A
luta de mulheres para esclarecer esquema de adoções em hospital de São Paulo
Alessandra
Iacchetti tinha apenas 16 anos de idade quando perdeu o pai e a mãe em um
período de oito meses. Ela estava sozinha em seu apartamento, lidando com o
luto e quase totalmente desassistida, quando tudo ficou ainda mais confuso.
Uma
mulher chamada Elza, que ela mal conhecia, telefonou para dizer que
"precisava contar uma coisa" e que "não podia ir para o
túmulo" sem fazê-lo. A mulher havia sido vizinha de mãe de Alessandra no
bairro da Vila Romana, na Zona Oeste de São Paulo. O que ela tanto precisava
desabafar mudou a vida de Alessandra para sempre.
"Ela
revelou que eu era adotada", lembra Alessandra. Além de uma adolescente
órfã tentando se virar para sobreviver no dia a dia, ela precisaria lidar com a
notícia e começar uma jornada pessoal para descobrir suas origens.
"Sua
mãe não queria que você soubesse que foi adotada. Ela descobriu que não podia
engravidar quando perdeu um bebê porque estava com toxoplasmose", disse
Elza. Segundo ela, Alessandra fora adotada, de forma informal e ilegal, no
Hospital Sorocabana, no bairro da Lapa.
"A
Elza contou que um homem com contatos dentro do hospital fazia a 'ponte' para a
adoção. Eu seria entregue para a minha mãe adotiva já logo depois do
parto", conta Alessandra. "Foi aí que apareceu uma moça que estava
com quatro meses de gravidez e não queria ficar com o filho. Minha mãe foi
apresentada a ela e combinou tudo." Segundo Elza, a mãe biológica de
Alessandra se chamava Maria e era de Minas Gerais.
A
certidão de nascimento de Alessandra diz que ela nasceu, em um parto feito em
casa, no dia 9 de fevereiro de 1992. Alessandra sabe que a primeira informação
é mentirosa e que a segunda, muito provavelmente, também. Elza garantiu que
compartilhou tudo o que conhecia sobre o caso. Era pouco, mas talvez o
suficiente para Alessandra investigar seu passado, não fosse pelo apagamento de
registros, o descaso e a mais absoluta bagunça envolvendo o Hospital
Sorocabana.
Inaugurado
em 1955, o Hospital Sorocabana foi construído em um terreno do governo do
estado e durante décadas serviu de referência para os moradores da Zona Oeste
de São Paulo. Era administrado pela Associação Beneficente dos Hospitais
Sorocabana, mas se afundou em problemas financeiros, má administração e
suspeitas de corrupção em sua gestão. Fechou as portas em 2010 e só foi
parcialmente reaberto em 2020.
Em
2021, a prefeitura de São Paulo recebeu a transferência de titularidade do
prédio do hospital. Desde então, vem promovendo reformas que, teoricamente,
ampliarão sua capacidade de atendimento ao público.
Mesmo
com todo o imbróglio jurídico e administrativo envolvendo o Sorocabana, sua
reabertura ofereceu a oportunidade para que Alessandra acessasse seus arquivos
e, quem sabe, descobrisse algo sobre seus pais biológicos. Não foi o que
aconteceu.
"Um
funcionário da Subprefeitura da Lapa disse que eu realmente tinha direito a
acessar os documentos. Que o hospital foi fechado do jeito que estava e que
provavelmente os arquivos estavam lá dentro. Ele explicou que o certo seria eu
entrar com uma ação judicial, mas que demoraria muito e talvez fosse mais
rápido eu pular o muro e procurar eu mesma", conta Alessandra.
Esse
limbo documental fica claro quando se tenta buscar qualquer informação sobre o
acervo de prontuários do hospital. A BBC News Brasil entrou em contato, mais de
uma vez, com a prefeitura e o governo estadual de São Paulo, mas ninguém soube
informar onde estão os documentos ou se eles ainda existem. Também não houve
orientação sobre como, exatamente, Alessandra poderia tentar encontrá-los.
Sem
ajuda dos meios oficiais, Alessandra passou a compartilhar sua história nas
redes sociais e a frequentar grupos de pessoas com casos parecidos. De início,
sem descobrir nada relevante. Até que ela conheceu Eliane.
"Quando
eu tinha uns 10 anos, em 1990, minha mãe ficou grávida de novo. Ela morava na
casa de uma família e decidiu dar a criança porque não tinha condições de
cuidar dela. Além disso, meu pai não era uma pessoa boa. Ele espancava a gente
e vivíamos meio escondidos, fugindo", conta Eliane Gomes Marques.
Na
época, Eliane tinha um irmão, já falecido, dois anos mais velho. Sua mãe,
Erenilda Gomes dos Santos, estava separada do pai e engravidou do companheiro
de outro relacionamento.
Logo
apareceram interessados no bebê que estava a caminho. "Um casal de
conhecidos da dona da casa onde minha mãe morava e trabalhava ficou sabendo da
história e se ofereceu para ficar com a criança", conta Eliane. "Era
uma menina e, quando ela nasceu, o casal foi lá no hospital buscá-la".
Segundo
Eliane, o casal teria saído do hospital com o bebê sem maiores dificuldades,
como se fossem seus pais biológicos. E o hospital, no caso, era o Sorocabana.
Alessandra
e Eliane se conheceram e, por algum tempo, alimentaram a expectativa de que
fossem irmãs. Afinal, as histórias envolviam o mesmo hospital e datas muito
próximas. Alessandra não sabe quando nasceu, e Erenilda também não lembra a
data de nascimento exata da filha dada para adoção. O que dá para afirmar com
certeza é que ambos os casos aconteceram no início da década de 1990.
Mas uma
outra coincidência tornou tudo ainda mais intrigante: a mãe adotiva de
Alessandra era italiana. E Erenilda sempre achou que o casal que levou sua
filha também era italiano.
"Ela
(Erenilda) não consegue ter certeza se eram italianos de fato. Mas, pelo tipo
físico, o modo de se expressar e o jeito que falavam, ela sempre suspeitou que
sim", diz Eliane. "Tem uma única pessoa que está viva até hoje e
poderia esclarecer o que aconteceu. Mas ela insiste muito em não irmos atrás
dessa história. Fala para a gente não mexer com isso."
A
família segue em busca do paradeiro da irmã de Eliane, mas, assim como
Alessandra, esbarra no desaparecimento do espólio do Hospital Sorocabana.
Desaparecimento que, além de descaso, pode ocultar algo maior: um possível
esquema paralelo de adoções.
Alessandra
soube de pelo menos mais dois casos muito parecidos com o dela envolvendo
clínicas e hospitais da região da Lapa. "Uma dessas moças também tinha
pais adotivos italianos."
Alessandra
está falando de Clara Picco. Ela conta que foi adotada, em 1973, por italianos
em uma clínica na Lapa. "Na minha certidão, consta que eu nasci em casa.
Mas isso não é verdade e não faço ideia de quem sejam meus pais biológicos. Meu
maior desejo hoje é conhecer minhas origens", diz Clara. Para ela, a
clínica onde nasceu funcionava como fachada para intermediar adoções conduzidas
ilegalmente.
Por
meio de Clara, a BBC News Brasil chegou a outro caso de adoção envolvendo o
bairro da Lapa e, possivelmente, o Hospital Sorocabana. Adriane Gonçalves
também descobriu que seus pais biológicos eram, na verdade, adotivos.
"Acredito
que cheguei até meus pais adotivos por meio de uma intermediária que
supostamente arrumava pais para bebês abandonados ou indesejados", diz
Adriane.
Segundo
sua certidão de nascimento, ela teria nascido no Sorocabana em 19 de abril de
1968. Mas ela não tem certeza se realmente nasceu lá porque, quando tentou
descobrir algo sobre seus pais biológicos, se viu em uma situação parecida com
a das outras personagens desta reportagem.
"Na
época em que decidi procurar por meus pais biológicos, quando tinha 25, 26
anos, eu fui até o Sorocabana. Falei que queria os registros das mães que deram
à luz no dia em que eu [supostamente] nasci. Me disseram que infelizmente houve
um incêndio e os arquivos se perderam", conta Adriane. "Foi esse o
'cala a boca' que me deram".
Também
no caso de Adriane, impera o quase absoluto silêncio sobre suas origens. Sua
mãe ainda está viva, mas se recusa a contar a verdade. O único fiapo de
informação que Adriane tem é, na verdade, uma suspeita.
"Parece
que a intermediária se chamava dona Chica", conta. "O nome dela é
muito presente nos meus diários de bebê. Tenho a memória de ela ir à minha casa
levar presentes. Lembro dela sorrindo... Tenho guardado isso. É engraçado,
porque parece que foi a primeira pessoa que eu vi quando nasci e ficou
registrada."
"Enquanto
meus pais adotivos estavam vivos, eu nunca suspeitei de nada. Mas hoje, olhando
para trás, vejo várias brechas na história. Por exemplo, a de que minha mãe
tinha 48 anos quando eu nasci", conta Alessandra.
"A
moça que ficou com meu pai no hospital antes de ele morrer disse que ele não
parava de falar 'minha filha sempre foi 100% honesta comigo. Eu não fui 100%
honesto com ela'."
Fonte:
BBC News Brasil

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