sábado, 12 de julho de 2025

PM da ativa dribla regimento e comanda grupo de segurança privada em SP

O subtenente Claudiano de Carvalho, de 50 anos, recebeu R$ 7,6 mil líquidos da Polícia Militar do Estado de São Paulo em maio, mas essa não é sua única fonte de renda como policial da ativa. Ele é sócio de ao menos cinco empresas, sendo uma delas de segurança privada: a Domain Premium Segurança Ltda. 

Apesar de não ser ilegal que um PM de São Paulo seja sócio de uma empresa, desde que não a gerencie ou administre, registros obtidos pelo Intercept Brasil mostram que Carvalho é muito menos um investidor e, sim, um dos responsáveis diretos pela Domain Premium Segurança.

regimento disciplinar da corporação proíbe que policiais militares da ativa prestem serviços como segurança particular, mas permite que atuem como sócios de empresas – inclusive de segurança privada.

Mas a norma só libera policiais a serem acionistas (no caso de sociedades anônimas) ou cotistas (em relação a empresas limitadas), ou seja, investidores das empresas. Portanto, não podem fazer a gestão dos negócios nem tomar decisões na administração.

“O que você não pode, em tese, é ser uma figura ativa, trabalhar para ter atividade remunerada, além de ser servidor público”, explica Yasser Gabriel, professor da FGV Direito São Paulo, sobre o que prevê a legislação a respeito de funcionários públicos serem sócios de empresas.

No caso do subtenente, o grupo de empresas que participa – e inclui a Domain Premium Segurança – faz referência a seu sobrenome: Grupo C. Carvalho ou Grupo Carvalho. O site do conglomerado, inclusive, tem como titular do domínio o próprio Claudiano. 

O endereço indicado no portal como “Sede Central (Operacional e Administrativa do Grupo)” é o mesmo que o policial Carvalho informou como sua residência em documentos de registro na Junta Comercial das empresas Domain Premium Segurança e Domain Premium Facilities. Os demais sócios informaram um endereço diferente.

Há três meses, em março de 2025, Carvalho também postou, no perfil pessoal do LinkedIn, que estava à procura de supervisor para atuar na “área de facilities”, ou seja, dar suporte às atividades da empresa. Apesar de não mencionar o nome da companhia contratante, ele compartilha um número de telefone que consta no site do Grupo C. Carvalho.

Além disso, em uma reclamação trabalhista feita em 2024 contra uma das empresas do grupo que presta serviços terceirizados, Carvalho assina uma procuração a um escritório de advocacia como “sócio administrador” e consta como o representante que assina o termo de rescisão de contrato de uma auxiliar de limpeza.

No site oficial, a Domain informa que o grupo, que também detém controladores de acesso e porteiros, presta serviços para 27 condomínios, entre residenciais e comerciais, e 16 empresas, entre elas a rede de restaurantes Paris 6, a Carrera Chevrolet e a Cruz Vermelha Brasileira, entre outros. 

No registro da empresa na Junta Comercial, Carvalho divide a metade das cotas avaliadas em R$ 200 mil com o ex-soldado Daniel Amarins de Sá Mendes, de 39 anos, que pediu exoneração da PM em 2023 e consta como administrador da empresa. Mendes chegou a ser aprovado novamente em concurso para soldado da PM no ano passado, mas não tomou posse.

Ambos ingressaram na sociedade em 5 de dezembro de 2024, após a saída do então cabo Reginaldo Araújo dos Santos, de 42 anos, que havia aberto a Domain em 2021, como sócio-administrador, enquanto atuava na Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota, tropa de elite da PM paulista. 

Carvalho e Mendes também ingressaram como sócios da Domain Premium Facilities Ltda., um braço da Domain Segurança para monitoramento eletrônico, com cotas de R$ 4,25 mil cada um. Além deles, o cabo da ativa Deivid Maikon Pedrosa da Silva, de 32 anos, entrou na sociedade com uma porcentagem menor de cotas – 15%, o equivalente a R$ 1,5 mil.

No ano passado, Araújo concorreu – e não se elegeu – a vereador pelo PL em Taboão da Serra, cidade na Grande São Paulo, com apoio do então deputado federal Coronel Telhada, do PP de SP, hoje subprefeito do bairro da Lapa na capital paulista, e do deputado estadual Capitão Telhada, do mesmo partido – pai e filho, respectivamente. 

Na época, ele não informou na declaração de bens ao Tribunal Regional Eleitoral, TRE, que tinha cotas em empresas. A assessoria do tribunal disse ao Intercept que isso só seria analisado caso tivesse sido feita uma representação contra Araújo. “Eventual irregularidade com relação à não inclusão de determinado bem na declaração do candidato poderá ser objeto de ação própria, não sendo a análise feita, a princípio, no processo de registro de candidatura”, afirmou o TRE, em nota. 

O cabo pediu exoneração da Polícia Militar em fevereiro deste ano, segundo publicação do Diário Oficial. Mas, no perfil da Domain Premium Segurança no Instagram, ele ainda aparece como CEO. O Intercept tentou contato com Araújo, por e-mail, mas não teve retorno.

Procuramos o Grupo C. Carvalho via WhatsApp, mas o atendente disse que “não há policiais na gestão da empresa”. O Intercept insistiu para falar com os sócios e, em seguida, recebemos a ligação de um número desconhecido em que um homem, que se identificou como Daniel, disse ser o responsável pela empresa e que não seria possível falar com Claudiano de Carvalho – em seguida, ele encerrou a ligação.

Já a PM de São Paulo informou, após contato da reportagem, que vai investigar o caso. A corporação disse que “abriu uma investigação interna” e informou que o regulamento disciplinar da PM proíbe que militares da ativa atuem como administradores ou gerentes em empresas de segurança privada. “Se forem identificadas irregularidades, as punições serão aplicadas conforme a legislação disciplinar da instituição”, garantiu a PM.

<><> Pesquisadores veem conflito de interesses em atuação privada

A atuação de PMs em empresas de segurança privada não é um caminho incomum, aponta Cleber Lopes, professor e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança e Segurança, LEGS, da Universidade Estadual de Londrina, a UEL.

“Às vezes, eles começam no segundo emprego, se aproveitam do status que têm como policiais, da rede de contatos, de uma série de circunstâncias que os favorecem na competição dentro desse mercado, e, quando as coisas começam a dar certo e a renda principal acaba resultando da empresa do negócio que eles abriram, eles saem da polícia”, explica Lopes. “Mas, ainda assim, para eles é muito importante ter um sócio, ou ter diretores, pessoas que ainda são vinculadas ao setor de segurança pública, porque isso é fundamental para o funcionamento dos negócios”.

O que também facilita essa atuação privada é que cabe às corporações policiais regulamentar e fiscalizar a presença de agentes no setor, uma vez que o Estatuto da Segurança Privada e da Segurança das Instituições Financeiras, lei que rege os serviços de segurança privado sancionada em 2024, não tem proibição expressa sobre o assunto. Além disso, a norma ainda aguarda regulamentação.

A Domain, empresa ligada a Carvalho que atua em segurança privada, por exemplo, tem alvará de funcionamento expedido pela Polícia Federal, que é o órgão responsável por fiscalizar empresas de segurança privada. À reportagem, a assessoria da PF disse que cabe à PM de São Paulo “analisar e tomar as providências impostas em seu Regimento Disciplinar às faltas cometidas por seus pares”.

O professor Lopes sinaliza que até houve discussão no projeto de lei do estatuto para se penalizar integrantes das forças de segurança pública em empresas de segurança privada, mas ocorreu “uma enorme reação do setor de segurança pública, dos parlamentares que fazem a defesa dos policiais no Congresso, e isso foi retirado da lei”.

Pós-doutorando em Psicologia pela Universidade de São Paulo, USP, Adilson Paes de Souza é tenente-coronel da reserva da PM paulista e afirma que já negou propostas de trabalho em empresas de segurança privada por entender que há um conflito ético. 

“Se uma pessoa oferece lucro com segurança privada é porque a segurança pública não é boa. E, ao mesmo tempo, essa pessoa recebe do estado para promover segurança pública. Eu vejo um conflito porque a segurança privada precisa de uma segurança pública deficitária para prosperar”, afirma.

Os dois pesquisadores avaliam que as polícias toleram a participação de policiais na segurança privada por meio de uma normativa dúbia para se eximir de discutir melhores condições de trabalho. 

Lopes menciona que a disposição da escala de trabalho de 12×36 – ou seja, 12 horas de trabalho seguidas de 36 horas de descanso – facilita a busca por bicos para complementação de renda. Ele ainda pontua que, em vez de aumentar salários, os governos concedem  incentivo oficial para policiais trabalharem no horário de folga, como as diárias especiais por jornada extraordinária e as operações delegadas, no caso de São Paulo. 

“O bico é encarado pelas forças de segurança pública como uma política de remuneração de pessoal”, enfatiza Lopes. “O bico policial só se torna um problema para as organizações de segurança pública quando escândalos eclodem, quando situações de conflito de interesse se tornam muito evidentes, como, por exemplo, o caso dos policiais que faziam a segurança daquele delator do PCC que foi assassinado em Guarulhos”.

¨      Governo Tarcísio: privatismo e repressão policial. Por José Manoel Gonçalves

Em São Paulo, a locomotiva econômica do Brasil, o modelo de gestão atual revela um viés cada vez mais nítido: um governo que pune a pobreza e premia o capital privado. Essa contradição se escancara em duas frentes simultâneas: o avanço feroz de uma política de privatizações com interesses empresariais escancarados, e uma política de segurança pública violenta, dirigida por uma figura sob suspeita de enriquecimento ilícito.

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Ambas as frentes têm algo em comum: desconsideram a população mais vulnerável. Por um lado, a repressão policial é seletiva e sistemática, concentrando-se nas periferias, sob o comando de um secretário cuja integridade está sob questionamento. Por outro, projetos bilionários de infraestrutura ferroviária se desenham sem qualquer conexão com a necessidade locomotiva do povo, nem o desenvolvimento comercial e industrial dos pequenos.

Segundo apuração da Agência iNFRA, o governo paulista planeja reutilizar trechos ferroviários desativados, transferindo sua gestão à iniciativa privada, por meio de parcerias com empresas do setor de transporte e construção pesada. O pacote estimado em quase R$ 200 bilhões contempla linhas que conectam o interior à capital e ao litoral — mas, à luz do modelo proposto, sua finalidade está longe de atender aos interesses da maioria da população.

Ao ignorar as reais demandas de mobilidade da população periférica e dos pequenos comerciantes e industriais, o governo restringe o uso público da infraestrutura ferroviária a grandes empreendimentos orientados por retorno financeiro, e não por justiça social ou reequilíbrio regional. Trata-se de um movimento típico do privatismo seletivo, no qual a “eficiência” serve apenas ao lucro de poucos.

<><> Segurança para quem?

Paralelamente, São Paulo segue mergulhado em uma política de segurança truculenta, sob liderança do secretário Guilherme Derrite — investigado pelo Ministério Público por movimentações financeiras incompatíveis com seus rendimentos. A Polícia Militar, sob sua gestão, tem protagonizado operações marcadas por mortes, violações de direitos e ausência de transparência. Os alvos? Jovens negros, pobres e moradores das franjas da metrópole.

Essa repressão não ocorre por acaso. É parte de um projeto político que retira direitos com uma mão e impõe medo com a outra. Ao transformar as periferias em territórios de exceção e os centros urbanos em vitrines para investidores, o governo constrói um estado policial para vigiar os pobres e um estado corporativo para servir aos ricos.

O discurso de modernização esconde o desmonte de um possível projeto nacional de mobilidade e desenvolvimento regional inclusivo. As ferrovias — historicamente instrumentos de interiorização do progresso — são agora moldadas como produtos para investidores internacionais, ignorando que pequenas e médias empresas respondem por mais de 70% dos empregos no estado, segundo dados do Sebrae-SP.

Não se trata de ser contra a iniciativa privada. Mas de exigir que o interesse público venha primeiro. Ferrovias devem servir ao povo, encurtando distâncias, promovendo integração regional e impulsionando a economia real — aquela construída por milhões de trabalhadores, empreendedores e comunidades esquecidas.

<><> Qual projeto de estado queremos?

Entre repressão e privatismo, o governo paulista mostra qual é seu verdadeiro norte: conter e silenciar os pobres enquanto entrega o patrimônio público ao capital privado. Se há R$ 200 bilhões disponíveis para projetos ferroviários, por que não priorizar o transporte de massa nas periferias, o escoamento da produção dos pequenos e o fortalecimento dos polos industriais regionais?

A locomotiva de São Paulo poderia estar puxando o Brasil rumo a um futuro mais justo e equilibrado. No entanto, escolheu trilhos que favorecem poucos e excluem muitos.

 

Fonte: Por Jeniffer Mendonça, em The Intercept/Jornal GGN

 

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