Diário
do julgamento: “Silêncio ensurdecedor” expõe a Inteligência do Exército
Desde o
início do governo Lula, o ministro da Defesa, José Múcio, tentou distanciar as
Forças Armadas dos militares envolvidos na crise golpista que levou ao
quebra-quebra em Brasília (DF) em 8 de janeiro de 2023. Com apoio dos
comandantes nos
bastidores, o esforço de Múcio ocorreu discretamente nos últimos dois anos até
ganhar protagonismo nesta segunda-feira (28), ao fim do interrogatório dos réus
do núcleo 3 da trama golpista.
Ao
tentar justificar a decisão do ministro relator do caso no Supremo Tribunal
Federal (STF), Alexandre de Moraes, de proibir o uso de
fardas pelos réus na
ocasião, o juiz-auxiliar Rafael Tamai Rocha disse que a acusação era “contra
militares, não contra o Exército Brasileiro”.
Mas a
tentativa de descolar as Forças Armadas do caso foi
questionada nos depoimentos ao longo da segunda. O “silêncio ensurdecedor” do
Exército – nas palavras do coronel Márcio Nunes
de Resende,
um dos réus no caso – foi alvo constante das defesas dos militares por
diferentes razões.
A
maioria dos réus militares colocou em xeque o comportamento das
Forças após
as eleições – quando elas não se manifestaram contra os pedidos de intervenção
dos bolsonaristas, permitindo os acampamentos na frente dos quartéis pelo país.
Ao longo do processo no STF, o tenente-coronel kid preto Mauro Cid disse que as
Forças Armadas deram “apoio tácito” à prática, com uma
“oficialização” da permissão após a divulgação da nota conjunta dos
três comandantes no
fim de 2022.
Nos
interrogatórios finais, militares criticaram até mesmo a falta de respostas das
Forças Armadas sobre como elas acompanharam a crise golpista, com suspeita de
envolvimento do aparato militar de inteligência na trama.
Réu por
suposta ligação com uma carta de oficiais da ativa para pressionar o Alto
Comando a aderir ao golpe em 2022, o coronel kid preto Fabrício Moreira de
Bastos evidenciou em sua defesa os rastros que levam à atuação da inteligência
do Exército na trama.
Bastos
alega ter se envolvido com a carta golpista por “ordem expressa” de seu chefe
no Centro de Inteligência do Exército (CIE) à época dos fatos, o então coronel,
hoje general Rodolfo Roque Salguero de la Vega Filho. Bastos convocou o general
como testemunha, mas diz que ele não depôs por não ter tido “autorização” do
Exército.
A Agência
Pública apurou que o Comando do Exército defende que “testemunhas só têm
sido obrigadas a comparecer quando ‘intimadas’ formalmente pelo juiz, não
quando ‘demandadas’ pelos advogados”. Já sobre a alegação do coronel Bastos, a
reportagem apurou que a cúpula militar entende que o envolvimento do CIE na
trama seria “uma tese de defesa que ele [Bastos] precisa provar”.
Vale
lembrar que, durante a CPMI do 8 de Janeiro, o Exército disse
apenas não ter produzido relatórios de inteligência sobre o acampamento na
frente do QG da Força em Brasília porque “não foram
identificados aspectos que pudessem comprometer a segurança orgânica dos
aquartelamentos” no local, sem dar mais detalhes sobre o restante das
atividades do CIE durante a crise golpista.
A
menção do coronel Bastos sobre a inteligência militar não foi a única ao longo
dos depoimentos desta segunda. Kid preto citado por Mauro Cid como um dos que
queriam “causar o caos” no país em 2022, o
tenente-coronel Hélio Ferreira Lima alegou em seu interrogatório que criou um
documento que previa “a prisão preventiva dos juízes supremos considerados
geradores de instabilidade” apenas como parte de seu trabalho à época, como
oficial de inteligência da 6ª Divisão do Exército no Comando Militar do Sul, em
Porto Alegre (RS).
Intitulado
“Op Luneta”, o documento previa ações para “neutralizar a capacidade de atuação
do ministro AM” – em referência a Alexandre de Moraes, segundo a PF – para
“restabelecer a lei e a ordem”, com a criação de gabinetes de crise e
convocação de novas eleições.
Em sua
defesa, Lima disse que o material era “amparado em normas legais” do Exército e
que sua função na 6ª Divisão consistia em “avaliar cenários” e pensar em
“soluções”. O kid preto afirma que o documento seria um “cenário prospectivo”, uma “ferramenta de
análise”
que não foi executada, nem utilizada por seus superiores.
“Isso é
uma prática da doutrina americana, um oficial [norte-]americano criou essa
técnica nos anos 1960 e adotamos aqui [no Brasil] desde então… no Exército, é
comum a criação de ‘cenários prospectivos’”, afirmou o kid preto em seu
interrogatório.
O
Exército disse à Pública que “não se manifesta sobre processos
judiciais em andamento” e que “atende a todas as solicitações das autoridades
competentes, prestando as informações requeridas”. Já a Polícia Federal afirmou
que “não se manifesta sobre o conteúdo de alegações feitas por eventuais
investigados”.
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Grupo Copa 2022: os kids pretos dispostos a “sujar as mãos” pelo golpe
Se o
aparato de inteligência militar acabou exposto, os interrogatórios também
continham ataques contra pontos fundamentais da investigação da Polícia Federal
e da acusação da Procuradoria-Geral da República.
A
ofensiva ficou evidente a partir dos réus supostamente ligados ao chamado grupo
Copa 2022 – criado para planejar e executar sequestros e
assassinatos de autoridades para efetivar o Golpe de Estado, segundo a PF.
Preso preventivamente desde novembro de 2024, o tenente-coronel kid preto
Rodrigo Bezerra de Azevedo foi um dos mais enfáticos nas críticas às
investigações.
Acusado
de ser o integrante “Brasil” no grupo Copa 2022, o kid preto Azevedo defende
que as investigações ignoraram supostas provas que o inocentariam no caso.
“Fui eu
quem falei à PF que estava de posse desse celular. Mesmo sendo cadastrado um
chip com meus dados, é impossível afirmar que eu estava com esse celular [à
época dos fatos investigados] porque eu não tive qualquer emprego pregresso
daquele aparelho, o utilizei apenas a partir do dia 26 de dezembro [de 2022]”,
disse Azevedo.
Lotado
no Comando de Operações Especiais (COPESP) em Goiânia à época, o kid preto
defende que obteve o aparelho identificado pela PF como pertencente ao
integrante “Brasil”, do grupo Copa 2022, numa sala de equipamentos dentro do
COPESP. Segundo Azevedo, os investigadores erraram ao ignorar o uso prévio do
aparelho – que levaria à pessoa que seria o integrante “Brasil”, segundo ele.
“Eu só
quero saber o que não foi respondido para a minha defesa até agora: foi feita
alguma diligência junto ao Exército? Foi aberto algum IPM [Inquérito Policial
Militar] para se descobrir quem usou o aparelho antes de mim? Mas absolutamente
nada foi feito, e a PGR apenas consignou uma acusação inverossímil”, afirmou o
réu.
Algumas
das provas citadas por Azevedo se baseiam no descontrole sobre a retirada de
equipamentos e até mesmo de veículos na unidade dos kids pretos em Goiânia.
A Pública apurou que, de fato, há dúvidas quanto ao controle do
COPESP sobre seu material – especialmente a retirada de veículos.
A
informação importa, pois as investigações sugerem que outro kid preto da ativa,
o tenente-coronel Rafael Martins de Oliveira, também acusado de integrar o
grupo Copa 2022, teria usado veículos oficiais na execução do plano. O militar
também depôs nesta segunda, com uma postura hostil e respondendo
apenas perguntas formuladas por sua defesa, se proclamando um “prisioneiro de
guerra”.
Procurado
pela reportagem, o Exército disse que o estoque de armamentos e munições do
COPESP passava por um “controle diário” à época dos fatos investigados. Já no
caso de veículos, os militares não confirmam oficialmente a falta de controle
durante a crise golpista, mas a resposta à Pública sugere o
contrário.
“O
controle das viaturas era descentralizado, ficando sob responsabilidade de cada
Organização Militar. No entanto, a partir de julho de 2024, foi implantado um
sistema informatizado com leitura de QR Code, para registrar a entrada e saída
das viaturas no quartel, aprimorando o processo de controle”, disse o Exército
à Pública.
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“Era um pensamento digitalizado meu”
Separado
do restante dos kids pretos dispostos a “sujar as mãos” pelo golpe, segundo PF
e PGR, o ex-comandante das Forças Especiais do Exército Mário Fernandes admitiu
na última quinta (24), pela primeira vez, ter sido responsável pela elaboração
do plano Punhal Verde Amarelo em seu interrogatório ao STF. O plano continha
uma lista de ações visando o golpe de estado, incluindo ações violentas como
sequestro, envenenamento e assassinato de autoridades da República – incluindo
o presidente Lula (PT) e o vice, Geraldo Alckmin (PSB).
“É um
arquivo digital que nada mais retrata do que um pensamento meu que foi
digitalizado, um ‘compilar’ de dados, um estudo de situação meu, de pensamento…
uma análise de risco que eu fiz e, por um costume próprio, resolvi
inadvertidamente digitalizar”, disse o general da reserva do Exército.
Seu
depoimento chamou atenção não apenas pela admissão quanto ao plano golpista,
mas pelo esforço em puxar a responsabilidade apenas para si mesmo.
O
general kid preto disse não ter mostrado seu plano a ninguém, mesmo após ser
questionado pela PGR quanto à impressão do documento no Palácio do Planalto em
plena crise golpista, em dezembro de 2022.
“Foi
uma coincidência em relação à minha atribuição administrativa e logística como
secretário-executivo. Mas eu não levei, não apresentei, não compartilhei esse
arquivo, seja digital ou impresso, com ninguém”, afirmou.
Seja
verdadeira ou seja mentirosa, a versão do militar o complica no julgamento em
curso no STF. Afinal, após admitir a confecção do documento golpista, Fernandes
confirma sua ligação com o plano de sequestro e assassinato de autoridades –
incluindo o ministro relator do caso no Supremo, Alexandre de Moraes.
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Próximos passos
Com
todos os réus interrogados, as defesas terão cinco dias para apresentar
requerimentos complementares e pedir novas diligências. Então, defesas e PGR
terão o prazo de 15 dias para
apresentar alegações finais – última manifestação antes da sentença. Caberá ao
ministro relator do caso, Alexandre de Moraes, marcar uma data para a sentença
dos réus. A expectativa é que o Supremo conclua o julgamento do caso entre
agosto e setembro deste ano.
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A farda ainda é depreciada como camuflagem dos golpistas
fracassados. Por Moisés Mendes
Especialistas
que sempre socorrem fascistas em dificuldades, em entrevistas aos jornalões,
apresentaram um argumento previsível para defender a aparição de dois coronéis
fardados em interrogatórios no Supremo.
A
farda, disseram alguns especialistas ouvidos, é indissociável do corpo, da vida
e da imagem dos oficiais. Seria, para usar um clichê de semiótica de boteco,
como se a farda fosse uma segunda pele dos coronéis Hélio Ferreira Lima e
Rafael Martins de Oliveira.
Alexandre
de Moraes determinou que os dois acusados de participar da turma que elaborou o
plano para eliminar Lula, Alckmin e o próprio ministro voltassem à audiência
online sem farda.
E se
alastrou então mais uma controvérsia sobre direitos sempre reclamados pelos
golpistas. Na base de que todos os militares são irreconhecíveis sem essa
segunda pele, por serem fortes demais os simbolismos de todas as representações
do poder armado.
E assim
vai se reafirmando como verdade que militares são diferentes de todo o resto
dos humanos civis. Porque se sabe que dois médicos de um hospital público,
acusados de crimes graves e tornados réus, seriam vistos com estranheza se
aparecessem vestindo seus aventais brancos, quando da audiência diante de um
juiz.
Médicos
réus não usariam sem questionamentos o avental do hospital, com o logotipo no
peito, durante um interrogatório em que eles, e não o hospital, são
considerados criminosos. E o avental é a segunda pele de médicos e enfermeiros.
Os
militares que apareceram fardados pertencem a um grupo que fracassou na
execução de um plano que previa até assassinatos. Fracassaram depois ao não
conseguir manter o plano sob sigilo.
É a
acusação que pesa contra eles, no indiciamento pela Polícia Federal e na
denúncia pela Procuradoria-Geral da República. São profissionais expostos por
um fracasso público, notório, destruidor da imagem da instituição a que
pertencem.
Mas
apareceram fardados para sugerir que tudo o que fazem é pelo Exército. E que,
se falharam na execução do plano que os transformou em réus, devem mesmo assim
apresentar-se como servidores da arma que lhes dá a farda.
Estariam
eles fardados quando da reunião de 22 de novembro de 2022 na casa do general
Braga Netto, quando teriam acertado detalhes do plano, segundo a PF e a PGR?
Teriam se fardado no dia 15 de dezembro, quando deveriam capturar Alexandre de
Moraes e desistiram de levar o sequestro adiante?
Em
quais circunstâncias os militares brasileiros se consideram em missão oficial e
a serviço da pátria, com o uso de fardas e, se possível, de insígnias e
honrarias?
Usam
fardas quando digitalizam pensamentos golpistas? Quando transformam em textos
os planos criminosos elaborados sob o pretexto, apresentado depois ao juiz, de
que são hipóteses levantadas pelo setor da inteligência fardada?
Os dois
coronéis tentaram se proteger na trincheira do Exército que os acolhe, e que
não teve envolvimento de seu comando no plano do golpe. Exército que, segundo o
ministro Alexandre de Moraes, não está em julgamento no STF.
Mas o
então comandante geral das Forças Armadas, o ministro da Defesa Paulo Sérgio
Nogueira, é réu sob a acusação de golpismo. E o general estava acima dos chefes
militares das três armas e de seus subalternos também acusados de participação
na tentativa de golpe.
Está no
site do Ministério da Defesa: “O presidente da República é o comandante supremo
das Forças Armadas, conforme estabelecido no art. 142 da Constituição Federal,
e o ministro de Estado da Defesa exerce a direção superior das Forças Armadas”.
O
organograma no site mostra graficamente essa hierarquia. Mas os oficiais
fardados fizeram o que nem os generais tentaram fazer quando interrogados, como
réus ou testemunhas que se apresentaram em trajes civis. Com a desculpa dos
coronéis de que foram fardados porque estão na ativa.
Os réus
que fracassaram na tentativa de golpe, que foram um fracasso na execução do
plano a eles atribuído e que voltaram a fracassar ao não conseguirem esconder
os crimes que planejaram, esses réus pretendem continuar apresentando-se como
militares defensores da pátria.
Humilham
a própria farda num momento em que a pátria do bolsonarismo que os mobilizou
para o golpe é a pátria americana, e não a brasileira sabotada pelas chantagens
do neofascista Donald Trump.
É
péssima a situação de quem usa fardas hoje no Brasil, e pior ainda para os que
são acusados da autoria de um golpe que, apesar do ardor patriótico, não deu
certo.
Fonte: Por
Caio de Freitas, em Agência Pública/Brasil 247

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