quinta-feira, 31 de julho de 2025

MÚSICA TRADICIONAL VERSUS MERCADO: O contemporâneo do forró

Passados os festejos de São João, ficamos no gostinho de quero mais até o próximo ano, quando, muito provavelmente, escutaremos novamente que a festa já não é mais a mesma. Em ampla medida, a alegação se deve à perda de espaço do forró pé-de-serra em shows de cidades do Nordeste e, com ele, artistas tradicionais da cena forrozeira. Lendário se tornou o episódio do sanfoneiro Flávio José, no São João de Campina Grande, em 2023, ao demonstrar pesar pelo corte que seu repertório sofreu no tão esperado show, situação contrastada com a extensa apresentação de Gusttavo Lima, representante do gênero sertanejo.

Historicamente, a celebração junina reúne o que veio de além-mar e, por aqui chegando, foi misturado e profanado no interior do Nordeste. Não por acaso, há a repetição ritualística de crenças e exaltação de santos, os quais, agora já longe das igrejas da Europa, assumem tons coloridos nos estandartes empunhados com o calor de fogueiras e corações brasileiros. Festa da colheita estendida até julho e que certamente se espiralou ao som da sanfona de Luiz Gonzaga.

Transcorridos quase trinta e seis anos da morte do rei do baião, quem vivenciou o festejo deste ano foi compelido a naturalizar a propaganda bet em boa parte das cidades da região Nordeste. Com o frescor da imagem bet na memória e o corpo vibrando no saudosismo banhado pela obra do Seu Luiz, me pego a pensar sobre qual aposta é possível fazer no forró, ainda hoje, das ruínas do neoliberalismo.

A peleja instaurada com a situação do forró pé-de-serra no São João nordestino se desenrola a partir de muitas pontas soltas, mas, por ora, quero me deter na acalorada discussão sobre a oposição forjada entre tradicional e contemporâneo. Aos ouvidos mais desavisados, o forró pé-de-serra seria um legítimo representante do que há de mais tradicional em nossa música, cabendo a gêneros outros agradar o público sedento por celebridades, pirotecnias e demais artigos instagramáveis. De acordo com essa visada, forrozeiros estariam relegados a um passado imutável e engessado na romântica perspectiva de um Nordeste que seria, a um só tempo, idílico e carcomido pelos flagelos da seca.

Invenção com ares de Gilberto Freyre, na exaltação do passado colonial pernambucano como uma das bases para a construção de uma suposta identidade brasileira – e do correlato ideal nacionalista –, marcada pela falaciosa harmonia entre diferentes raças. É o tal do mito da democracia racial e o sonho da branquitude de vender o Brasil – com ênfase na venda – como paraíso miscigenado e imune ao seu próprio histórico de violência, repleto de conflitos de cunho racial. Residem aí elementos incontestes de Nordeste, livro publicado em 1937, mas quero destacar ainda a retórica dicotômica que constitui a espinha dorsal da obra, dos quais se fazem representantes o tradicional versus o moderno, o Nordeste agrário, rural versus o Sudeste modernizado.

Na esteira dessa leitura, caso queiram abraçá-la, só restaria mesmo aos forrozeiros a salvação por parte de outros gêneros ou o voluntarismo de bem-aventurados capazes de fazer releituras mais aderidas à nossa época, modernizando, assim, o tradicional forró pé-de-serra para que seja dotado das condições que o tornem palatável ao gosto da contemporaneidade. Devagar com esse andor que nosso santo é de barro, com adornos coloridos e animado pela alegria brasileira!

Em quais termos a polarização entre tradicional e contemporâneo se aplicaria ao forró? Tive a oportunidade de trocar um dedo de prosa com o pesquisador Hernany Donato sobre o assunto e fui presenteada com a seguinte frase: “O forró já nasceu contemporâneo”. O baiano e exímio conhecedor da cultura popular refere-se à verve vanguardista, marca maior do forró desde suas origens.

De acordo com o italiano Giorgio Agamben, que provavelmente nunca teve o prazer de dançar o xaxado, é contemporâneo quem estabelece uma singular relação com o próprio tempo: a ele adere e dele toma distância. Acompanhando o filósofo que fala difícil, temos que “Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não consegue vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela”. Nesses termos, a contemporaneidade se afirma como uma atitude e não apenas um recorte historiográfico espremido entre marcos cronológicos estabelecidos a posteriori. Não teria sido contemporânea a atitude de Gonzagão puxando o fole de sua sanfona do alto de um caminhão em apresentações no interior do Nordeste até sua consagração como um dos artistas que mais influenciou a música brasileira? E a atitude da recifense Anastácia, grande compositora do cancioneiro brasileiro, cuja obra atravessa gerações a despeito de toda sorte de machismo? E de Jackson do Pandeiro, rei do ritmo e da síncopa, cujo forró sincopado desafiou as categorias analíticas de que se dispunha até então?

Hernany lembra da trajetória do pernambucano Assisão, reconhecido letrista e forrozeiro da geração de Flávio José, responsável por fazer sua carreira sem a sanfona, tida como uma das grandes marcas do forró, ao lado de triângulo e zabumba. O artista tocava fole de oito baixos, mas, em função de um acidente sofrido, precisou abandonar o instrumento. Por precisão, Assisão vislumbrou a possibilidade de contemporaneizar o forró, profanando a tríade de instrumentos não raras vezes tida como traço distintivo daquele. Daí entraram na dança também a guitarra, o contrabaixo e o teclado. Nesse movimento, Assisão esgarçou o fio (da meada) do gênero sem, no entanto, arrebentar a corda. Haveria um limite no cabo de guerra entre o considerado tradicional e a atitude contemporânea?

Para trazer o tema à baila, ao som de um xote coladinho, podemos acompanhar o debate levantado por Rodrigo Caçapa a respeito do mercado fonográfico. Em Quanto vale a música tradicional?, o recifense nos ajuda a colocar mais uma dicotomia em questão, a saber, música tradicional versus mercado fonográfico. Caçapa lembra que a música considerada tradicional, em sua mais absoluta diversidade estética, está inserida em tal mercado, ao contrário do que a lógica dicotômica nos faz acreditar. A diferença residiria muito mais no modo de operar: enquanto a música tradicional remete primordialmente à fruição, à celebração coletiva, à eventual religiosidade e à necessidade primeira de se expressar; o mercado fonográfico estaria mais alinhado aos propósitos do lucro, do sucesso e da fama.

Desse modo, é possível fazer um deslocamento para tomar como pano de fundo da discussão o valor simbólico que a música tradicional do Nordeste possui para quem detém o poder aquisitivo Brasil afora. Em seu lócus de produção, a música tradicional e o mercado estabelecem uma relação equilibrada devido ao valor simbólico que a primeira tem para seu território. Reproduzo as importantes questões levantadas pelo artista: “Essa música representa verdadeiramente algo mais do que uma relação superficial com uma estética considerada ingênua e primitiva, e com a qual se entra em contato apenas uma vez ao ano, por força do hábito? Vale mais do que um mero ingrediente dos antigos ideais nacionalistas? Tem outra função além de servir às peças publicitárias para turistas verem?”.

Questionamentos que devem ser mantidos em tensão constante, caso se esteja em pauta um gênero como o forró, amplamente associado ao barro do chão de onde foi gestado, isto é, a classe trabalhadora nordestina forçada à diáspora em busca de condições materiais de existência. Assimilado ao ingênuo, ao primitivo e ao artigo nacionalista na prateleira para gringo ver, o forró segue aprisionado em uma relação de mero contraponto identificatório com o contemporâneo. No entanto, e sua história não nos deixa esquecer, parece caber ao forró justamente o embaralhamento das fronteiras estanques que buscam separar tradicional do contemporâneo, música tradicional do mercado fonográfico. Reside também aí o contemporâneo do forró.

Nesse sentido, proponho que se possa acompanhar o forró em seu potencial de reunião dos estilhaços separados pela diáspora e coletivização da classe trabalhadora em busca de fruição. Não seria uma atitude mais contemporânea diante das ameaças de nossas ruínas neoliberais? Deixemos as bets e façamos essa aposta. Nesse forró vai ter futuro.

 

Fonte: Por Fernanda Canavêz, no Le Monde

 

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