
exposição nos vídeos da Dreams é tamanha que o próprio irmão do João Caetano,
Gabriel Caetano, fez um vídeo falando sobre os prejuízos que a hiperexposição
trouxe a ele. O vídeo foi apagado do canal, mas o Intercept teve acesso ao
conteúdo antes que ele ficasse indisponível.
Gabriel,
que participa do canal do irmão desde os 10 anos, quando João começou a criar
conteúdo, falou sobre como os comentários deixados nos vídeos o impactavam e
ainda hoje o afetam.
“Não
estou fazendo esse vídeo pra ser ingrato, eu sei que isso ajudou demais, a
gente mudou completamente a história da nossa família, hoje em dia a gente come
bem, a gente teêm plano de saúde, teêm uma casa daora, e não quero ser ingrato
porque entendo tudo que meu irmão passou para fazer a gente estar aqui hoje,
mas querendo ou não, tem um lado ruim”, explica Gabriel.
‘É
interessante para as plataformas muitas vezes manter determinados conteúdos que
são problemáticos e em desacordo com seus próprios termos de serviço e
diretrizes da comunidade’.
Os
conteúdos do grupo de canais da Dreams também conflitam com o que as diretrizes
de comunidade do Youtube estabelecem sobre segurança infantil. A plataforma
lista como exemplo de conteúdo não permitido “vídeos ou posts com menores
envolvidos em atividades, desafios e apostas provocantes, sexuais ou com
conotação sexual, como beijos ou carícias.”
Ainda
que o YouTube faça uma moderação dos conteúdos publicados na plataforma, essa
moderação é, a todo tempo, tensionada pelos interesses comerciais e econômicos
das plataformas, explicou ao Intercept Bruno Mattos, coordenador de projetos do
NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ.
“É
interessante para as plataformas muitas vezes manter determinados conteúdos que
são problemáticos e em desacordo com seus próprios termos de serviço e
diretrizes da comunidade, se esses conteúdos gerarem engajamento suficiente,
porque mais engajamento significa que tem mais pessoas vendo aquele vídeo e
aquele vídeo é recomendado a mais pessoas e, portanto, mais pessoas se tornam
cliente nessa estrutura porque elas estão recebendo anúncios o tempo todo”,
disse Mattos.
Fonte:
Por Laís Martins em The Intercept

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