terça-feira, 29 de julho de 2025

Negacionismo e decolonialidade

Observando que, a energia gasta para refutar um bullshit é maior do que a gasta para produzi-lo, como observou Frankfurt (2005), podemos iniciar a discussão da crítica a decolonialidade (aqui tomada sem distinções qualitativas entre pós-colonial, contracolonial e outras variantes de prefixos).

Enfatizo que faço coro com Vivek Shibber, em seu Postcolonial Theory and the Specter of Capital (2013), no qual oferece uma crítica marxista às teorias pós-coloniais destacando seu descolamento da análise de classe, num sentido que ressoa o que disse Neil Larsen. Este, questionando a validade do termo “decolonial”, ao analisar o trabalho de Walter Mignolo, um dos principais autores dessa corrente, argumenta que, na prática, o “de” em “decolonial” pode ser interpretado como um apagamento ou negação do colonialismo em si, e não apenas uma crítica ou superação do mesmo:

“de-” em “decolonial” começa a soar mais apropriado: significando, como bem poderia, o apagamento ou a reversão não do próprio colonialismo, mas do seu conceito e referente histórico. Porque é que, afinal de contas, há tão pouco a ser encontrado em todos os discursos decoloniais de Mignolo – com relação às especificidades do próprio colonialismo, à sua base e condições materiais, para não mencionar os detalhes reais e praticamente inesgotáveis da sua historiografia, movimentos anticoloniais mostrando que não há exceção a essa regra?” (NEIL LARSEN, 2024).

Trata-se de uma ressignificação da palavra colonialismo que esvazia o seu referente, aquilo de que se fala. Em outras palavras, as reivindicações de universalidade baseadas em etnia ou cultura são facilmente desmascaradas pela crítica decolonial, mas a universalidade mais profunda, enraizada na história social-econômica e nas estruturas do capitalismo, muitas vezes passa despercebida.

Vejamos alguns nomes famosos dessa corrente.

Denise Ferreira (2007), escrevendo em inglês, a língua colonial e lecionando no Canadá, em Toward a Global Idea of Race, critica a ideia de humanidade como um conceito eurocêntrico e (essencialmente) racista. Gayatri Spivak (2010) critica o discurso da razão ocidental por silenciar as vozes marginalizadas e postula que as estruturas discursivas da razão ocidental impossibilitam a representação autêntica das vozes subalternas; acrescenta que o sujeito colonial seria constituído por um epistemicídio que inviabilizaria sua autoexpressão fora das categorias impostas pelo colonizador.

Isso se manifestaria na impossibilidade de o subalterno articular sua experiência sem mediação das estruturas racionais coloniais, de modo que, quando a ciência fala em objetividade, estaria na realidade codificando uma perspectiva local (europeia e hetero cis patriarcal) como se fosse neutra. Tese influenciada por Aníbal Quijano (1991), que identifica na racionalidade científica moderna um instrumento-chave da colonialidade do poder. Tais afirmações fazem eco com parte dos estudos feministas de epistemologia, por exemplo, Sandra Harding, em Is Science Multicultural? (1998), desafia a noção de neutralidade da ciência moderna, defendendo que seus critérios de objetividade emergiram de contextos colonial.

Outro popular é (de Portugal, país colonizador) Boaventura de Sousa Santos (2007) que defende uma pluralidade de formas de saber que deveria conviver harmônica e democraticamente (mais ou menos como ensinar terraplanismo, geocentrismo etc., nas escolas, numa reductio ad absurdum consequencialista). Mas a sua proposta de uma “ecologia de saberes” sem hierarquia é contraditória: se não hierarquizamos conhecimentos, não há critério para diferenciar o que é verdadeiro do que é falso, como abordarei mais à frente.

Fique claro que já desconsidero a posição relativista radical que diz: é universalmente verdadeiro que não há verdades universais. Isso é autorrefutante. Se toda universalidade é só uma hegemonia disfarçada, então o próprio projeto de descolonização cai nesse mesmo jogo autorreferente. Há um risco de que nenhuma normatividade epistêmica sobreviva, exceto como vontade de potência identitária.

Contra mim, eles poderiam dizer que a tese do epistemicídio e outras epistemologias é uma denúncia de violências feitas no passado, um tipo de estudo de fatos históricos. Mas muitas formulações caem em um descritivismo relativista, confundindo o fato sociológico da exclusão com uma equivalência epistêmica. Negar que o heliocentrismo seja mais verdadeiro que o geocentrismo por ter sido imposto colonialmente é cometer a falácia genética.

Portanto pergunto: o que está em jogo, qual o programa de pesquisa e de política dessas abordagens? Se fosse somente incluir todas as pessoas do mundo, sem preconceitos e exclusões a priori, no fazer científico todos iríamos concordar e seria um projeto contínuo ao iluminista. Mas isso não configura um problema filosófico, quiçá sociológico.

Seria antes o caso de políticas públicas de acesso, inclusão, divulgação, diálogo, democratização, dentre outros, elementos mensuráveis com estudos estatísticos. Entendo que essa pauta seria demasiado trivial, seria do âmbito prático e não tem novidade para constituir um programa. Por isso, posso conceber que o programa decolonial quer algo mais, pois não se satisfaria, por exemplo, com cientistas naturais ouvindo indígenas explicando sobre plantas medicinais para depois elaborar um estudo sob padrões científicos contemporâneos para verificar se funciona e porque funciona.

Ele poderia acusar essa ação de absorver conhecimentos locais e até mesmo destruição epistêmica se os estudos mostrarem que a afirmação do curandeiro é falsa, ou que o remédio funciona, mas não pela razão que o curandeiro diz funcionar. Por exemplo, se investigarmos um chá de medicina tradicional e isolarmos um composto realmente eficaz para alguma coisa, não validaríamos o sistema tradicional como um todo, apenas aquela descoberta específica.

Podemos intuir, e para falar mais poeticamente, que se eles não querem a forma banal e (neo)iluminista de inclusão, o que eles querem é o direito do sul global de ter a sua própria idade das trevas. O conceito de justiça (epistêmica) passa a tomar o lugar do conceito de verdade.

A falta de hierarquia entre epistemologias (defendida por Boaventura e cia) não coloca astrologia e astronomia no mesmo nível, homeopatia e antibióticos como equivalentes? O argumento decolonial tentaria rebater afirmando que busca diferenciar pseudociência e epistemologias tradicionais, alegando que a primeira imita a ciência sem rigor enquanto a segunda é empírica e validada em seus próprios contextos locais.

Mas isso é um erro: a questão que deveria ser debatida não é a origem cultural de um conhecimento, mas sua validade objetiva. A origem não nos diz muito sobre se é verdadeiro ou falso. A astrologia e a homeopatia também possuem transmissão intergeracional e adaptação a contextos, mas continuam sendo pseudociência e não são consideradas saberes tradicionais/ancestrais porque não resistem a testes rigorosos.

A diferença relevante entre um conhecimento funcional e um conhecimento falho é se ele sobrevive ao escrutínio de testes rigorosos. Se uma prática tradicional funciona, não é por ser tradicional, mas porque possui mecanismos objetivos que a tornam eficaz. O erro da argumentação é criar uma distinção essencialista, como se a mera origem não ocidental de um conhecimento o isentasse de critérios de verificação.

Se uma prática não passa por esses testes, continua sendo apenas crença não verificada ou insuficientemente verificada. Se levada a sério e posta em prática, tal ecologia dos saberes significa a proposta de política pública na qual permitir que um paciente transite, sem a devida filtragem, do consultório de um urologista para uma consulta com um pastor. Implica admitir práticas que podem comprometer diagnósticos e tratamentos vitais.

Uma imunização epistêmica, que poderiam levantar contra minha crítica, seria dizer que uso critérios de avaliação (como eficácia) já são culturais. Eduardo Viveiros de Castro, em seu Metafísicas Canibais exemplifica: “Para os povos ameríndios, o critério de verdade não é a experimentação, mas a transformação: saber é tornar-se outro. Impingir-lhes o método hipotético-dedutivo é epistemicídio” (2015).

A afirmação de que a validade não é um conceito universal é contraditória e perigosa. Se isso fosse verdade, significaria que não há forma de decidir se uma prática médica funciona melhor que outra. Isso abriria espaço para justificar desde curandeirismo até o charlatanismo puro, tornando suas proposições irrefutáveis por qualquer critério externo.

Entendemos que a ciência não define validade apenas com base em preferências culturais, mas em evidências empíricas e replicáveis (ao menos em príncípio) por qualquer um em qualquer lugar, em qualquer cultura. Uma saída de Viveiros seria tentar afirmar que um ritual xamânico pode restaurar vínculos sociais e reduzir estresse, tendo eficácia simbólica e, pois, objetos distintos da medicina, (caso em que não haveria conflito epistêmico) mas isso confundiria efeitos secundários com eficácia médica. Um placebo também pode reduzir o estresse, sem que cure uma infecção.

<><> Falácia genética

Para deixar mais claro o problema da falácia genética. Pense no que muda no meu uso do copo para beber água ao saber a sua composição química? O que muda saber cada detalhe de seu processo de produção? O que quero saber é mais simples: se ele retém a água sem alterar suas propriedades ou acrescentar toxinas (claro que a análise laboratorial pode ser útil para determinar essas propriedades quando não as sabemos).

O ponto é que a gênese, por si só, não diz o que a coisa é. O valor prático de um artefato (ou de uma teoria) não depende somente de sua história de origem, mas sobretudo de sua função atual. Saber que o copo foi feito por escravos ou impresso em 3D é irrelevante para decidir se ele serve para reter água. É confundir origem com validade. Analogamente, a confusão seria como dizer que a teoria da gravidade de Isaac Newton não pode ser confiável, pois ele era obcecado por alquimia e teologia. Ao contrário: a validade empírica da teoria depende de sua coerência interna e adequação ao mundo, não das crenças pessoais de Isaac Newton.

Assim, entendo que o decolonialismo confunde contexto da descoberta com contexto da justificação. O como se chegou a uma tese (que pode ser por diversos caminhos, mesmo que irracionais) com o motivo de ser verdadeira (que tenta explicar à comunidade humana razões para aceitar a tese). Se poderíamos concordar com a tese fraca de que existem muitas formas de saber, não poderíamos nos deixar enganar e aceitar a tese forte de que existem múltiplos critérios de justificação do saber.

Meus adversários poderiam rebater que eles não usam a gênese como refutação, mas como denúncia. Mas essa réplica comete outro erro do moving target ou a motte-and-bailey fallacy: oscilação estratégica entre tese forte e tese fraca, usada para evitar a responsabilização argumentativa completa. Muitos defensores do que se chama ecologia dos saberes operam exatamente assim: no bailey: propõem uma reconceituação completa da ciência, onde categorias como verdade, objetividade, causalidade e explicação são tratadas como eurocêntricas ou opressivas; no motte: dizem que apenas querem denunciar desigualdades de acesso ou incluir outras vozes.

A falácia se revela quando se tenta criticar a tese forte: o interlocutor recua, mas continua agindo (em publicações, políticas e formação educacional) como se a tese forte fosse válida. Aqui podemos lembrar da análise (meta)crítica de Alan Sokal e Jean Bricmont (1998): não é que os relativistas digam que tudo é relativo, mas que eles agem como se fosse, enquanto discursam como se não fosse, uma ambivalência performativa que mina toda normatividade epistêmica.

Quando Harding afirma que a ciência moderna é uma mitologia entre muitas, mas ao mesmo tempo defende uma ciência feminista superior, ela recusa os critérios de justificação tradicionais ao mesmo tempo que invoca critérios não articulados para validar seu próprio discurso. Isso configura um ato performaticamente contraditório, que torna qualquer justificação epistemicamente autoimune.

Todavia, não devemos proferir proposições com pretensão de verdade quando não temos critérios públicos para justificar sua validade. Dito de forma direta, significa que se você não quer falar como epistemólogo ou cientista, fala como artista, sacerdote, contador de mitos; mas não reivindique o estatuto de forma de saber para o que não pode ser bem justificado.

O resultado prático do programa aqui criticado é o fim da política pública baseada em evidências, substituída por um clientelismo cognitivo que legitima toda sorte de charlatanismo. Isso, de fato, é epistemicídio, não das cosmologias indígenas, mas da racionalidade pública comum. Citei vários autores que usam argumentos contra a ciência e não simplesmente de denuncia em busca de inclusividade. Os argumentos deles mostram que não buscam apenas se inserir na ciência, mas modificar radicalmente o que é ciência; numa reinstitucionalização do obscurantismo.

<><> Outro erro é categorial

Podemos perguntar: a Justiça é azul? A verdade é azeda? A razão racista? Tanto a verdade quanto a justiça são conceitos abstratos e normativos, enquanto adjetivos como azeda ou azul são aplicáveis a objetos físicos e sensíveis; a cor azul só pode ser atribuída a objetos materiais, que possuem propriedades sensoriais e estão no mundo físico. Já conceitos como justiça, verdade e razão são abstratos, pertencentes ao domínio das ideias ou estruturas normativas, que não possuem propriedades sensoriais. A mistura dessas esferas leva a confusão e à falta de clareza.

Novamente, alguns não tão avessos à universalidade poderiam contra argumentar que não estão acusando A Razão (enquanto universal transcultural, uma capacidade inata), mas um modelo de racionalidade que nos limita – e bem, ao ouvir essa posição fraca todos poderíamos ficar empolgados e querer descobrir novas capacidades e usos da razão. Esse projeto implicaria demonstrar que a razão em sua forma transcultural tem propriedades e capacidades que estão sendo abafadas pela sua instanciação cultural ocidental. Mas quais seriam esses elementos que passam despercebidos? Justamente os que nos lembram a pseudociência.

O que está sendo silenciado são outras formas possíveis de exercício racional (ex: narrativas orais, cosmologias relacionais, pensamento por imagens ou afetos, hermenêuticas mítico-espirituais, etc.). Ora, todos podemos concordar que há uma racionalidade nessas práticas (a sociologia clássica já mostrava isso); mas é um cavalo de troia. Se levado a sério, esse argumento exige demonstrar que essas formas alternativas não são apenas diferentes, mas racionalmente equivalentes ou superiores, segundo critérios comuns de validação que caracterizamos como pseudociência.

E com isso abrir as portas para os traços que a modernidade se propôs a criticar e superar: dogmatismo, autoridade não argumentada, imunização à crítica e até hierarquias simbólicas inquestionáveis (como o xamã, o pastor, o ancião, o portador do saber tradicional). É um projeto regressivo, travestido de emancipação; que abre as portas para o terraplanismo, antivacina etc.

Não teremos critérios para impedir o uso de recurso público para financiar charlatanice e crendice. Ele mina as bases do esclarecimento público, justamente no momento histórico em que mais precisaríamos de critérios racionais compartilháveis para lidar com pandemias, colapsos ecológicos e disfunções tecnocientíficas globais.

 

Fonte: Por Leonardo Domingos Braga da Silva, em A Terra é Redonda

 

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