Para
uma nova Sociologia do Amor
Em um
mundo caracterizado pela racionalidade de mercado e pela incessante
mercantilização, a emoção há muito é vista como uma esfera de liberdade.
Aparentemente espontâneas e anárquicas, nossas vidas emocionais são construídas
como externas à esfera da produção – o oposto do trabalho.
Mas,
como muitos críticos culturais apontaram, nossos sentimentos são organizados de
maneiras específicas. O termo de Raymond Williams, “estrutura de sentimento”,
descreve como as emoções são profundamente sociais e políticas, em vez de
inerentes à personalidade autêntica dos sujeitos. Ainda assim, há algo
intrigante na noção persistente de que o sentimento deveria, idealmente, ser
separado das relações econômicas. Especialmente quando se trata do amor, esse
sentimento mais valorizado, temos a sensação de que ele é a antítese das
relações capitalistas.
O amor
supostamente tem muito trabalho a fazer no mundo atual. Criar filhos saudáveis
e felizes, compensar trabalhos exaustivos e estressantes, dar sentido a vidas
que de outra forma seriam vazias. A família, baseada no par romântico, não é
apenas uma forma de sociabilidade, mas uma aspiração, algo que supostamente
pode satisfazer todas as nossas necessidades e desejos. O amor é cobrado em
excesso, mas frequentemente falha em cumprir suas promessas.
As
mulheres heterossexuais, em particular, tendem a se decepcionar com o casamento
na realidade e as relações familiares, percebendo que seus parceiros masculinos
costumam se retrair emocionalmente. Em seu panfleto de 1975, Wages Against
Housework, a feminista marxista Silvia Federici escreve: “Eles chamam de amor,
nós chamamos de trabalho não remunerado”. O que significaria teorizar o amor
como uma forma de trabalho? Como podemos pensar nossa dependência emocional dos
outros em termos políticos, e não como expressões de uma subjetividade
individual e interior? Quero propor o conceito de reprodução emocional como uma
forma de abordar como a reprodução social está intimamente ligada à emoção e
aos laços afetivos íntimos.
Assim
como as pessoas precisam de comida, água e abrigo, todos temos necessidades
emocionais. Para continuarmos funcionando – e, crucialmente, para continuarmos
trabalhando – essas necessidades precisam ser atendidas de alguma forma. No
entanto, até que ponto essas necessidades são realmente satisfeitas depende da
posição de cada um dentro das relações e hierarquias sociais.
De modo
típico, aqueles na base da hierarquia social muitas vezes sobrevivem com o
mínimo, enquanto os mais privilegiados tendem a ter suas necessidades de
conforto emocional atendidas por outros. A maioria de nós só pode aspirar a uma
vida em que nossas necessidades emocionais sejam plenamente atendidas – onde
nosso trabalho seja prazeroso e gratificante, onde tenhamos tempo suficiente
para relaxar e nos divertir, e onde outras pessoas possam satisfazer nossos
desejos de intimidade e calor emocional. Mas essa aspiração a um ideal
emocional nunca totalmente alcançado tem, em si mesma, uma importante função
política.
Uso o
termo reprodução emocional para nomear os processos pelos quais as necessidades
emocionais são constituídas, normalizadas e satisfeitas. A reprodução emocional
é a manutenção do bem-estar emocional e a reprodução do investimento emocional
nas ideologias dominantes. Como as necessidades emocionais só são satisfeitas
por meio de formas ideológicas, esses processos costumam ser uma coisa só.
Neste
mundo, muitas vezes só nos sentimos verdadeiramente confortáveis quando
investimos no quadro ideológico dominante da sociedade. Partindo do princípio
de que não há nada natural ou inevitável na organização de nossas vidas
emocionais, quero questionar como certas necessidades e desejos são
constituídos como fundamentais para “a boa vida” e como a satisfação emocional
de algumas pessoas é vista como mais importante que a de outras.
As
feministas há muito percebem como as mulheres são frequentemente levadas a
sacrificar seus próprios desejos para atender às necessidades dos outros –
especialmente maridos, filhos e outros familiares. Mas também podemos refletir
sobre como certas necessidades emocionais feminizadas já são constituídas como
a necessidade de cuidar dos outros e que recompensas emocionais as mulheres
podem obter por serem “especialistas em amor” – realizando o trabalho de zelar
e cuidar dos outros. Dessa forma, podemos pensar nos investimentos subjetivos
que a reprodução emocional pode exigir e em como o trabalho reprodutivo molda e
naturaliza certas formas de subjetividade.
Entendendo
as necessidades emocionais como historicamente variáveis, e não como dadas
naturalmente ou como expressões de uma interioridade subjetiva autêntica,
podemos começar a teorizar como essas necessidades e as relações que as
satisfazem são historicamente específicas. Na transição para o capitalismo, com
uma distinção cada vez mais clara entre vida profissional e vida privada, a
família passou a ser fortemente associada à satisfação emocional – nosso
refúgio em um mundo sem coração.
Durante
o século XIX, a justificativa ideológica para o casamento passou a ser baseada
no amor, e não no status ou em conexões sociais. Esperava-se cada vez mais que
os pais, e especialmente as mães, formassem laços emocionalmente intensos com
seus filhos. A emoção tornou-se fortemente feminizada, já que o ideal de
feminilidade (burguesa e branca) incluía criar uma esfera de amor para a qual
os homens pudessem retornar ao fim do dia, onde o mundo externo das relações
impessoais de competência pudesse desaparecer, e o indivíduo fosse valorizado
por si mesmo.
No
entanto, as relações domésticas foram apagadas na construção burguesa do
indivíduo possessivo implicitamente masculino, que, como escreve C.B.
MacPherson, é visto como “essencialmente o proprietário de sua própria pessoa
ou capacidades, não devendo nada à sociedade por elas”. Dessa forma, o fato de
que essas capacidades dependiam do trabalho das mulheres na esfera doméstica
foi apagado socialmente.
À
medida que as normas familiares burguesas se generalizaram no início do século
XX, esses ideais passaram a impactar também as famílias da classe trabalhadora,
embora de forma desigual. Embora muitas famílias trabalhadoras não conseguissem
viver plenamente esses ideais, eles criaram um horizonte aspiracional, onde “a
boa vida” de satisfação emocional era cada vez mais imaginada como existindo
exclusivamente na esfera doméstica.
A vida
familiar tornou-se assim impregnada de significados emocionais, sendo imaginada
como o único local das necessidades emocionais. Ao mesmo tempo, relações
não-domésticas foram construídas como menos importantes e até prejudiciais –
ameaçando a santidade da família nuclear e a exclusividade de seus laços
emocionais.
Sob o
capitalismo, a reprodução emocional é uma questão altamente privatizada, no
sentido de que principalmente relações românticas e familiares íntimas e
exclusivas são vistas como levando a uma vida emocionalmente satisfatória.
Os
laços emocionais são construídos como um jogo de soma zero, onde a intensidade
da emoção é marcada pela exclusividade da relação. Ama-se apenas o próprio
parceiro, os próprios filhos. O amor aparece como um recurso finito, que é
diminuído e desvalorizado quando se espalha fora de seu domínio próprio.
Essa
construção da esfera doméstica está intimamente relacionada à reformulação da
feminilidade durante a era vitoriana, quando as mulheres foram cada vez mais
levadas a aspirar ao ideal do “anjo do lar” – uma figura que poderia ser mãe
tanto para seu marido quanto para seus filhos.
Embora
esse ideal tenha mudado significativamente ao longo do século XX, elementos
dele permanecem nas construções contemporâneas da família. A feminilidade
contemporânea é marcada por contradições, já que as mulheres são cada vez mais
solicitadas a serem tanto cuidadoras femininas, atendendo às necessidades
emocionais dos outros, quanto indivíduos possessivos que são donos de suas
próprias capacidades.
O que
constitui “família” tornou-se até certo ponto mais flexível nas últimas
décadas, à medida que a coabitação sem casamento, o divórcio e as parcerias
lésbicas e gays se tornaram cada vez mais aceitáveis e as mulheres alcançaram
maiores níveis de independência financeira.
No
entanto, o fato de que mais pessoas se divorciam pode não sugerir que as
pessoas estão menos desengajadas no casamento, mas sim que o casamento
frequentemente falha em cumprir sua promessa de “felizes para sempre”.
Especialmente
as mulheres frequentemente percebem que a promessa de reciprocidade emocional
no casamento é difícil de realizar na prática. Em vez disso, elas tendem a ser
tornadas responsáveis pelo bem-estar geral da família e pelo trabalho de manter
relações emocionais íntimas.
Devido
à forma como o capitalismo estruturou o trabalho e a vida familiar, tornando-os
difíceis de conciliar, um parceiro dentro do casal frequentemente assume uma
responsabilidade desproporcional pelo bem-estar físico e emocional da família,
enquanto o outro parceiro passa mais tempo realizando trabalho remunerado.
Embora
muitos relacionamentos contemporâneos comecem com a ambição de igualdade e
reciprocidade emocional, as divisões tendem a se sedimentar ao longo de linhas
de gênero, especialmente se houver crianças na família.
As
supostas habilidades “naturais” das mulheres para gerenciamento emocional e
manutenção de relacionamentos são complementadas pela aparente incapacidade
emocional dos homens. Nas relações heterossexuais, os homens frequentemente
aparecem como emocionalmente desqualificados – muito imaturos emocionalmente e
desalinhados com as necessidades emocionais dos outros para assumir a
responsabilidade pelo bem-estar da família.
A
identidade de gênero está, assim, intimamente relacionada a formas de trabalho
qualificado, mesmo quando não é vivenciada como tal. Um aspecto fundamental das
construções modernas do “amor” é que ele é entendido como o oposto do trabalho.
Chamar a manutenção dos relacionamentos e do bem-estar emocional das pessoas de
“trabalho” parece implicar que essas relações não são genuínas.
As
pessoas que realizam o trabalho emocional reprodutivo devem, portanto, também
fazer o esforço adicional de esconder sua atividade como trabalho,
apresentando-a ao invés disso como o estado emocional natural do amor – um
estado de ser, não de fazer.
Mas as
fronteiras entre os mundos privado e público do capitalismo são sempre
instáveis. Em muitos casos, babás e cuidadores passam mais tempo com as
crianças do que seus pais. Idosos solitários são cuidados por voluntários e
trabalhadores de cuidados. Após o declínio da dona de casa como um papel de
trabalho normativo, simplesmente não há tempo suficiente para passar com os
membros da família – especialmente porque os ideais emergentes da “maternidade
intensiva” exigem que as crianças sejam cuidadas por um adulto 24 horas por
dia.
O
cuidado emocional em particular é notoriamente intensivo em trabalho e, muitas
vezes, difícil de tornar mais eficiente. Não podemos atender nossas
necessidades emocionais mais rapidamente com facilidade, e embora a tecnologia
possa atender cada vez mais nossa necessidade de entretenimento, ainda não foi
capaz de substituir completamente a interação humana face a face. Leva tempo
para tentar desfazer alguns dos efeitos das condições frequentemente
prejudiciais e emocionalmente desgastantes sob as quais trabalhamos e vivemos.
Muitos
teóricos apontaram para a prevalência contemporânea de serviços mercantilizados
contendo trabalho emocional – como trabalho de cuidado, terapia, trabalho
sexual e atendimento ao cliente. As mulheres são frequentemente as pessoas
chamadas a mercantilizar suas supostas habilidades femininas naturais para
atender às emoções dos outros. Dessa forma, muitas mulheres que deixaram a
esfera doméstica pela esfera do trabalho remunerado se viram realizando o mesmo
tipo de trabalho para clientes, chefes e colegas que anteriormente realizavam
para maridos, filhos, parentes e amigos.
No
trabalho emocional mercantilizado, as trabalhadoras feminizadas são
frequentemente encorajadas a criar uma sensação geral de gentileza e calor
emocional, e suprimir qualquer raiva ou outros sentimentos negativos. Isso pode
estabelecer um padrão cada vez mais alto de desempenho emocional que clientes,
colegas, pacientes e consumidores esperam dos trabalhadores de serviços. A
ausência de tal desempenho (sorrisos frequentes, voz calorosa, linguagem
corporal amigável, palavras calmantes) é frequentemente interpretada como
grosseria ou raiva.
As
empresas querem contratar trabalhadores com personalidades ‘naturalmente’
amigáveis, mas tendem a codificar que tipo de comportamento é esperado de seus
funcionários. À medida que o trabalho emocional em funções voltadas para o
cliente se torna mais comum, a necessidade de explorar essas capacidades
aumenta, então as empresas agora exigem que seus trabalhadores exibam sorrisos
‘genuínos’ e simpatia ‘real’.
No
entanto, esses serviços não podem compensar totalmente o trabalho realizado por
familiares e amigos. A dicotomia capitalista entre dinheiro e emoção dita que,
se temos que pagar por isso, não é amor verdadeiro. Continuamos a aspirar
encontrar nossos refúgios, mesmo quando eles continuam a nos decepcionar. Os
fortes investimentos emocionais nas próprias relações que facilitam a
exploração do trabalho não remunerado das mulheres tornam muito mais difícil
lutar contra a atual estrutura de sentimento.
Ou
seja, a própria forma da relação de trabalho, e nosso apego a ela, obstruem a
luta no terreno da reprodução emocional. Isso apesar do fato de que o sistema
atual não é muito bem-sucedido em alcançar seu suposto objetivo de criar bons
sentimentos – muitas pessoas estão de fato solitárias e infelizes. No entanto,
há um sentimento generalizado de que todos poderíamos ser felizes se apenas nos
esforçássemos um pouco mais, ou organizássemos nossas relações emocionais de
maneira mais equitativa e recíproca.
Contra
esse reformismo emocional, eu e muitos outras buscamos abolir a família como o
centro de nossas vidas emocionais, abrindo assim a possibilidade de novas
formas de satisfazer nossas necessidades e de criar necessidades completamente
novas. Embora muitas pessoas tenham apontado corretamente para a possibilidade
de ampliar a esfera daquelas relações atualmente reservadas à família, acho
importante também destacar que nossas noções atuais de relações familiares são
constituídas através da exclusão de outras formas de vínculos.
As
relações familiares não podem simplesmente se tornar mais inclusivas. A família
como a conhecemos é construída através de suas exclusões constitutivas – as
pessoas que vemos como não-família. Parte do problema é que algumas pessoas são
completamente excluídas de quaisquer vínculos familiares e, portanto,
provavelmente sofrerão com a falta de relacionamentos emocionalmente
satisfatórios, a menos que alguma outra forma de sociabilidade ocupe o lugar da
família. Mas atualmente há muito pouco apoio material, legal ou ideológico para
organizações alternativas da vida emocional.
Para
aqueles que estão (parcial ou totalmente) incluídos na forma familiar, a
negligência emocional e até mesmo o abuso são tão frequentes que não podemos
entendê-los como exceções, mas sim como padrões inerentes à forma familiar.
Talvez o fato de a reprodução emocional ser tão profundamente feminizada tenha
algo a ver com essas formas de negligência. É simplesmente muito difícil e
cansativo para uma pessoa sustentar os laços íntimos de uma família e cuidar do
bem-estar de todos os seus membros. Quando isso se torna o trabalho de um único
indivíduo, a mãe-esposa, é provável que ocorram casos de negligência – assim
como sentimentos de amargura e ressentimento, levando ao abuso.
Não
apenas as pessoas são excluídas da forma familiar. A estrutura de sentimento da
própria família é de ‘bondade’, talvez o valor familiar burguês central. Isso
significa que outros sentimentos são suprimidos e não podem ser explorados sem
ameaçar a continuidade da família. O isolamento das trabalhadoras emocionais
feminizadas dentro de suas famílias também significa que as lutas contra a
forma familiar tendem a ser lidas como descontentamento puramente individual.
Como sugere Federici, as mulheres são “vistas como esposas irritantes, não como
trabalhadoras em luta”. Os maus sentimentos aparecem como descontentamento com
a própria família, e não com a forma familiar como tal. A normalização da
monogamia contínua é uma expressão da resistência individualizada ao casal
romântico e à família. No entanto, os problemas de descontentamento emocional,
negligência e abuso não estão dentro do casal individual ou da família nuclear
em si, e uma mudança de parceiro, portanto, não pode resolver as contradições
da reprodução emocional como a conhecemos.
Muitos
de nossos desejos e necessidades estão atualmente investidos em relacionamentos
que não têm capacidade de apoiar todas essas necessidades. Isso leva a uma
situação em que tanto aqueles que aspiram ao ideal da família quanto aqueles
que são excluídos dela provavelmente sofrerão com a falta de bem-estar
emocional e a escassez de relacionamentos emocionalmente satisfatórios.
Assim
como o capitalismo de forma mais ampla, a organização atual da reprodução
emocional não pode atender às necessidades para as quais supostamente foi
criada para responder. Em vez disso, o bem-estar se acumula no topo das
hierarquias sociais, onde as pessoas estão protegidas do sofrimento dos outros,
enquanto aqueles permanentemente excluídos das relações familiares são
estigmatizados como portadores de maus sentimentos.
Continuamos
tentando cuidar uns dos outros em um mundo que muitas vezes é tão hostil a
formas de satisfação emocional fora das relações mais normativas – isto é, fora
das formas que simultaneamente reproduzem o investimento emocional em
estruturas ideológicas, materiais e legais.
A noção
de reprodução emocional tenta nomear algumas das formas como todos somos
dependentes uns dos outros, mas como essas dependências estão atualmente atadas
a estruturas que continuam a prejudicar a maioria das pessoas. Somente
reconstruindo essas estruturas podemos desenvolver sistemas de cuidado que
reconfigurariam as formas como cuidamos uns dos outros e nos permitiriam
reformular nossas necessidades e desejos.
Fonte:
Por Alva Gotby, no Verso Books | Tradução: Rôney Rodrigues, em Outras Palavras

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