Os
donos do mundo: big techs e a influência nas políticas locais e globais
Nas big
techs circulam desinformações capazes de corroer democracias, influenciar
eleições e alterar narrativas inteiras. Como correntes subterrâneas, boatos e
discursos de ódio fluem silenciosos, mas devem ser temidos como trovões em
tempos de tempestade. Fagulhas de mentira, alimentadas por algoritmos
invisíveis, se alastram e queimam a confiança pública. E, como o fogo, não
escolhem o que devorar, tudo é combustível.
Em um
rápido olhar para o cenário global, é impossível compreender a política e a
economia sem analisar o papel das grandes empresas de tecnologia, as chamadas
big techs. Mais do que atores econômicos, essas corporações transnacionais
passaram a disputar espaço com Estados-nação, influenciar normas internacionais
e definir os contornos do que se entende por soberania digital. Seu poder
extrapola os limites de mercado, moldando dinâmicas políticas, sociais e
epistemológicas, sobretudo no Sul Global. O que revela a assimetria estrutural
das relações tecnológicas globais e o impacto direto da financeirização digital
sobre democracias periféricas.
Empresas
como o Grupo Alphabet (controlador do Google, YouTube e outras empresas de
tecnologia), Meta, Amazon, Apple e Microsoft para além de oferecem serviços,
elas controlam infraestruturas críticas, como data centers, cabos submarinos,
provedores de nuvem e os algoritmos que mediam a circulação da informação.
Segundo
o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, trata-se de um novo modelo de poder
corporativo baseado na vigilância e na extração massiva de dados, que atualiza
lógicas coloniais sob a roupagem da inovação. “As corporações de tecnologia
exploram a experiência humana como matéria-prima gratuita. Tratam os dados
comportamentais como sua propriedade, numa dinâmica de usurpação”, aponta o
sociólogo.
Esse
“colonialismo de dados”, impõe aos países do Sul Global uma condição de
dependência na qual consumimos tecnologias que não controlamos, fornecemos
dados que são monetizados em outros lugares e temos pouca ou nenhuma incidência
sobre as decisões regulatórias que moldam a vida digital.
No
cenário contemporâneo de comunicação digital, marcado pela supremacia de
plataformas privadas com atuação transnacional, torna-se imperativo reconhecer
a complexidade dos enfrentamentos políticos e jurídicos que se impõem. “Como
estamos tratando de empresas de caráter transnacional, que se constituem como
grandes corporações privadas, a construção de redes de atuação e incidência
tanto junto ao Estado (pela aprovação de normas e legislações) quanto junto à
sociedade, em prol de um engajamento qualificado é fundamental, em especial,
quando falamos de países da periferia global”, avalia Ana Mielke, coordenadora
executiva do Intervozes. É praticamente inviável enfrentar esse poderio com
ações isoladas, limitadas às fronteiras nacionais. Ana destaca, ainda, que a
União Europeia, neste contexto, tem sinalizado um caminho possível, mobilizando
esforços conjuntos e obtendo avanços relevantes na consolidação de marcos
regulatórios em escala regional.
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Geopolítica das big techs
O
Brasil, nesse cenário, ocupa uma posição ambígua: é um dos maiores mercados
digitais do mundo, mas carece de autonomia tecnológica. Nossa dependência de
plataformas estrangeiras compromete a soberania informacional e fragiliza a
democracia. O Marco Civil da Internet (2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados
(2018) representaram marcos importantes, mas enfrentam a resistência concreta
das corporações e a ausência de um ecossistema digital soberano.
Contudo,
na ausência de uma regulação robusta, o que se vê é a proliferação de modelos
de negócio que dependem da captura da atenção e da desinformação como motor de
engajamento. As eleições de 2018 e 2022 escancararam esse modus operandi a
partir de plataformas como WhatsApp, Facebook e YouTube que se tornaram vetores
privilegiados de desinformação, disseminando discursos de ódio com impactos
concretos no exercício da democracia no país.
Vimos
esse diagnóstico se aprofundar na eleição de Donald Trump em 2024. A CNN Brasil
revelou que Elon Musk investiu mais de US$250 milhões para impulsionar a
campanha, num movimento que consolida o papel das big techs como agentes
políticos globais. Essa ação não é isolada, tampouco neutra. É parte de uma
arquitetura de poder em que a tecnologia molda o destino das nações.
O
protagonismo das big techs nesse contexto revela uma grave dissonância:
plataformas centrais como Twitter (X), Facebook e YouTube funcionam como
centros de comando de uma guerra de narrativas. A convergência entre as
ambições de Trump e o aparato tecnológico das redes configura um risco à
soberania digital, com tentáculos que se estendem aos regimes democráticos.
Essa teia artificial, feita de likes e bots, é o veículo que transporta a
perigosa ideologia do renascimento fascista, uma sombra que recai sobre a
capacidade de decidir e agir feita pelas pessoas.
Pois,
plataformas digitais sob comando de corporações, atuam como filtros da
realidade e determinam o que será visto, lido, comentado e silenciado. O
sociólogo Sérgio Amadeu aponta que as plataformas se “convertem em estruturas
geopolíticas da extrema direita”. Essa convergência entre as ambições
autoritárias da extrema-direita e os mecanismos algorítmicos de engajamento
privilegiam o conteúdo polarizador e desinformativo. Uma moldura que engloba a
técnica do caos e a retórica do medo.
Essa
lógica também rege a cobertura de conflitos internacionais. No caso da
Palestina, a censura algorítmica aplicada a conteúdos que denunciam o apartheid
israelense é frequente e silencia o que realmente acontece com a população
palestina, é o que denuncia o artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil
de coautoria de Iara Moura, Olívia Bandeira e Pedro Vilaça, integrantes do
Intevozes. A guerra não se trava apenas com mísseis, mas com silêncios
programados.
Sem
regulamentação, as plataformas reprimem a visibilidade de narrativas
contra-hegemônicas, apagando da timeline global as vozes palestinas. “Os
veículos brasileiros também produzem uma cobertura enviesada ao invisibilizar o
debate sobre o “apartheid” existente em Gaza, ao ignorar o contexto histórico
do conflito e ao encobrir os crimes cometidos por Israel”, aponta Alex Pegna
Hercog no artigo Além da Faixa de Gaza: comunicação como arma no enfrentamento
aos genocídios.
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Discurso de ódio e convivência negligente
Na
Amazônia brasileira, o fenômeno assume contornos ainda mais graves, é o que
aponta o relatório Amazônia Livre de Fake (Intervozes, 2024). Por meio de um
ecossistema de desinformação multimodal, que cruza plataformas e anúncios
pagos, políticos alinhados ao agronegócio e ao discurso antiambiental
instrumentalizam as redes digitais para minar os direitos humanos,
descredibilizar a ciência e os defensores da Amazônia, e promover interesses
econômicos predatórios.
Nesse
contexto, a confluência entre discurso de ódio, narrativa negacionista e
investimento público em desinformação coloca em risco a justiça socioambiental
e a democracia na região. O relatório evidenciou que políticos pesquisados
investiram cerca de R$ 13 mil de recursos públicos em 68 anúncios bolsonaristas
com conteúdo falso, alcançando mais de 4,5 milhões de interações, uma prova da
eficácia do modelo de negócio das plataformas quando o foco é amplificar essas
narrativas. Enquanto isso, a tecnologia que poderia proteger a floresta e seus
povos, torna-se arma contra eles ao digitalizar a floresta para ser saqueada.
Essa
apropriação criminosa do ambiente digital é viabilizada por um modelo de
negócio permissivo tanto de cunho político quanto empresarial. Diante disso, temos presenciado, no Brasil, a
resistência das plataformas em se adaptarem às diretrizes do Projeto de Lei nº
2630/2020 (“PL das Fake News”), que busca responsabilizá-las por conteúdos
impulsionados, exigir transparência algorítmica e combater disparos em
massa.
“Apesar
de avanços no texto do PL 2630 a regulação de plataformas ainda é vista com
ressalvas pelo Intervozes e outros movimentos sociais, pois: setores do
Congresso e das plataformas pressionam por flexibilizações que podem
enfraquecer a regulação; há risco de captura corporativa, com medidas que
privilegiem interesses de grandes empresas de tecnologia”, avalia Ramênia
Vieira, coordenadora executiva do Intervozes.
Em
entrevista ao programa Argumento da TV Senado, em 12 de junho de 2025, o
senador Alessandro Vieira (MDB), autor do PL das Fakes News, enfatiza a
necessidade de responsabilização das plataformas digitais pela desinformação e
crimes online, especialmente aqueles que afetam crianças e adolescentes. Ele
argumenta que, diante da inação do Congresso Nacional, o STF tem assumido o
papel de legislar por interpretação, o que considera o pior caminho. O senador
também critica o lobby das grandes empresas de tecnologia e a polarização
política que dificultam a aprovação de leis eficazes, reafirmando que o
controle deve ser sobre as ferramentas utilizadas para crimes, e não sobre o
conteúdo ou a liberdade de expressão.
Nesse
contexto, Vieira também chama a atenção para desafios relacionados ao “lobby
das big techs, que é forte no Congresso; ao fato de o judiciário ainda ter
interpretações divergentes sobre a responsabilidade de plataforma, como visto
em decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), especialmente por existir um vácuo com a falta de avanço numa
proposta de regulação por parte do Congresso”, aponta.
O PL
encontra-se parado na Câmara dos Deputados há um ano e não tem previsão de
movimentação. No primeiro momento havia um Grupo de Trabalho (GT) que foi
destituído pelo presidente Arthur Lira, que na ocasião instituiu uma Comissão
Especial para tratar a pauta e que já manifestou que não vai considerar o
relatório do GT, a avaliação será do zero. Entretanto, a Comissão nunca se
reuniu até o momento. “Nós, como Intervozes, entendemos que deva ser retomado,
sim, o relatório do GT que foi amplamente debatido com a sociedade civil, as
plataformas e com a academia. A Comissão Especial deveria seguir a partir desse
relatório e não zerar o jogo”, defende Vieira.
Mielk
destaca que as plataformas digitais “são responsáveis pela curadoria e
distribuição de conteúdos, processo que é realizado por mecanismos
completamente opacos. Ao exercer o poder de definir o conteúdo a ser
distribuído e o que será invisibilizado, elas detêm poder para interferir no
debate público e, portanto, devem assumir de forma subsidiária e, em alguns
casos, até mesmo solidária, a responsabilidade por conteúdos nocivos e
amplamente divulgados”, a exemplo disso é a difusão de conteúdos que incidem
sobre a opinião pública de forma a proporcionar confusão entre a regulamentação
das plataformas e a violação da liberdade de expressão.
O
Intervozes avalia que há avanços, a partir do PL em discussão, mas ainda não
atende plenamente às demandas dos movimentos sociais. Segundo Vieira, os pontos
críticos incluem: falta de mecanismos efetivos para fiscalização independente
das plataformas; riscos de excessos na moderação de conteúdo, que podem atingir
vozes marginalizadas; fragilidade em relação à transparência de algoritmos e
publicidade política. Nesse sentido, o Intervozes pressiona por mais
participação popular na construção de leis e garantias contra a criminalização
de movimentos sociais.
Diante
disso, é indispensável e urgente debater a governança das plataformas, os
critérios de moderação, os algoritmos de recomendação e a responsabilidade
socioeconômica dessas empresas. A omissão das plataformas não é inércia, é
estratégia. Pois, revela um modelo de negócios fundado na impunidade
algorítmica e na opacidade informacional.
O
Intervozes tem sido uma das vozes mais ativas no debate sobre a regulação das
plataformas digitais no Brasil, especialmente em relação ao PL das Fake News
(PL 2630/2020). A preocupação consiste na ausência de perspectiva de retomada
do debate, o que constitui, segundo Vieira, um “vazio legislativo” no que tange
a regulação das plataformas no Brasil.
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Neocolonialismo
A
crescente escalada da economia das big techs está profundamente enraizada na
financeirização. Essas plataformas operam como intermediárias entre dados e
capital, gerando valor por meio da publicidade, mas também de instrumentos
financeiros, controle de cadeias logísticas e monetização de hábitos. A Amazon,
por exemplo, não é apenas um e-commerce: é um império logístico e financeiro.
Enquanto a Alphabet, controladora do Google, investe em inteligência
artificial, cidades inteligentes, mobilidade urbana e sistemas de saúde.
Estamos diante de conglomerados cuja acumulação de capital se confunde com o
funcionamento cotidiano da sociedade.
Visto a
partir do Sul Global, isso representa uma nova forma de colonialismo: um
extrativismo de dados que atua concomitante com o novo conceito de extrativismo
mineral e florestal, ora difundidos para fins da agenda climática, porém, com
menos resistência política e mais lucro. Isso evidencia o quanto a neutralidade
tecnológica é um mito, visto que a tecnologia carrega interesses, valores e
hierarquias. E, no Sul Global, a regra tem sido a desinformação como estratégia
de governabilidade digital.
Em
resposta a esse colapso informacional, surgem iniciativas regulatórias como o
PL das Fakes News no Brasil, que apesar de enfrentar resistência corporativa, é
uma tentativa de responsabilizar as plataformas. Internacionalmente, destaca-se
o Digital Services Act (DSA), da União Europeia, que estabelece obrigações de
transparência, auditoria de algoritmos e moderação de conteúdo. Mas legislar
não basta e no caso do Brasil, há controvérsias entre os legisladores, com boa
parte cedendo ao lobby das plataformas, em detrimento do interesse
público.
Contudo,
Rodolfo Vianna – integrante do Intervozes, em seu artigo Avanço das big techs e
crise no modelo de negócio do jornalismo, lembra que a concentração do controle
da informação persiste: no Brasil, assim como antes com os conglomerados de TV
e imprensa, hoje são poucas as big techs que dominam as principais plataformas
digitais, tanto em nível nacional quanto global. A ausência de critérios
públicos para impulsionamento de conteúdos cria um sistema de desinformação que
beneficia interesses econômicos e políticos específicos, em detrimento da
pluralidade e da diversidade.
O
Intervozes, portanto, defende uma regulação democrática das plataformas que
priorize: a) transparência algorítmica, para evitar manipulação de conteúdo; b)
combate à desinformação sem censura prévia; c) responsabilização das
plataformas por danos causados por conteúdo impulsionado; d) proteção de dados
e privacidade dos usuários; e) garantia de liberdade de expressão, mas com
mecanismos de accountability.
A
disputa não é apenas técnica ou jurídica, é civilizatória. Como sintetiza
Sérgio Amadeu, “os dados são o novo campo de batalha das democracias. E, no Sul
Global, estamos sendo desarmados antes mesmo de começar a lutar.” Se as
plataformas se tornaram o novo campo de batalha, então que sejamos guerreiros
da escuta, da denúncia e da reconstrução. Que o poder das big techs não seja
maior do que o poder da palavra, do território, da ancestralidade. E que nossos
dados, como sementes, germinem liberdade e não vigilância. Ou regulamos o poder
das plataformas, ou assistiremos, passivamente, à derrocada da democracia por
meio de um toque, um clique, um compartilhamento. Neste tempo em que a verdade
se transforma em produto e o silêncio em algoritmo, que a nossa resposta seja
coletiva, justa e radicalmente humana.
Contudo,
frente a essa conjuntura, faz-se necessário um pacto ético digital, com quatro
eixos estratégicos: 1) governança participativa, com conselhos multissetoriais
de regulação digital; 2) Transparência radical, com divulgação pública dos
critérios algorítmicos; 3) sanções robustas, com penalidades proporcionais ao
porte e impacto da empresa; 4) investimento em infraestrutura pública digital,
fomentando tecnologia nacional e jornalismo comunitário.
Fonte:
Por Maryellen Crisóstomo, no Le Monde

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