Conflitos
institucionais e intersubjetivos nas universidades públicas
Os
conflitos institucionais e intersubjetivos nas universidades públicas
brasileiras, manifestos na proliferação das intrigas, rivalidades e práticas de
assédio moral, são sintomas visíveis e perversos de um cenário universitário
dominado pela razão dual da dependência. Essa lógica, forjada pela articulação
entre a teoria marxista da dependência e a crítica à razão dualista de
Francisco de Oliveira, explica por que, no interior da universidade pública
brasileira, a excelência e a precarização não apenas coexistem, mas engendram
dinâmicas relacionais de corrosão ética, disputa por migalhas de prestígio e
sobrevivência subjetiva.
O campo
acadêmico, outrora espaço de reconhecimento e partilha, converte-se em
laboratório de sociabilidades instrumentais, onde a palavra do colega, a
amizade de décadas e até mesmo o pacto ético da ciência podem ser capturados e
recodificados como moeda reputacional ou trampolim político.
Essa
dinâmica é agravada, como mostram Nancy Fraser (2022) e Dardot & Laval
(2023), pela financeirização do cotidiano universitário, que converte a
avaliação, o produtivismo e a escassez orçamentária em dispositivos permanentes
de controle e competição. Sob tal regime, a subjetividade acadêmica adoece: o
outro é percebido, cada vez mais, como concorrente, ameaça, rival ou, em muitos
casos, instrumento para a realização de projetos pessoais.
Os
professores seniores, em especial, que conhecem toda a geração e se encontram,
por vezes, aquém das posições que almejavam, são tentados a utilizar suas redes
de amizade e influência não mais para a construção coletiva, mas como
mecanismos de sobrevivência, influência simbólica ou retaliação institucional.
A
inveja, nesses contextos, deixa de ser vício privado e assume o estatuto de
engrenagem invisível do funcionamento institucional – produzindo alianças
efêmeras, traições sutis e silencioso ostracismo dos considerados “inúteis”
para o jogo da reputação.
O
paradoxo brutal dessa engrenagem é que, ao mesmo tempo em que dilacera laços de
solidariedade, ela revela a potência latente da resistência. Como alertam
Sguissardi (2015) e Antunes (2018), a dor do usado, a sensação de injustiça, o
ressentimento silencioso e o isolamento podem ser reapropriados como
combustível para práticas de denúncia, criação de coletivos de apoio,
construção de alianças insurgentes e experiências de recomposição do comum.
Em
muitas IFES, observa-se que os próprios grupos marginalizados – os “usados”,
“preteridos” ou “descartados” – tornam-se catalisadores de iniciativas
inovadoras, fóruns de escuta, redes de saúde mental e projetos de pesquisa
colaborativa, abrindo brechas institucionais para práticas de cuidado e
reciprocidade não capturadas pela lógica meritocrática.
O
diagnóstico crítico revela, portanto, que os conflitos institucionais são
inseparáveis da razão dual da dependência. Nas universidades públicas, a
dualidade se internaliza não apenas nas estruturas, mas nos corpos, nas emoções
e nas relações cotidianas, configurando um ambiente em que excelência e
mesquinhez, produção científica e canastrice, coexistem em tensão permanente. A
universidade capturada é palco de uma luta simbólica entre a instrumentalização
do outro e a aposta na reinvenção dos vínculos solidários.
Ao
examinar as fissuras abertas pelo sofrimento, a análise empírica mostra que as
práticas de resistência não são grandiosas, mas cotidianas: o grupo de escuta
silenciosa para docentes adoecidos, a rede informal de aconselhamento para
estudantes traídos em projetos, o coletivo que denuncia assédios ou conluios, o
professor que se recusa a colaborar com a injustiça e opta pela dissidência
ética, mesmo diante do risco de isolamento. São nesses microgestos, muitas
vezes invisíveis à administração central ou às estatísticas oficiais, que
reside a possibilidade de reconstrução do comum universitário.
Em
última instância, a crítica à razão dualista de Chico de Oliveira se renova, na
chave da razão dual da dependência, ao evidenciar que o conflito institucional,
longe de ser patologia passageira, é elemento constitutivo do regime
universitário dependente. O futuro da universidade pública dependerá, portanto,
da capacidade de transformar a dor dos usados e o ressentimento das relações
instrumentalizadas em plataformas para a denúncia, a crítica e a invenção de
uma nova sociabilidade – onde o comum, por mais fraturado que esteja, possa
voltar a ser horizonte coletivo e princípio de sentido.
A
proliferação de intrigas, rivalidades, panelas e práticas de sabotagem não pode
ser compreendida apenas como fruto de personalidades “tóxicas” ou de casos
isolados de desvio ético. Trata-se de uma patologia institucional que emerge da
própria estrutura de dependência e da precarização sistêmica do trabalho
universitário.
Pesquisas
realizadas pelo DIEESE (2021) e pelo Observatório de Saúde Mental da UFRGS
(2022) apontam que 49% dos docentes de IFES relatam já ter sofrido assédio
moral ou perseguição institucional no ambiente de trabalho, sendo os episódios
mais frequentes associados à disputa por cargos, editais de pesquisa e
reconhecimento acadêmico.
O
adoecimento é uma epidemia silenciosa: em levantamento realizado em 2022, 61%
dos professores da UFPA e 54% da UFMT declararam sintomas de ansiedade,
depressão ou burnout associados ao clima organizacional. Os relatos de
estudantes e técnicos, colhidos em audiências públicas da ANDIFES e da ANPG,
reiteram o quadro: “Hoje, na universidade, tememos mais o colega de sala do que
a instabilidade do salário”, afirma um depoente.
Byung-Chul
Han (2015), ao analisar o impacto do produtivismo e da competitividade no
trabalho intelectual, sustenta que a “sociedade do desempenho” deslocou o eixo
do sofrimento do comando externo para a autoexploração, convertendo cada
sujeito em gestor de si mesmo e de sua angústia.
No
contexto brasileiro, essa lógica é amplificada pela razão dual da dependência:
o ressentimento dos preteridos e a inveja dos não reconhecidos tornam-se
motores de microconflitos, alimentando ciclos de sabotagem, boicote e silêncio
institucional. Paulo Arantes (2004) já advertia que a universidade brasileira
pós-milagre econômico estava condenada a viver sob o signo do “desencontro
estrutural”, onde projetos coletivos sucumbem ao cálculo mesquinho e à
politização dos afetos negativos.
A
pesquisa empírica mostra que, mesmo entre professores seniores, reconhecidos em
suas áreas, a sensação de não ter chegado ao topo da hierarquia desejada pode
desencadear formas sutis de manipulação, isolamento de colegas, retaliações
simbólicas e, em casos extremos, bloqueio deliberado de projetos de jovens
pesquisadores.
O poder
institucional, assim, passa a ser exercido não só pela autoridade formal, mas
pelo controle dos fluxos de informação, acesso a redes e uso instrumental das
amizades. A análise de Belluzzo (2017) sobre o papel das “panelas” acadêmicas e
do capital social nas progressões de carreira revela que, sob o regime da
escassez e da dependência, a luta por posições se dá mais no terreno do vínculo
pessoal do que no reconhecimento objetivo do mérito, reproduzindo
desigualdades, frustrações e ressentimentos crônicos.
Esse
ambiente, contudo, não é homogêneo nem imutável. Os dados do Observatório do
Comum (2023) revelam que a proliferação de coletivos de escuta, grupos de apoio
a docentes adoecidos, redes de enfrentamento ao assédio e iniciativas de
justiça restaurativa cresceram 58% entre 2018 e 2023 em IFES do Norte, Nordeste
e Centro-Oeste.
Em
muitas universidades, fóruns de dissidência, assembleias deliberativas
horizontais e projetos de cuidado institucional têm sido fundamentais para
romper o ciclo de silenciamento e revitimização das vítimas de intriga e
perseguição.
Florestan
Fernandes, já em sua reflexão sobre a universidade e a ética pública,
argumentava que o espaço acadêmico só poderia cumprir sua missão democrática se
conseguisse, continuamente, reconstruir laços de confiança, reconhecimento e
solidariedade, combatendo a tendência à oligarquização e à degeneração dos
vínculos sociais.
É nesse
horizonte que se inscrevem as propostas de reconstrução institucional:
fortalecimento das ouvidorias independentes, ampliação dos canais de denúncia e
mediação, promoção de formações regulares sobre ética e convivência, e,
sobretudo, a valorização dos espaços de diálogo coletivo, capazes de recompor a
confiança e reconstituir o comum para além das divisões impostas pela lógica
dual e pelo capital fictício.
Em
síntese, os conflitos institucionais – mesmo quando brutais e dolorosos – podem
ser o ponto de partida para a emergência de outra universidade: uma instituição
capaz de nomear e escutar o sofrimento, enfrentar as tramas da intriga com
justiça restaurativa e reconstruir, a partir das fraturas, novas formas de
pertencimento. Em meio à crise, a universidade pública mantém viva, por baixo
da superfície das disputas e traições, a aposta ética e política de um comum
por vir.
A
análise crítica do fenômeno das intrigas não pode prescindir do exame de suas
raízes históricas e sociológicas. A literatura sobre o ethos acadêmico
brasileiro, de autores como Sérgio Miceli e Simon Schwartzman, evidencia que a
transição inacabada da universidade elitista para a universidade de massas
produziu uma ambiguidade constitutiva: de um lado, o valor simbólico da
excelência e da meritocracia; de outro, a multiplicação das frustrações, da
sensação de desamparo e da luta encarniçada por reconhecimento. A massificação
não democratizou plenamente o acesso a oportunidades, mas reconfigurou os
circuitos de exclusão e a lógica dos conflitos intersubjetivos.
Nesse
cenário, a ascensão do produtivismo acadêmico – impulsionado por rankings,
métricas e plataformas de avaliação – exacerba a insegurança subjetiva e
estimula condutas defensivas, como o fechamento de grupos, o boicote velado a
rivais e a recusa em partilhar dados e resultados. O fenômeno da
“burocratização da ciência” converge com o aumento do isolamento institucional,
produzindo uma universidade cada vez menos propensa à solidariedade e mais
vulnerável a práticas de intriga e retaliação.
A
financeirização, por sua vez, não age apenas na esfera macro do orçamento ou do
financiamento público, mas infiltra-se nas rotinas, afetos e desejos dos
sujeitos universitários. Como assinala Leda Paulani (2017), o capital fictício
transfigura a universidade em ativo, promovendo uma competição incessante por
fundos, bolsas, editais e parcerias, enquanto a precarização da carreira
docente acirra o ressentimento e o medo. Não por acaso, a literatura
psiquiátrica aponta para o crescimento de quadros de ansiedade, depressão e
síndrome do pânico associados ao ambiente universitário, muitas vezes
encobertos pelo tabu do fracasso e pela ideologia do sucesso individual.
Importa
ressaltar que os conflitos intersubjetivos não se limitam às esferas do corpo
docente. Entre técnicos e estudantes, o sentimento de abandono, o medo da
exposição e a experiência do silêncio forçado aparecem com força nos relatos de
audiências públicas, fóruns de representação e conselhos universitários.
O
próprio movimento estudantil, frequentemente fragmentado e capturado por
interesses paroquiais, reproduz dinâmicas de exclusão, boicote e disputa por
legitimidade simbólica — muitas vezes sob o manto de uma retórica de pluralismo
que encobre a competição por recursos, cargos e notoriedade.
A
literatura internacional confirma que tais fenômenos não são exclusivos do
Brasil. Autores como Richard Hall e Marina Warner descrevem o impacto da
precarização, da obsessão por métricas e da cultura do “publish or perish” nas
universidades do Reino Unido e dos Estados Unidos, salientando o aumento dos
casos de assédio moral, isolamento, burnout e a corrosão dos vínculos de
confiança.
Contudo,
o traço distintivo do caso brasileiro reside na permanência da estrutura dual,
na dependência dos fundos públicos e na convivência ambígua entre excelência
internacional e miséria cotidiana, o que torna o ambiente especialmente fértil
para a proliferação de conflitos institucionais e intersubjetivos.
Retomando
o fio do argumento, cabe enfatizar que a racionalidade dualista, ao naturalizar
a coexistência entre excelência e precarização, produz um campo de batalha
simbólico no qual todo gesto de generosidade pode ser interpretado como
cálculo, toda recusa como afronta e toda diferença como ameaça. O medo do
ostracismo, a necessidade de pertencimento e o receio do fracasso compõem a
gramática afetiva da universidade capturada, onde a solidariedade autêntica só
pode florescer nas brechas, nos interstícios, no gesto minoritário que desafia
a lógica dominante.
Nesse
contexto, as estratégias de resistência não se limitam à denúncia ou à busca de
reconhecimento institucional, mas envolvem práticas cotidianas de cuidado,
construção de redes informais de solidariedade e aposta em formas alternativas
de sociabilidade. Os grupos de escuta, as redes de proteção a vítimas de
assédio, as assembleias horizontais, os projetos de pesquisa colaborativa e as
experiências de autogestão constituem laboratórios vivos de reinvenção do comum
– experiências que, mesmo minoritárias, desafiam a naturalização do cinismo e
da resignação.
Em
última análise, a aposta numa universidade capaz de superar o impasse da razão
dual da dependência depende da capacidade de reconhecer o sofrimento como
índice de estrutura e não como acidente. É preciso nomear a dor dos usados,
escutar o silêncio dos preteridos, dar corpo e palavra aos que experimentam o
ressentimento e o isolamento como condição de vida. Só assim será possível
articular uma crítica que vá além do lamento, produzindo ferramentas para a
transformação efetiva das relações institucionais e intersubjetivas.
O
futuro da universidade pública, nesse horizonte, será jogado no campo aberto da
luta entre a reprodução da barbárie cotidiana e a emergência de novas formas de
solidariedade, pertencimento e justiça. Recusar o niilismo não significa negar
a gravidade da crise, mas afirmar a potência de uma crítica que, ao nomear as
fraturas, abre espaço para a invenção do comum e a aposta numa sociabilidade
menos excludente, mais justa e verdadeiramente democrática.
Assim,
os conflitos institucionais e intersubjetivos, longe de serem patologia
passageira, constituem a matéria viva a partir da qual poderá emergir, da dor e
da coragem dos que se recusam ao cinismo, uma outra universidade – menos
cínica, menos instrumental, mais aberta ao comum.
Essa
tarefa, política e ética, exige reconhecer que a luta pelo pertencimento e pela
justiça não se separa da crítica à razão dual da dependência, nem da recusa
ativa da precarização cotidiana. Neste chão ambíguo, a universidade pública
continuará a ser campo de disputa, mas também de invenção e esperança, enquanto
houver quem ouse.
Fonte:
Por João dos Reis Silva Júnior, em A Terra é Redonda

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