MÚSICA
TRADICIONAL VERSUS MERCADO: O contemporâneo do forró
Passados
os festejos de São João, ficamos no gostinho de quero mais até o próximo ano,
quando, muito provavelmente, escutaremos novamente que a festa já não é mais a
mesma. Em ampla medida, a alegação se deve à perda de espaço do forró
pé-de-serra em shows de cidades do Nordeste e, com ele, artistas tradicionais
da cena forrozeira. Lendário se tornou o episódio do sanfoneiro Flávio José, no
São João de Campina Grande, em 2023, ao demonstrar pesar pelo corte que seu
repertório sofreu no tão esperado show, situação contrastada com a extensa
apresentação de Gusttavo Lima, representante do gênero sertanejo.
Historicamente,
a celebração junina reúne o que veio de além-mar e, por aqui chegando, foi
misturado e profanado no interior do Nordeste. Não por acaso, há a repetição
ritualística de crenças e exaltação de santos, os quais, agora já longe das
igrejas da Europa, assumem tons coloridos nos estandartes empunhados com o
calor de fogueiras e corações brasileiros. Festa da colheita estendida até
julho e que certamente se espiralou ao som da sanfona de Luiz Gonzaga.
Transcorridos
quase trinta e seis anos da morte do rei do baião, quem vivenciou o festejo
deste ano foi compelido a naturalizar a propaganda bet em boa parte das cidades
da região Nordeste. Com o frescor da imagem bet na memória e o corpo vibrando
no saudosismo banhado pela obra do Seu Luiz, me pego a pensar sobre qual aposta
é possível fazer no forró, ainda hoje, das ruínas do neoliberalismo.
A
peleja instaurada com a situação do forró pé-de-serra no São João nordestino se
desenrola a partir de muitas pontas soltas, mas, por ora, quero me deter na
acalorada discussão sobre a oposição forjada entre tradicional e contemporâneo.
Aos ouvidos mais desavisados, o forró pé-de-serra seria um legítimo
representante do que há de mais tradicional em nossa música, cabendo a gêneros
outros agradar o público sedento por celebridades, pirotecnias e demais artigos
instagramáveis. De acordo com essa visada, forrozeiros estariam relegados a um
passado imutável e engessado na romântica perspectiva de um Nordeste que seria,
a um só tempo, idílico e carcomido pelos flagelos da seca.
Invenção
com ares de Gilberto Freyre, na exaltação do passado colonial pernambucano como
uma das bases para a construção de uma suposta identidade brasileira – e do
correlato ideal nacionalista –, marcada pela falaciosa harmonia entre
diferentes raças. É o tal do mito da democracia racial e o sonho da branquitude
de vender o Brasil – com ênfase na venda – como paraíso miscigenado e imune ao
seu próprio histórico de violência, repleto de conflitos de cunho racial.
Residem aí elementos incontestes de Nordeste, livro publicado em 1937, mas
quero destacar ainda a retórica dicotômica que constitui a espinha dorsal da
obra, dos quais se fazem representantes o tradicional versus o moderno, o
Nordeste agrário, rural versus o Sudeste modernizado.
Na
esteira dessa leitura, caso queiram abraçá-la, só restaria mesmo aos
forrozeiros a salvação por parte de outros gêneros ou o voluntarismo de
bem-aventurados capazes de fazer releituras mais aderidas à nossa época,
modernizando, assim, o tradicional forró pé-de-serra para que seja dotado das
condições que o tornem palatável ao gosto da contemporaneidade. Devagar com
esse andor que nosso santo é de barro, com adornos coloridos e animado pela
alegria brasileira!
Em
quais termos a polarização entre tradicional e contemporâneo se aplicaria ao
forró? Tive a oportunidade de trocar um dedo de prosa com o pesquisador Hernany
Donato sobre o assunto e fui presenteada com a seguinte frase: “O forró já
nasceu contemporâneo”. O baiano e exímio conhecedor da cultura popular
refere-se à verve vanguardista, marca maior do forró desde suas origens.
De
acordo com o italiano Giorgio Agamben, que provavelmente nunca teve o prazer de
dançar o xaxado, é contemporâneo quem estabelece uma singular relação com o
próprio tempo: a ele adere e dele toma distância. Acompanhando o filósofo que
fala difícil, temos que “Aqueles que coincidem muito plenamente com a época,
que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos
porque, exatamente por isso, não consegue vê-la, não podem manter fixo o olhar
sobre ela”. Nesses termos, a contemporaneidade se afirma como uma atitude e não
apenas um recorte historiográfico espremido entre marcos cronológicos
estabelecidos a posteriori. Não teria sido contemporânea a atitude de Gonzagão
puxando o fole de sua sanfona do alto de um caminhão em apresentações no
interior do Nordeste até sua consagração como um dos artistas que mais
influenciou a música brasileira? E a atitude da recifense Anastácia, grande
compositora do cancioneiro brasileiro, cuja obra atravessa gerações a despeito
de toda sorte de machismo? E de Jackson do Pandeiro, rei do ritmo e da síncopa,
cujo forró sincopado desafiou as categorias analíticas de que se dispunha até
então?
Hernany
lembra da trajetória do pernambucano Assisão, reconhecido letrista e forrozeiro
da geração de Flávio José, responsável por fazer sua carreira sem a sanfona,
tida como uma das grandes marcas do forró, ao lado de triângulo e zabumba. O
artista tocava fole de oito baixos, mas, em função de um acidente sofrido,
precisou abandonar o instrumento. Por precisão, Assisão vislumbrou a
possibilidade de contemporaneizar o forró, profanando a tríade de instrumentos
não raras vezes tida como traço distintivo daquele. Daí entraram na dança
também a guitarra, o contrabaixo e o teclado. Nesse movimento, Assisão esgarçou
o fio (da meada) do gênero sem, no entanto, arrebentar a corda. Haveria um
limite no cabo de guerra entre o considerado tradicional e a atitude contemporânea?
Para
trazer o tema à baila, ao som de um xote coladinho, podemos acompanhar o debate
levantado por Rodrigo Caçapa a respeito do mercado fonográfico. Em Quanto vale
a música tradicional?, o recifense nos ajuda a colocar mais uma dicotomia em
questão, a saber, música tradicional versus mercado fonográfico. Caçapa lembra
que a música considerada tradicional, em sua mais absoluta diversidade
estética, está inserida em tal mercado, ao contrário do que a lógica dicotômica
nos faz acreditar. A diferença residiria muito mais no modo de operar: enquanto
a música tradicional remete primordialmente à fruição, à celebração coletiva, à
eventual religiosidade e à necessidade primeira de se expressar; o mercado
fonográfico estaria mais alinhado aos propósitos do lucro, do sucesso e da
fama.
Desse
modo, é possível fazer um deslocamento para tomar como pano de fundo da
discussão o valor simbólico que a música tradicional do Nordeste possui para
quem detém o poder aquisitivo Brasil afora. Em seu lócus de produção, a música
tradicional e o mercado estabelecem uma relação equilibrada devido ao valor
simbólico que a primeira tem para seu território. Reproduzo as importantes
questões levantadas pelo artista: “Essa música representa verdadeiramente algo
mais do que uma relação superficial com uma estética considerada ingênua e
primitiva, e com a qual se entra em contato apenas uma vez ao ano, por força do
hábito? Vale mais do que um mero ingrediente dos antigos ideais nacionalistas?
Tem outra função além de servir às peças publicitárias para turistas verem?”.
Questionamentos
que devem ser mantidos em tensão constante, caso se esteja em pauta um gênero
como o forró, amplamente associado ao barro do chão de onde foi gestado, isto
é, a classe trabalhadora nordestina forçada à diáspora em busca de condições
materiais de existência. Assimilado ao ingênuo, ao primitivo e ao artigo
nacionalista na prateleira para gringo ver, o forró segue aprisionado em uma
relação de mero contraponto identificatório com o contemporâneo. No entanto, e
sua história não nos deixa esquecer, parece caber ao forró justamente o
embaralhamento das fronteiras estanques que buscam separar tradicional do
contemporâneo, música tradicional do mercado fonográfico. Reside também aí o
contemporâneo do forró.
Nesse
sentido, proponho que se possa acompanhar o forró em seu potencial de reunião
dos estilhaços separados pela diáspora e coletivização da classe trabalhadora
em busca de fruição. Não seria uma atitude mais contemporânea diante das
ameaças de nossas ruínas neoliberais? Deixemos as bets e façamos essa aposta.
Nesse forró vai ter futuro.
Fonte:
Por Fernanda Canavêz, no Le Monde

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