Negacionismo
e decolonialidade
Observando
que, a energia gasta para refutar um bullshit é maior do que a gasta para
produzi-lo, como observou Frankfurt (2005), podemos iniciar a discussão da
crítica a decolonialidade (aqui tomada sem distinções qualitativas entre
pós-colonial, contracolonial e outras variantes de prefixos).
Enfatizo
que faço coro com Vivek Shibber, em seu Postcolonial Theory and the Specter of
Capital (2013), no qual oferece uma crítica marxista às teorias pós-coloniais
destacando seu descolamento da análise de classe, num sentido que ressoa o que
disse Neil Larsen. Este, questionando a validade do termo “decolonial”, ao
analisar o trabalho de Walter Mignolo, um dos principais autores dessa
corrente, argumenta que, na prática, o “de” em “decolonial” pode ser
interpretado como um apagamento ou negação do colonialismo em si, e não apenas
uma crítica ou superação do mesmo:
“de-”
em “decolonial” começa a soar mais apropriado: significando, como bem poderia,
o apagamento ou a reversão não do próprio colonialismo, mas do seu conceito e
referente histórico. Porque é que, afinal de contas, há tão pouco a ser
encontrado em todos os discursos decoloniais de Mignolo – com relação às
especificidades do próprio colonialismo, à sua base e condições materiais, para
não mencionar os detalhes reais e praticamente inesgotáveis da sua
historiografia, movimentos anticoloniais mostrando que não há exceção a essa
regra?” (NEIL LARSEN, 2024).
Trata-se
de uma ressignificação da palavra colonialismo que esvazia o seu referente,
aquilo de que se fala. Em outras palavras, as reivindicações de universalidade
baseadas em etnia ou cultura são facilmente desmascaradas pela crítica
decolonial, mas a universalidade mais profunda, enraizada na história
social-econômica e nas estruturas do capitalismo, muitas vezes passa
despercebida.
Vejamos
alguns nomes famosos dessa corrente.
Denise
Ferreira (2007), escrevendo em inglês, a língua colonial e lecionando no
Canadá, em Toward a Global Idea of Race, critica a ideia de humanidade como um
conceito eurocêntrico e (essencialmente) racista. Gayatri Spivak (2010) critica
o discurso da razão ocidental por silenciar as vozes marginalizadas e postula
que as estruturas discursivas da razão ocidental impossibilitam a representação
autêntica das vozes subalternas; acrescenta que o sujeito colonial seria
constituído por um epistemicídio que inviabilizaria sua autoexpressão fora das
categorias impostas pelo colonizador.
Isso se
manifestaria na impossibilidade de o subalterno articular sua experiência sem
mediação das estruturas racionais coloniais, de modo que, quando a ciência fala
em objetividade, estaria na realidade codificando uma perspectiva local
(europeia e hetero cis patriarcal) como se fosse neutra. Tese influenciada por
Aníbal Quijano (1991), que identifica na racionalidade científica moderna um
instrumento-chave da colonialidade do poder. Tais afirmações fazem eco com
parte dos estudos feministas de epistemologia, por exemplo, Sandra Harding, em
Is Science Multicultural? (1998), desafia a noção de neutralidade da ciência
moderna, defendendo que seus critérios de objetividade emergiram de contextos
colonial.
Outro
popular é (de Portugal, país colonizador) Boaventura de Sousa Santos (2007) que
defende uma pluralidade de formas de saber que deveria conviver harmônica e
democraticamente (mais ou menos como ensinar terraplanismo, geocentrismo etc.,
nas escolas, numa reductio ad absurdum consequencialista). Mas a sua proposta
de uma “ecologia de saberes” sem hierarquia é contraditória: se não
hierarquizamos conhecimentos, não há critério para diferenciar o que é
verdadeiro do que é falso, como abordarei mais à frente.
Fique
claro que já desconsidero a posição relativista radical que diz: é
universalmente verdadeiro que não há verdades universais. Isso é
autorrefutante. Se toda universalidade é só uma hegemonia disfarçada, então o
próprio projeto de descolonização cai nesse mesmo jogo autorreferente. Há um
risco de que nenhuma normatividade epistêmica sobreviva, exceto como vontade de
potência identitária.
Contra
mim, eles poderiam dizer que a tese do epistemicídio e outras epistemologias é
uma denúncia de violências feitas no passado, um tipo de estudo de fatos
históricos. Mas muitas formulações caem em um descritivismo relativista,
confundindo o fato sociológico da exclusão com uma equivalência epistêmica.
Negar que o heliocentrismo seja mais verdadeiro que o geocentrismo por ter sido
imposto colonialmente é cometer a falácia genética.
Portanto
pergunto: o que está em jogo, qual o programa de pesquisa e de política dessas
abordagens? Se fosse somente incluir todas as pessoas do mundo, sem
preconceitos e exclusões a priori, no fazer científico todos iríamos concordar
e seria um projeto contínuo ao iluminista. Mas isso não configura um problema
filosófico, quiçá sociológico.
Seria
antes o caso de políticas públicas de acesso, inclusão, divulgação, diálogo,
democratização, dentre outros, elementos mensuráveis com estudos estatísticos.
Entendo que essa pauta seria demasiado trivial, seria do âmbito prático e não
tem novidade para constituir um programa. Por isso, posso conceber que o
programa decolonial quer algo mais, pois não se satisfaria, por exemplo, com
cientistas naturais ouvindo indígenas explicando sobre plantas medicinais para
depois elaborar um estudo sob padrões científicos contemporâneos para verificar
se funciona e porque funciona.
Ele
poderia acusar essa ação de absorver conhecimentos locais e até mesmo
destruição epistêmica se os estudos mostrarem que a afirmação do curandeiro é
falsa, ou que o remédio funciona, mas não pela razão que o curandeiro diz
funcionar. Por exemplo, se investigarmos um chá de medicina tradicional e
isolarmos um composto realmente eficaz para alguma coisa, não validaríamos o
sistema tradicional como um todo, apenas aquela descoberta específica.
Podemos
intuir, e para falar mais poeticamente, que se eles não querem a forma banal e
(neo)iluminista de inclusão, o que eles querem é o direito do sul global de ter
a sua própria idade das trevas. O conceito de justiça (epistêmica) passa a
tomar o lugar do conceito de verdade.
A falta
de hierarquia entre epistemologias (defendida por Boaventura e cia) não coloca
astrologia e astronomia no mesmo nível, homeopatia e antibióticos como
equivalentes? O argumento decolonial tentaria rebater afirmando que busca
diferenciar pseudociência e epistemologias tradicionais, alegando que a
primeira imita a ciência sem rigor enquanto a segunda é empírica e validada em
seus próprios contextos locais.
Mas
isso é um erro: a questão que deveria ser debatida não é a origem cultural de
um conhecimento, mas sua validade objetiva. A origem não nos diz muito sobre se
é verdadeiro ou falso. A astrologia e a homeopatia também possuem transmissão
intergeracional e adaptação a contextos, mas continuam sendo pseudociência e
não são consideradas saberes tradicionais/ancestrais porque não resistem a
testes rigorosos.
A
diferença relevante entre um conhecimento funcional e um conhecimento falho é
se ele sobrevive ao escrutínio de testes rigorosos. Se uma prática tradicional
funciona, não é por ser tradicional, mas porque possui mecanismos objetivos que
a tornam eficaz. O erro da argumentação é criar uma distinção essencialista,
como se a mera origem não ocidental de um conhecimento o isentasse de critérios
de verificação.
Se uma
prática não passa por esses testes, continua sendo apenas crença não verificada
ou insuficientemente verificada. Se levada a sério e posta em prática, tal
ecologia dos saberes significa a proposta de política pública na qual permitir
que um paciente transite, sem a devida filtragem, do consultório de um
urologista para uma consulta com um pastor. Implica admitir práticas que podem
comprometer diagnósticos e tratamentos vitais.
Uma
imunização epistêmica, que poderiam levantar contra minha crítica, seria dizer
que uso critérios de avaliação (como eficácia) já são culturais. Eduardo
Viveiros de Castro, em seu Metafísicas Canibais exemplifica: “Para os povos
ameríndios, o critério de verdade não é a experimentação, mas a transformação:
saber é tornar-se outro. Impingir-lhes o método hipotético-dedutivo é
epistemicídio” (2015).
A
afirmação de que a validade não é um conceito universal é contraditória e
perigosa. Se isso fosse verdade, significaria que não há forma de decidir se
uma prática médica funciona melhor que outra. Isso abriria espaço para
justificar desde curandeirismo até o charlatanismo puro, tornando suas
proposições irrefutáveis por qualquer critério externo.
Entendemos
que a ciência não define validade apenas com base em preferências culturais,
mas em evidências empíricas e replicáveis (ao menos em príncípio) por qualquer
um em qualquer lugar, em qualquer cultura. Uma saída de Viveiros seria tentar
afirmar que um ritual xamânico pode restaurar vínculos sociais e reduzir
estresse, tendo eficácia simbólica e, pois, objetos distintos da medicina,
(caso em que não haveria conflito epistêmico) mas isso confundiria efeitos
secundários com eficácia médica. Um placebo também pode reduzir o estresse, sem
que cure uma infecção.
<><>
Falácia genética
Para
deixar mais claro o problema da falácia genética. Pense no que muda no meu uso
do copo para beber água ao saber a sua composição química? O que muda saber
cada detalhe de seu processo de produção? O que quero saber é mais simples: se
ele retém a água sem alterar suas propriedades ou acrescentar toxinas (claro
que a análise laboratorial pode ser útil para determinar essas propriedades
quando não as sabemos).
O ponto
é que a gênese, por si só, não diz o que a coisa é. O valor prático de um
artefato (ou de uma teoria) não depende somente de sua história de origem, mas
sobretudo de sua função atual. Saber que o copo foi feito por escravos ou
impresso em 3D é irrelevante para decidir se ele serve para reter água. É
confundir origem com validade. Analogamente, a confusão seria como dizer que a
teoria da gravidade de Isaac Newton não pode ser confiável, pois ele era
obcecado por alquimia e teologia. Ao contrário: a validade empírica da teoria
depende de sua coerência interna e adequação ao mundo, não das crenças pessoais
de Isaac Newton.
Assim,
entendo que o decolonialismo confunde contexto da descoberta com contexto da
justificação. O como se chegou a uma tese (que pode ser por diversos caminhos,
mesmo que irracionais) com o motivo de ser verdadeira (que tenta explicar à
comunidade humana razões para aceitar a tese). Se poderíamos concordar com a
tese fraca de que existem muitas formas de saber, não poderíamos nos deixar
enganar e aceitar a tese forte de que existem múltiplos critérios de
justificação do saber.
Meus
adversários poderiam rebater que eles não usam a gênese como refutação, mas
como denúncia. Mas essa réplica comete outro erro do moving target ou a
motte-and-bailey fallacy: oscilação estratégica entre tese forte e tese fraca,
usada para evitar a responsabilização argumentativa completa. Muitos defensores
do que se chama ecologia dos saberes operam exatamente assim: no bailey:
propõem uma reconceituação completa da ciência, onde categorias como verdade,
objetividade, causalidade e explicação são tratadas como eurocêntricas ou
opressivas; no motte: dizem que apenas querem denunciar desigualdades de acesso
ou incluir outras vozes.
A
falácia se revela quando se tenta criticar a tese forte: o interlocutor recua,
mas continua agindo (em publicações, políticas e formação educacional) como se
a tese forte fosse válida. Aqui podemos lembrar da análise (meta)crítica de
Alan Sokal e Jean Bricmont (1998): não é que os relativistas digam que tudo é
relativo, mas que eles agem como se fosse, enquanto discursam como se não
fosse, uma ambivalência performativa que mina toda normatividade epistêmica.
Quando
Harding afirma que a ciência moderna é uma mitologia entre muitas, mas ao mesmo
tempo defende uma ciência feminista superior, ela recusa os critérios de
justificação tradicionais ao mesmo tempo que invoca critérios não articulados
para validar seu próprio discurso. Isso configura um ato performaticamente
contraditório, que torna qualquer justificação epistemicamente autoimune.
Todavia,
não devemos proferir proposições com pretensão de verdade quando não temos
critérios públicos para justificar sua validade. Dito de forma direta,
significa que se você não quer falar como epistemólogo ou cientista, fala como
artista, sacerdote, contador de mitos; mas não reivindique o estatuto de forma
de saber para o que não pode ser bem justificado.
O
resultado prático do programa aqui criticado é o fim da política pública
baseada em evidências, substituída por um clientelismo cognitivo que legitima
toda sorte de charlatanismo. Isso, de fato, é epistemicídio, não das
cosmologias indígenas, mas da racionalidade pública comum. Citei vários autores
que usam argumentos contra a ciência e não simplesmente de denuncia em busca de
inclusividade. Os argumentos deles mostram que não buscam apenas se inserir na
ciência, mas modificar radicalmente o que é ciência; numa reinstitucionalização
do obscurantismo.
<><>
Outro erro é categorial
Podemos
perguntar: a Justiça é azul? A verdade é azeda? A razão racista? Tanto a
verdade quanto a justiça são conceitos abstratos e normativos, enquanto
adjetivos como azeda ou azul são aplicáveis a objetos físicos e sensíveis; a
cor azul só pode ser atribuída a objetos materiais, que possuem propriedades
sensoriais e estão no mundo físico. Já conceitos como justiça, verdade e razão
são abstratos, pertencentes ao domínio das ideias ou estruturas normativas, que
não possuem propriedades sensoriais. A mistura dessas esferas leva a confusão e
à falta de clareza.
Novamente,
alguns não tão avessos à universalidade poderiam contra argumentar que não
estão acusando A Razão (enquanto universal transcultural, uma capacidade
inata), mas um modelo de racionalidade que nos limita – e bem, ao ouvir essa
posição fraca todos poderíamos ficar empolgados e querer descobrir novas
capacidades e usos da razão. Esse projeto implicaria demonstrar que a razão em
sua forma transcultural tem propriedades e capacidades que estão sendo abafadas
pela sua instanciação cultural ocidental. Mas quais seriam esses elementos que
passam despercebidos? Justamente os que nos lembram a pseudociência.
O que
está sendo silenciado são outras formas possíveis de exercício racional (ex:
narrativas orais, cosmologias relacionais, pensamento por imagens ou afetos,
hermenêuticas mítico-espirituais, etc.). Ora, todos podemos concordar que há
uma racionalidade nessas práticas (a sociologia clássica já mostrava isso); mas
é um cavalo de troia. Se levado a sério, esse argumento exige demonstrar que
essas formas alternativas não são apenas diferentes, mas racionalmente
equivalentes ou superiores, segundo critérios comuns de validação que
caracterizamos como pseudociência.
E com
isso abrir as portas para os traços que a modernidade se propôs a criticar e
superar: dogmatismo, autoridade não argumentada, imunização à crítica e até
hierarquias simbólicas inquestionáveis (como o xamã, o pastor, o ancião, o
portador do saber tradicional). É um projeto regressivo, travestido de
emancipação; que abre as portas para o terraplanismo, antivacina etc.
Não
teremos critérios para impedir o uso de recurso público para financiar
charlatanice e crendice. Ele mina as bases do esclarecimento público,
justamente no momento histórico em que mais precisaríamos de critérios
racionais compartilháveis para lidar com pandemias, colapsos ecológicos e
disfunções tecnocientíficas globais.
Fonte:
Por Leonardo Domingos Braga da Silva, em A Terra é Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário